Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

94. Águia de Ferro

Joguei-me para o lado com uma cambalhota, ficando de joelhos, agora de costas para onde eu olhava e de frente para o corredor por onde entrei. Alguém apontando uma arma teria disparado no vazio, e antes que pudesse mirar novamente estaria alvejado. Poucas coisas boas me lembro de Amrak e seu exército, e esse movimento é uma delas. Mas felizmente não havia ninguém, e o susto não passou de imaginação. Ainda assim, decidi deixar aquele lugar sombrio e abandonado, vigiado pelos fantasmas do passado. Peguei o rádio e avisei Passan e Lisie que não havia problema e que ira explorar os próximos andares.

Eu já havia explorado até o 10o andar, mesmo que apenas rapidamente, ao procurar pelo leite do diabinho. Mas ainda havia outros 30 ou 35 andares a explorar. Milhares de pessoas trabalhavam naquele prédio antes da Explosão, e as coisas deixadas para trás na pressa de salvarem suas vidas são como ouro para sobreviventes como eu. Ainda que Passan dispusesse de praticamente tudo o que eu poderia querer, meu instinto de sobrevivente me forçava a explorar cada canto por onde eu passava em busca de qualquer coisa útil. E aquele prédio, um dos poucos a não ter sido saqueado -provavelmente em todo o mundo-, era mais que uma mina de ouro, era um paraíso.

Segui pelo corredor, rumo à saída de emergência. Com alguns chutes e encontrões consegui desemperrar a porta, aumentando consideravelmente a corrente de ar que circulava pelo andar. Cruzei os braços e apertei o casaco no pescoço ao sentir o frio assassino que soprava em Bermil. Mesmo acostumado e com óculos especiais, semi-cerrei os olhos à claridade de toda aquela neve do lado de fora. Subi pelas escadas externas até o próximo andar e parei diante da porta fechada. Senti uma enorme preguiça em forçar mais uma porta a abrir, e a julgar pelo que pude ver através da janela ao lado da porta, o interior estava intacto às intempéries. Quebrar o vidro seria expor o interior ao vento e à neve depois de tantos anos ileso.

Tomei alguns instantes para ponderar sobre como agir. Pensei em disparar contra a trava da porta, ou usar um pé-de-cabra, mas ambas as alternativas arruinariam o mecanismo, que não mais manteria a porta fechada depois que eu saísse. Sem ter outras idéias, decidi perguntar a Passan por novas, e peguei novamente o rádio. Antes de apertar o botão para chamá-lo percebi um aviso piscando na tela, indicando que o scan do aparelho tinha detectado a presença de outra freqüência ativa em seu alcance. Reconfigurei o receptor para aquela faixa de freqüência, mas não havia nada. Aumentei o volume, mas sequer a estática podia ser ouvida. O sinal estava limpo, perfeito, mas não transmitia nada. Cerrei o cenho, pensativo.

Foi então que comecei a ouvir um barulho ao longe, aumentando gradualmente. Parecia um motor, mas vinha de cima. Subitamente o rádio berrou:

-Águia em sobrevôo no setor leste. Raposa, na escuta? Câmbio.

O helicóptero passou rasante na cobertura do prédio, jogando uma tempestade de neve para baixo.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

93. Décimo Primeiro Andar

Subi pela escada de incêndio. Olhei pela janela e vi o corpanzil de um dos enormes ratos que eu havia chutado no dia anterior, cuja barrigada havia sido parcialmente devorada e espalhada pelo corredor. Logo todo ele teria sido comido pelos de sua espécie. Um vento forte cortava Bermil naquela manhã, fazendo meus ossos congelarem, depois de me acostumar com o calor aconchegante do esconderijo de Passan. Decidi deixar que os ratos se acabassem e subi outro lance de escada. A porta estava emperrada, enferrujada com os anos, mas a janela do corredor tinha tido seu vidro quebrado. Com um pouco de cuidado consegui entrar. 

