Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

102. Ataque ao RR

Estávamos com sorte, pensamos. Uma de nossas patrulhas levou apenas três dias para encontrar o local da queda, em uma das barreiras de contenção de um dos rios que corta Nova Bermil. Ao fim da tarde estávamos a cerca de dez quadras do impacto, e até ali nenhum sinal dos Deuses ou de qualquer gangue. Mas então a coisa toda aconteceu. Mal o primeiro carro chegou ao topo da ladeira que nos levaria à parte baixa da cidade a rua inteira explodiu. Os dois primeiros veículos sumiram na bola de fogo. O terceiro foi arremessado sobre o que eu estava. Me encolhi no banco traseiro o máximo que pude para escapar, mas os outros não tiveram a mesma sorte. Mal tive tempo de pensar no que fazer a seguir. Senti o veículo que vinha logo atrás atingir o meu e, em meio ao cheiro de combustível que vazava, uma chuva de disparos atingiu-nos de todos os lados. Abri a porta da caminhonete aos chutes e corri para dentro de uma casa. Um segundo depois o veículo irrompeu em chamas, e enquanto eu começava minha fuga por entre entre os escombros ele finalmente explodiu.

Nos primeiros quarteirões ainda podia ouvir os zumbidos e estampidos dos disparos com clareza, mas logo eles ficaram distantes e cessaram. Não sei por quanto tempo corri, mas parei apenas quando a noite caiu. Ainda tinha minha arma, pendurada na bandoleira, mas a mochila tinha se perdido junto com a caminhonete. Tinha apenas dois carregadores de munição, uma ração de viagem e uma pequena lanterna comigo, presos ao cinto. Subi ao segundo andar de um antigo sobrado e derrubei as escoras que mantinham a escada de pé. Passei ali aquela primeira noite em Bermil, assistindo de longe o fogo que consumia os veículos do Rosa Radioativa e atraia os Diabos como moscas. Chorando em silêncio passei a noite acordada, e aos primeiros sinais de claridade pulei para a rua e comecei a vagar pela cidade. Fazia muito tempo desde a última vez em que tinha ficado sozinha por minha própria conta. Já estava acostumada a ter outras pessoas por perto, para me ajudar e apoiar, e então, de uma hora para outra, estava completamente sozinha outra vez.

Por duas vezes tentei abater um Diabo durante a noite para que tivesse algo para comer, mas assim que um caia morto, os outros se amontoavam com ferocidade para devorar a carne magra. E então, três dias depois do ataque, com fome, cansada e sofrendo de hipotermia, cheguei a uma rua comprida tomada por prédios dos dois lados. De tão fraca, mal conseguia pensar, quanto mais andar, e tão logo entrei em uma casa a procura de abrigo para a noite, minhas forças me abandonaram e tudo ficou escuro. Quando acordei estava deitada em uma cama quente e confortável, podia sentir novamente os dedos dos pés e das mãos, e no ar havia um delicioso cheiro de cozido. Sabia que estava segura, mas também sabia que as coisas não seriam mais as mesmas a partir dali.

-Passan te salvou, assim como salvou a mim -concluí a história, enxugando uma lágrima que lhe escorria pelo rosto.

-Eu queria apenas esquecer essa história toda, Nuke. Sua chegada veio me trazer forças para esquecer a perda e deixar o que houve de lado -confessou Lisie, entre soluços. -Mas agora essa coisa toda volta à tona. Se não foram os Deuses que nos atacaram aquele dia... não sei quem pode ter sido.

-Ou o porquê.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

101. Caldo Quente

A noite foi longa. Dentre as mais longas que já tinha vivido até então. A fome apertava o estômago e me fazia desejar os pedaços de carne de rato seca que muitas vezes comi. Sem vestimentas adequadas, o frio entrava pela roupa e congelava meu corpo pouco a pouco. As horas se arrastaram agoniantes, e às primeiras luzes do amanhecer meu corpo tremia incontrolavelmente. Ouvi os soldados saírem para a rua e retomarem os reparos no blindado assim que o último uivo dos Diabos cessou. Tentei levantar, mas meus braços pareciam grudados em volta dos joelhos, que por sua vez congelaram um ao outro. Controlando os músculos e contendo a tremedeira me forcei a levantar e caminhar ao corredor. Com ainda mais esforço retirei a barricada de mesas e cadeiras do caminho e arrastei os pés até a escada.