A enorme sala para a qual o corredor de emergência se abriu ocupava quase toda a extensão daquele andar. A área estava dividida em incontáveis micro-salas, separadas por paredes de madeira prensada de um metro e meio de altura. Os computadores que não haviam sido saqueados estavam arruinados pelo chão, junto a um mar de folhas de papel e outros materiais de escritório. Algumas das janelas, que iam do chão ao teto, estavam quebradas, fazendo uma corrente de vento constante cortar os corredores e erguer redemoinhos de papel e neve pelo ar. De arma em punho, entrei esperando que algo ou alguém pulasse sobre mim, mas quando senti o vento frio cortar meu rosto relaxei um pouco. Ali não era um bom lugar para um ser vivo comum se abrigar, e a julgar pela força do vento e pela bagunça espalhada pelo chão, bem como pelas quantidades enormes de neve acumuladas em cada lugar possível, nada nem ninguém vivia ali por muitos anos. Ainda assim não abaixei a arma. 

Comecei a circular pelos corredores que separavam as baias onde antigamente pessoas trabalharam. Me senti como se andando pelas lápides de um cemitério, onde as memórias daqueles que um dia estiveram ali  pairavam pelo ar, intocadas pelo vento que soprava feroz e parecia lhes dar voz, como fantasmas atormentados. Eu quase podia ver as pessoas andando apressadas, de um lado para o outro, em seu último dia naquele lugar, completamente alheias ao que lhes estaria reservado para o dia seguinte. Imaginei os olhos inchados de quem chora sem parar, as mãos sujas de sangue e poeira, e o sentimento de desespero e medo, não da morte, mas da solidão. Quando o véu da realidade finalmente ruiu, duvido que alguém estivesse preparado.

Agachei e peguei um porta-retratos no chão. Uma moça bonita de cabelos castanhos segurava uma menininha nos braços, sorrindo alegres em uma praia ensolarada.

-Estaria eu preparado? -e na hora não soube se disse num sussurro, ou se alguém mais dissera.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

92. Conservantes

Recostei-me na parede em frente à porta da antiga creche. Fiquei alguns instantes pensando, enquanto recuperava o fôlego, no começo daquele covil de roedores. Pouco depois de todas as pessoas abandonarem o prédio -ou antes, provavelmente - os ratos começaram a se alimentar dos alimentos armazenados na despensa. Sem mulheres histéricas dando chiliques ao vê-los, eles se reproduziram livremente, provavelmente devorando uns aos outros na falta de alimento melhor, até atingirem tamanhos assustadores e números inimagináveis. Então me surgiu um pensamento que me fez ter calafrios e arregalar um pouco os olhos, tirando completamente de minha mente o som que viera do andar de cima. Se os cachorros e ratos daquela cidade haviam crescido e se tornado máquinas de matar, o que seria das baratas?

Antes que as suspeitas aparecessem se arrastando em minha frente em forma de insetos cascudos do tamanho de bolas de futebol, segui minha busca. Se antes eu havia levado vinte minutos subindo pelas escadas de incêndio até o 10o andar, e outros cinco dentro da colônia de ratos, levei quase duas horas explorando cada salinha de café e copa em busca de algo que já não houvesse virado fezes de algum roedor. Finalmente, no 3o andar, encontrei dentro de um armarinho de inóx o objetivo de tanto trabalho. A lata de leite-em-pó estava intacta, protegida dos dentes afiados dos ratos pelo inóx e pelo aço inoxidável, e de microorganismos pelos inúmeros conservantes criados pelas indústrias alimentícias -e se tem algo que eu agradeço até hoje por terem inventado são os conservantes de alimento, que mantém a comida boa... isto é, comestível, indefinidamente!

Levei a lata de volta a Lisie junto de uma mamadeira que encontrei pelo chão. Fiquei observando-a alimentar o pequeno diabo, tentando ignorar o aviso que sentia dentro de mim dizendo que aquilo não era boa idéia. Tentei mudar de pensamentos repassando pela mente o surgimento daquela colônia de ratos, imaginando se eles utilizavam os encanamentos para se locomover e de onde conseguiam àgua para tantos indivíduos, até que subitamente me lembrei do barulho que tinha ouvido vindo do 11o andar. Levantei num pulo, com os pêlos arrepiando na nuca. Lisie e Passan me olharam interrogativamente. Não queria alarmá-los, mas não conseguia pensar em nenhuma desculpa decente para me entupir de armas e subir novamente os andares do prédio. Então disse a verdade:

-Acho que ouvi alguma coisa vindo do 11o andar enquanto procurava pelo leite. Vou voltar lá.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

91. Leite-em-pó

O primeiro que apareceu na minha frente cruzou a pequena sala de entrada voando e por pouco não saiu pela janela. Os ratos que haviam tomado aquele lugar eram maiores do que qualquer outro que eu já tivesse visto. A cada chute dois ou três roedores voavam de encontro às paredes. Eram centenas, talvez milhares deles. Corriam e pulavam por entre os brinquedos empoeirados, como se brincassem com eles. Havia fezes em toda parte e o ar estava impregnado com um cheiro medonho de carniça e mofo. Carcaças de ratos e outros restos mortais se espalhavam pelos cantos em amontoados de quase meio metro de altura, de onde eles entravam e saiam sem parar.

Comecei a cruzar a enorme sala, onde provavelmente as crianças passavam boa parte de seu tempo brincando com as monitoras enquanto seus pais trabalhavam em algum escritório pelo prédio, mas havia um exército de roedores no caminho. Na parede oposta havia uma porta de onde se podia ver algumas mesas, e imaginei que a cozinha e a despensa deveriam ser naquela direção. Com sorte encontraria uma lata ou duas de leite-em-pó, que serviriam de alimento ao diabinho. Mas infelizmente não fui muito longe. Antes de chegar à metade da sala os pequenos soldados dentados, que até então tinham ignorado minhas investidas violentas contra alguns de seus familiares, pareceram acordar para o perigo. Como se fossem um, mostraram os dentes e se ergueram nas patas traseiras, guinchando em desafio. Me imobilizei de imediato, tentando não demonstrar ameaça, mas não houve sequer tempo de pensar em como agir. Do tamanho de um gato, vindo do banheiro, surgiu o que provavelmente era o rei daqueles ratos. Com dentes tortos e amarelos ele avançou com o corpanzil pelo meio de suas fileiras de guerreiros roedores, guinchando estridente.

Tive tempo apenas de tapar as orelhas e me encolher enquanto corria para o corredor, em meio à uma chuva de ratos kamikazes, que se atiravam ao ar das prateleiras de brinquedo tentando me atingir. Fechei a porta atrás de mim com um chute, e com outros dois dei cabo dos roedores que tinham conseguido sair da creche, jogando-os para longe e fazendo-os correr.

Com a respiração ofegante já estava pensando em uma desculpa para dar a Lisie quando um barulho soou sobre minha cabeça. Abaixei-me por reflexo, e de olhos semi-cerrados olhei para cima. Só então percebi que o som viera do andar de cima. Havia alguém lá.

sábado, 30 de outubro de 2010

90. Diabinho

Dormi muito. Muito e muito bem. Pela primeira vez em anos eu tinha uma cama só minha, com lençóis limpos, travesseiros e cobertores. A preocupação constante que havia em dormir em um buraco na neve ou em uma casa abandonada não existia, e isso era quase tão reconfortante - se não mais - do que uma boa cama. Quando finalmente acordei minha barriga roncava tão alto que talvez ela mesma tenha me acordado. Deixei um dos muitos quartos com beliches que havia no abrigo e fui a procura de Lisie e Passan. Esperava encontrá-los na cozinha, com alguma coisa gostosa pronta para eu comer, mas os encontrei no hall de entrada.

-Bom... dia? - arrisquei, apesar de não fazia idéia de que horas eram.

-Boa noite! - corrigiu Passan, sentado à pequena mesa de centro.

-Dormiu, hein! - falou Lisie sorrindo, e então se aproximou de mim trazendo nas mãos uma caixa de sapatos. -Veja! Saí essa manhã para explorar o prédio e encontrei isto!

Uma pequena bolota vermelho-acinzentada coberta de minúsculos pelos brancos inchava e murchava ritimadamente em meio a um amontoado de roupas velhas. Demorei um tempo para reconhecer do que se tratava, e as exclamações de "mas não é uma graça?!" e "é tão fofinho!" de Lisie não ajudavam muito. Por fim, depois que um focinho vermelho apareceu, seguido de um ganido agudo, percebi que aquilo era um filhote de Diabo de Bermil - ou um Diabinho, como foi apelidado pela ala feminina do abrigo. Fiquei surpreso, claro, mas fiquei ainda mais ao ver a animação de Passan e Lisie com o pequeno animal.