Sem sequer lembrar de me preocupar com a presença de algum soldado, desci as escadas. Tamanho frio sentia, mal reparei nas marcas dos ganchos que haviam usado para acessar o primeiro andar. Me espremi pelo vão no topo de destroços que bloqueavam o acesso da escada e me estatelei no chão abaixo. Depois, literalmente, engatinhei rumo ao alçapão. Pensava em como fazer meu corpo sobreviver à queda pelo buraco do esconderijo, já que meus braços não aguentariam me descer pelos degraus da escada, quando o alçapão se abriu e um par de mãos me puxou para dentro. Quando me dei conta estava deitado em uma das camas do dormitório, coberto da cabeça aos pés com cobertores, enquanto Lisie me servia um caldo quente ralo, porém revigorante. Me lembro de ter apagado e acordado algumas vezes ao longo do dia, e em todas elas Lisie estava sentada ao lado da cama, massageando minhas mãos e pés.

Não me lembro quanto tempo levei para me recuperar completamente. Por dias ainda teria tremeliques esporádicos e calafrios, mas assim que recobrei de vez a consciência imediatamente comecei a falar, narrando o que havia visto. Lisie esboçou um sorriso, e colocando o indicador em meus lábios, me fez calar.

-Nós sabemos, Nuke. Vimos pelas câmeras. Tentamos te avisar, mas... -seus olhos se encheram de lágrimas e sua respiração pessou. -Eu devia ter contado antes, mas... achei que eles tinham desistido, que tinham ido embora. E eu só queria esquecer.

-Eles quem? Desistido do que? Esquecer o que? -perguntei, surpreso. Mas novamente Lisie me fez calar.

-Esses homens são os Deuses. Um exército que age, segundo eles, sob as ordens do Governo. Ou do que restou dele. Mas na verdade são gafanhotos, roubando e matando aqueles quem se metem em seu caminho.

-Eu sei, conheço eles. Eles... -comecei, mas uma lágrima caiu de seus olhos azuis e escorreu pelo rosto alvo como a neve, e minhas palavras se perderam em sua tristeza.

-Minha unidade do Rosa estava pela região -começou, com a voz engasgada e os lábios trêmulos -quando uma luz iluminou as nuvens, cruzou os céus e caiu sobre Bermil. A princípio achamos que fosse apenas a queda de algum avião que alguém havia tentado fazer voar, mas logo percebemos que o rastro deixado não era de um motor normal. Corremos para a cidade o mais rápido possível, em busca do ponto de impacto. Aeronaves são raríssimas hoje em dia, ainda mais voando, e por isso não podíamos ignorar o acontecimento.

-Mas então alguma coisa deu errada... -concluí.

Outra lágrima escorreu quando Lisie confirmou com a cabeça.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

100. Dormente

Uma descarga de adrenalina percorreu todo meu corpo, arrepiando os pelos do braço. Meu braço estremeceu e meus dedos se contraíram. Num esforço em conter o impulso, estiquei o polegar para a frente e evitei bem a tempo o disparo. Os soldados invadiram a sala segundos depois. Mal podia contá-los enquanto entravam pela porta, gritando ordens uns aos outros. O líder, um homem enorme e truculento, com o lado esquerdo do peito repleto de medalhas e insígnias, se aproximou do soldado imóvel. Eu ainda o mirava, mas sequer respirava, com medo de ser encontrado a poucos metros dali.

-SOLDADO! PELO AMOR DA PUTA QUE TE PARIU, MAS QUE BUCETA CANCEROSA QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FAZENDO? -gritou o homem, já sem a máscara, a plenos pulmões.

-Des-desculpe, senhor! E-eu... -gaguejou o soldado amedrontado.

-SENHOR. DESCULPE, SENHOR! -corrigiu o líder, fazendo as medalhas chacoalharem no uniforme.

-Sen-senhor. Des-desculpe senhor! E-eu...

-DESCULPA O CARALHO! SAIA DA MINHA FRENTE AGORA -e berrou ainda mais a última palavra- OU O PRÓXIMO DISPARO DESSA ARMA VAI SER NA SUA CABEÇA! VAMOS, SUMA!