-Alguém aí lembra que essa coisinha, daqui não muito tempo, vai virar uma moedor de carne ambulante?

-Ah, Nuke, pára com isso! Olha pra ele!

Desisti de argumentar, dei um sorriso para eles e fui pra cozinha encher a pança. Duas latas de feijão e uma de legumes depois eles ainda estavam lá, admirando o choro baixinho da criatura. Mas antes tivesse continuado a comer. Mal cheguei e fui obrigado a fazer algo que não gostaria de fazer por um bom tempo: sair do abrigo.

-Ele deve estar com fome, não para de chorar e se chacoalhar pra cá e pra lá. Deve estar procurando a mamãe - falou Lisie, com voz melosa.

-Porque não o deixaram com a mãe? - mas já imaginava a resposta.

-Ela não resistiu. Era aquela que os caçadores seguiam. Deu a luz à três filhotinhos, mas só esse ainda estava vivo quando os encontrei.

-Você saiu lá fora sem saber se o Diabo estava vivo ou não? - ergui as sobrancelhas, meio surpreso meio preocupado.

-Relaxa, Nuke. Eu sei me cuidar, lembra? - e ela sabia mesmo, mas era uma coisa que eu viria a me esquecer com facilidade daquele tempo em diante. -De qualquer forma, é sua vez de se arriscar um tiquinho por nós. Passan me disse que no décimo andar ficava a creche do prédio. Será que você não poderia...

-Lá vem...! - interrompi.

-... buscar uma lata de leite em pó? - continuou ela, fingindo não me ouvir. -Assim podemos dar de comer ao pobrezinho.

-No meio da noite?!

Eu não podia negar. Não àquele olhar pidão que só as mulheres sabem fazer.

E mesmo que soubesse que o décimo andar ainda estava em uso como creche, não teria negado.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

89. Ganido

Primeiro desejei com todas as minhas forças ter uma lanterna. Depois me amaldiçoei por ter deixado a segurança do abrigo sem o mínimo de equipamentos para tal - está certo que eu não imaginava correr atrás de um homem de mais de 40 anos pelas ruas de uma cidade em ruínas pouco antes do anoitecer, mas foi uma tremenda burrice que não cometi muitas vezes mais em minha vida. A cada segundo que se passava o corredor escurecia mais e mais, e mesmo meus olhos treinados logo tornaram-se tão inúteis quanto os de um cego. Fiquei imóvel, tentando ouvir qualquer sinal de que o perigo avançasse. Mas no fundo sabia que, se ele viesse, não haveria tempo de reação.

Aquele Diabo já tinha se mostrado capaz de atacar em uma fração de segundo com uma ferocidade aparentemente incompatível com seu corpo franzino, e isso obviamente não saía de minha cabeça. Ainda assim não tinha perdido toda a esperança de sobreviver. O animal ainda não tinha atacado, e fora o movimento e o ganido iniciais, não houve outro sinal de vida por segundos que pareceram horas. Se ele não havia atacado ainda, então talvez não atacasse. E, torcendo para que eu estivesse certo, dei um passo atrás. Não houve reação. Outro passo. Nada novamente. Três passos seguidos, e finalmente um som em resposta. Meus sentidos se aguçaram, meus músculos se retesaram, mas não foi o Diabo que se mostrou.

Um ponto brilhante surgiu no final do corredor. Um facho de luz cortou a escuridão densa, fazendo-me apertar os olhos com a claridade repentina. Eu continuava praticamente cego, mas tinha certeza de quem segurava aquela lanterna e respirei profundamente aliviado. Sorri envergonhado quando ela se aproximou e seus olhos azuis se iluminaram saindo da escuridão. Tentei disfarçar, mas meu embaraço era mais que evidente. Lisie ainda disse alguma coisa tranquilizadora enquanto seguíamos para o alçapão, mas não cheguei a prestar atenção, a adrenalina deixava meu corpo e um alívio extremo dominava minha mente.

-Onde está o Diabo? -perguntei quando passamos pelos corpos dos caçadores.

-Está bem ali - falou Lisie, apontando o facho de luz para os escombros na escada. Uma massa avermelhada de sangue e poeira estava amontoada entre grandes blocos de concreto. -Vimos pelas câmeras quando ele se arrastou para aquele canto. Mal se moveu desde então. Deve estar pra morrer.

Eu já descia a escada do alçapão quando um ganido muito baixo e agudo veio dos escombros. Não era o Diabo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

88. Necessário

Eu não era um matador. Menos ainda um assassino. Mas assim eu me senti minutos depois de deixar o esconderijo de Passan. O homem ainda estrebuchava no chão, sua barriga aberta sorvendo sangue no meio da rua, quando virei as costas e comecei a correr de volta ao esconderijo. 

Demorei longas noites para esquecer aqueles olhos. Quando gritei para que parasse, o homem virou em minha direção com olhos de fúria, arma em punho e dedo no gatilho. Um segundo - e três tiros na barriga - depois, seus olhos transbordaram medo e desespero, enquanto sua vida se esvaia pela poeira da rua. Fiquei aturdido, preso por aquele olhar. Era incrível, e até fascinante, ver quanto medo um homem podia sentir, e o quanto esse medo se tornava visível à beira da morte. Mas o fascínio, naquele momento, durou apenas isso, um momento. E então, enquanto corria de volta, tentei me convencer de que a morte daquele homem não tinha sido apenas um assassinato, mas uma morte necessária - se é que existem, realmente, mortes necessárias.

Corri o mais rápido que podia. A caçada tinha acabado e a noite avançava rápido pelo céu nublado. Não tinha percebido, mas corri por muito mais quadras do que esperava quando persegui o homem. E agora temia não voltar ao esconderijo antes que a noite estendesse seus reinos pela cidade e os Diabos dominassem as ruas com seus dentes mortíferos. Saltei por pilhas de escombros e carcaças de carros sem raciocinar, usando apenas o instinto. E, quando as sombras dos prédios começaram a se fundir em uma escuridão crescente, uivos e latidos distantes ecoaram pelas ruas. Subi a escadaria na entrada do prédio com as pernas bambas e a garganta ardendo. 

Eu só carregava minha arma naquele dia, mas mesmo ela parecia pesar muitos quilos mais que o normal depois daquela corrida. Levei alguns segundos para me recompor, estatelado no meio do saguão de entrada, mas a escuridão e os sons da noite me ajudaram na decisão de levantar. Praticamente me arrastei até o corredor, imaginando Lisie e Passan me olhando pelas câmeras de segurança. Queria apenas entrar pelo alçapão e me deitar no chão do esconderijo até que meus músculos se recuperassem um pouco. Mas então eles se retesaram de novo. Ainda que estivesse muito escuro e eu muito cansado, meus olhos não tinham perdido sua sensibilidade para o perigo, e vi quando alguma coisa se moveu no final do corredor.

Respiração presa na garganta. Um ganido baixinho, quase inaudível. E eu já sabia qual era meu inimigo.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

87. Caça e Caçador

A coisa foi de mal a pior muito rápido. O primeiro homem entrou no pequeno hall e seguiu a trilha de sangue para debaixo da escada de arma em riste. Sua surpresa foi evidente, mesmo pela câmera, quando não encontrou sua presa amuada naquele canto escuro. Seus companheiros chegaram em seguida, também tentando observar o vão sob a escada. Conversaram por alguns instantes e então dois deles voltaram à porta, mas o terceiro continuou olhando para o espaço escuro. Dentro do esconderijo ninguém respirava ou se movia enquanto olhávamos fixamente para a tela sem sequer piscar. O homem então se agachou para olhar mais de perto e então chamou seus companheiros, que voltaram apressados. Passan pareceu sair de um transe quando a imagem do alçapão sendo aberto apareceu na tela. Levantou estabanado da cadeira e quase foi ao chão, seu rosto rechonchudo estava suado e sua pele quase tão branca quanto a de Lisie. Tentou falar alguma coisa, mas conseguiu apenas arregalar os olhos e escancarar a boca. Pela primeira vez em duas décadas seu esconderijo tinha sido descoberto. Eles eram os caçadores, e quando nos descobrissem, seríamos a caça.