-Senhor. Sim, senhor -concluiu o soldado, arrasado.

Cabisbaixo e ainda tremendo, o soldado saiu apressado. Os demais permaneceram imóveis, de armas em punho, voltados ao seu líder. Ele encarou cada um dos seus por alguns instantes, com raiva transbordando do rosto vermelho, colocou de volta a máscara e saiu sem dizer palavra. Sem jeito, os soldados o seguiram, sumindo na escuridão do corredor. Pensei em levantar, mas preferi aguentar as cãibras nas pernas e nos braços por mais algum tempo e esperei. Apenas quando os ouvi montando uma barricada com mesas e cadeiras para barrar o vento é que deixei o abrigo e saí de perto das janelas. Procurei um canto protegido e comecei a massagear meus pés, dormentes por causa do frio e do vento.

Demorou quase meia hora até que voltasse a sentir a ponta dos dedos dos pés. Com fome e frio, até meu cérebro começava a diminuir o ritmo. Eu podia ouvir as vozes abafadas dos soldados em salas do outro lado do andar, mas entender o que diziam era impossível. Tentei me manter focado, para que o sono não viesse. Se dormisse ali, sem uma fonte de calor ou proteção contra o vento, morreria congelado durante o sono sem ao menos perceber. Lembrei-me então da transmissão que o helicóptero havia feito e que o rádio do soldado tinha captado. Aumentei o volume do meu aparelho e comecei a ouvir, atento. Mas hoje, o que lembro de ter ouvido aquele dia, é apenas:

-Repito. Local da queda encontrado. Local da queda encontrado.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

99. Na Mira

Mal dava para ver o caminho, tão escuro estava. Acendi a lanterna, mas mantive sua luz apontada para baixo, para que seu facho não me traísse. Pouco me importei com os chutes e tropeções nas coisas que estavam quase invisíveis nos corredores escuros, queria apenas chegar ao alçapão no andar de baixo. Os soldados só poderiam ter se escondido na entrada do esconderijo, e ajudar Lisie e Passan era tudo que conseguia pensar. Corri o mais rápido que pude até a porta de emergência e já pensava no que fazer depois quando vi outros fachos de luz.

Subindo do térreo, pela escada externa, luzes de lanternas cortavam a escuridão e se projetavam para cima. Parei de correr de imediato, deslizando alguns centímetros na poeira e na neve. Abri os braços procurando equilíbrio, e assim como parei, voltei a correr no sentido oposto. Já não me importava esconder a luz, apenas fugir o mais rápido possível. Podia ouvir a voz dos soldados conversando entre si enquanto avançavam pelos degraus. E mal tive tempo de chegar à sala na fachada do prédio quando na outra ponta do corredor suas silhuetas apareceram à porta.

Um facho de luz iluminou todo o corredor e parte da sala onde eu estava. Alguém gritou uma pergunta, mas não houve resposta, e depois a luz se apagou. Voltei à janela de onde a pouco os tinha observado e esperei. Tinha esperanças de que continuassem subindo, a procura de um lugar para ficarem, mas não confiava em minha sorte. Conferi minha arma, deitei entre algumas mesas jogadas e mirei a porta. Meu pé direito estava para fora do prédio, pelo vão onde a janela que ia do chão ao teto estivera. Dali, eram pelo menos cinco metros de queda até a escadaria de entrada.

Como eu temia, a movimentação dos soldados continuou pelo andar. Os focos de luz iam e vinham, cruzando a porta de entrada. Não demorou mais que dois ou três minutos até que um deles entrasse para revistar a ampla sala onde eu estava. Acompanhei-o com a mira. Sabia que se dependesse deles atirariam primeiro e perguntariam depois. Então seria eu a atiraria sem hesitar. O homem havia tirado o capuz branco que cobria a cabeça, mas mantinha a máscara ocultando-lhe  a face. Sua respiração era ruidosa através do filtro de ar, seu ritmo lento e compassado dava calafrios ainda maiores que o vento gelado que entrava da rua. Mas mantive-me focado, expulsando da mente todos os pensamentos. E quando os passos puderam ser ouvidos logo adiante, coloquei o dedo no gatilho e prendi a respiração.

-Águia para Raposa, na escuta? -gritou o rádio, acompanhando o disparo.