A porta do esconderijo estava fechada, mas podíamos ouvir em nossas mentes o ranger das dobradiças do alçapão sendo abertas. Me aproximei da porta de aço de arma em punho. Aquela porta de aço era a única coisa que nos separava do mundo assassino que reinava no lado de fora, e pensar nisso fazia minhas pernas fraquejarem. Lisie manteve seu olhar incrédulo na tela, atenta a qualquer mudança, enquanto Passan continuava preso em seu desespero paralisante. Menos de um minuto se passou desde que o primeiro homem vestindo sua roupa camuflada desceu pela escada do alçapão, mas, ao contrário do que eu esperava, ninguém forçou a tranca da porta. Um segundo companheiro o seguiu, mas a porta continuou intocada. Quando o terceiro homem começou a descer pela abertura, eu me revezava freneticamente entre olhar a tela no fundo da sala e a tranca da porta, sem conseguir raciocinar coisa alguma. Mas foi então que a caçada começou.

Lisie gritou do fundo da sala. Sem pensar abandonei a porta e corri até ela, passando por Passan. Trêmula, ela apontava o telão na parede. Virei o olhar e também fiquei pasmo. O pequeno quadrado que exibia a câmera do corredor mostrava uma mancha cinza-avermelhada se projetando para dentro do alçapão.

-O Diabo está descendo! -deixei escapar, enquanto um arrepio percorria toda minha coluna e se espalhava por cada membro.

Mas o Diabo não desceu. Com metade de seu corpo para fora do alçapão a criatura fazia força com as patas traseiras, que derrapavam no chão liso. Instantes de desespero depois o animal conseguiu tirar seu corpo de dentro do buraco. Mas não o fez sozinho. Preso entre seus dentes protuberantes estava o pescoço do último homem a descer pelo alçapão. O Diabo arrastou o corpo inerte até o corredor e lambeu faminto o sangue que escorria da ferida. No fundo da imagem mostrada pela câmera pudemos ver quando um dos outros dois homens colocou metade do corpo pra fora e disparou seu rifle. Não ouvimos o tiro através da porta, nem pudemos ver se o disparo atingiu o alvo, mas o que aconteceu a seguir foi ainda mais difícil de entender.

O Diabo, atingido ou não, avançou assim que percebeu a presença do perigo, e no instante seguinte se jogava em cima do atirador. Seus dentes cravaram fundo no braço do homem, que ficou tentando se desvencilhar desesperadamente. Amedrontado e visivelmente tomado pela dor o pobre coitado foi arrastado para fora do alçapão ainda se debatendo. O último homem surgiu então na abertura no chão. Primeiro colocou a cabeça para fora, procurando o inimigo, então apoiou o rifle no chão e apontou para os Diabo e seu companheiro, que lutavam por cima do cadáver da primeira vítima. Era obviamente impossível um tiro limpo naquelas condições, mas o disparo foi feito. Instantâneamente a luta acabou. O homem e o diabo estavam imóveis, caídos um por cima do outro.

Assustado e sozinho, o último dos homens de roupa camuflada passou correndo por cima dos corpos no corredor, sem se importar com os gemidos e espasmos de dor do companheiro ferido.

-Nuke, ele sabe do esconderijo! -berrou Passan, saindo do torpor que o dominou durante toda a luta.

Agora eu era o caçador. E a caça não podia escapar.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

86. Caçadores de Diabos

Passan não estava feliz. Mesmo o conhecendo a poucas horas era visível sua irritação com tudo aquilo. Seus quase vinte anos de sobrevivente tinham sido o mais planejados e previsíveis possível, mas as últimas vinte e quatro horas tinham sido uma surpresa atrás da outra. Pensei que ele pudesse por a culpa em mim, mas felizmente não o fez. Simplesmente sentou em frente a um dos monitores, digitou alguma coisa e então ficou com o dedo em cima de um botão do teclado.

-Desgraçados, se entrarem aqui vai ser um problema... -esbravejou Passan, sem esconder a irritação. -Desmiolados de merda, deviam ter ficado na fossa onde se criaram... junto com os outros da ganguezinha.

Lisie arregalou os olhos para Passan, e então desviou o olhar para mim com preocupação. Entendi de imediato o que ela queria dizer: Passan pretendia detonar explosivos caso aqueles homens entrassem no prédio. Precisei intervir:

-Passan, você vai explodi-los? -perguntei tentando me mostrar calmo.

-É claro...

-Mas... bem, isso não pode derrubar a entrada do prédio? Ou mesmo ele todo? Vamos acabar presos!

-Claro que não! Não coloquei tantos explosivos assim! -sua voz era de irritação. -Eu coloquei só algumas cargas, e... -percebi a exitação de Passan e soube que ele não era bom com explosivos o suficiente para saber quão grande seria a explosão.

-Passan, vamos deixar que eles entrem, vasculhem o que queiram e vão embora. Nem sabemos se eles vão entrar, e se entrarem provavelmente vão querer apenas o Diabo. Além do mais, você me deixou entrar e não me explodiu.

-Só deixei porque Lisie pediu, do contrário... -e dizendo isso tirou o dedo do botão. Uma sensação de alívio se espalhou por mim e diminuiu a tensão em meus músculos ao ver que não morreríamos soterrados por concreto e ferro, mas também em saber que Lisie tinha feito o pedido para que eu entrasse no esconderijo. -Tudo bem, vamos ver o que eles querem. Mas se der merda, eu te dou de comida àquele Diabo.

Minutos depois os três homens camuflados se aproximaram da escada de entrada do prédio, portavam antigos rifles de caça com mira telescópica e levavam facas na cintura. Passan se moveu nervosamente na enorme cadeira giratória que ficava logo abaixo do telão das câmeras de vigilância. Os homens subiram a escada de armas em punho, observaram rapidamente o hall de entrada e seguiram para o corredor. Passan apertou os braços da cadeira com força, visivelmente tenso. O caçador mais a frente agachou-se na entrada do corredor e passou os dedos em uma pequena mancha de sangue, então levou-os à boca e os lambeu. Em seguida apontou para o fundo do corredor e pôs-se de pé. Os três ergueram as armas e apoiaram-nas nos ombros, engatilhando uma bala na agulha.

Em outra câmera, o Diabo eriçava-se em seu esconderijo entre dois blocos de concreto. Dentro do abrigo Passan prendia a respiração.

A caçada ia começar. Apenas não sabíamos quem era a caça, ou o caçador.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

85. Farejados

Meus músculos se contraíram em uma fração de segundo e em seguida me impulsionaram para frente com toda a força que puderam fornecer. Me joguei contra a pesada porta de aço numa trombada estrondosa. Meu ombro direito latejava devido ao impacto, mas ignorei a dor e girei a trava da porta, selando-nos no interior do abrigo. Passan chegou em seguida com nossas armas, que seguramos e apontamos para a porta, como se esperássemos que um monstro gigantesco fosse abri-la à pancadas. É claro que nada abriu a porta, mas ainda assim esperamos bons minutos ali, a poucos passos de distância. Não podíamos mais ouvir o som de metal sendo raspado, apenas nossa respiração e o chiado constante dos equipamentos da sala ecoavam pelo lugar, e isso servia apenas para aumentar exponencialmente a tensão em nós.

-Chega dessa merda. Lisie, amplie a câmera 15 no telão -disse Passan abaixando a arma e caminhando para o fundo da sala, logo atrás de Lisie. Eu ainda olhei uma vez mais para a porta, conferindo a tranca, e então os segui.

O quadrado da câmera quinze tinha sido ampliado e mostrava, de um ângulo superior, um corredor com uma escada de serviço destruída ao fundo. Logo reconheci o lugar como sendo a entrada do esconderijo. Quem quer que quisesse entrar tinha que obrigatoriamente passar por ali. Apertamos a vista, tentando identificar algo, mas não havia nada ali. Passan navegou pelas diferentes câmeras, tentando encontrar o que havia feito os barulhos, mas em nenhuma delas havia qualquer coisa suspeita.

-Mas que... -resmungou Passan, parando antes de soltar o palavrão mas completando com um soco na mesa. Ele estava visivelmente frustrado e preocupado com a origem dos sons, e sua testa estava molhada de suor.

-Passan, porque não voltamos a imagem da câmera do corredor até a hora em que ouvimos o barulho -lembrou Lisie.

-Verdade, acabamos de usar isso e já me esqueci -Passan parecia mais aliviado com essa alternativa. Provavelmente ele pensara o mesmo que eu: cedo ou tarde teríamos que abrir a porta, fosse no dia seguinte ou semanas depois, e então teríamos de enfrentar quem, ou o que, estivesse ali. Descobrir com o que teríamos de lidar com era essencial.

Passan retrocedeu as imagens da câmera 15 para alguns instantes antes de ouvirmos os sons e então deixou-a prosseguir. Levou poucos segundos, mas todos prendemos a respiração. Um Diabo surgiu na parte debaixo da imagem, onde começava o corredor, e caminhou lentamente em direção à escada. Parou sobre o alçapão e abaixou a cabeça até o chão, voltou ao corredor e fez a mesma coisa nos cantos das paredes.

-Ele nos farejou! -exclamou Lisie, percebendo antes de Passan e eu o que o Diabo fazia ali.

Na imagem, a criatura tinha voltado ao alçapão e começado a raspar com as patas a tampa disfarçada do esconderijo de Passan. Parou por uns instantes, cheirou por todo o hall da escada, e então voltou a raspar o alçapão com ainda mais empenho, mas não por muito tempo. Desistindo de abrir a tampa o Diabo se aproximou da escada atulhada de escombros e se aninhou entre dois blocos de concreto, colocou a cabeça para trás e começou a lamber uma das patas traseiras.

-Essa coisa está fazendo o que? -perguntou Passan, fazendo careta de dúvida e incredulidade.

-Esperando a gente sair para nos atacar -respondeu Lisie, como se fosse óbvia a conclusão.

-Acho que não... acho ele está é se escondendo -e apontei para uma das câmeras que mostrava a rua do prédio.

Naquele exato momento três figuras vestindo roupas camufladas cruzavam a rua e sumiam atrás de um prédio.

sábado, 4 de setembro de 2010

84. À Luz do Dia

Todas as câmeras do interior do prédio mostravam a mesma imagem assustadora. Durante todo o tempo em que Passan e eu conversamos no hall do prédio havia algo esgueirando-se pelas sombras, observando-nos. Fitamos a tela atônitos, sem acreditar. Apenas quando descemos pelo alçapão e a criatura deixou o prédio é que finalmente percebemos o que era. E isso só nos deixou ainda mais espantados.

-É um... -começou Lisie a falar, mas foi completada por Passan.

-Diabo de Bermil.

-Como pode? À luz do dia?! -sua voz era um misto de surpresa e medo. -Eu... estava lá fora... na mesma hora... não é possível!

Continuamos observando as imagens. O cachorro, que não passava de um punhado de pele e pelos sobre uma frágil carcaça de ossos, desceu pela escadaria do prédio em direção à rua, parando ocasionalmente para lamber as poças de sangue seco no chão. Caminhava lentamente, com a cabeça baixa e olhar assustado. Seus dentes afiados ficavam à amostra, mal sendo cobertos pela pele esticada, e uma de suas patas traseiras parecia ferida. Era a segunda vez em que eu via um Diabo, mas tinha ouvido muitas histórias dos soldados do acampamento de Amrak. Sabia que os Diabos saiam apenas durante a noite, passando todo o dia escondidos em tocas nos escombros. Todos temiam encontrar uma dessas tocas durante as escavações nos escombros, por isso nenhum soldado fazia o trabalho e esse tipo de história era totalmente proibida próxima aos trabalhadores. E, portanto, sabia quão estranho era ver uma daquelas criaturas ali, no meio da rua, à luz do dia.

-Vivo nesta cidade desde muito antes de sua destruição. Vi essas criaturas surgirem dos escombros e se reproduzirem -contou Passan, ainda com os olhos vidrados. -Vi o terror e o medo que elas causam em quem passa por aqui crescer junto com elas. Mas nunca havia visto um Diabo vi à luz do dia. Algo está errado. Muito errado.

De fato algo estava muito estranho naquilo tudo. Nem mesmo os mais amedrontados pelas histórias dos Diabos poderiam imaginá-los caminhando pelas ruínas de Bermil tranqüilamente à luz do dia. O amanhecer sempre significou o fim dos uivos e ganidos que inundam a noite e atormentam o sono daqueles que vivem no que restou da cidade, e pensar que as horas de claridade também seriam assombradas por aquelas criaturas era algo assustador demais. O medo sempre foi uma constante na vida de quem luta para sobreviver sob os escombros da sociedade do mundo antigo, mas os Diabos davam uma nova dimensão a esse medo, principalmente àqueles que um dia tiveram um cão como companheiro.

Subitamente, arrancando-nos de nossos devaneios e trazendo-nos de volta à realidade, um barulho metálico ecoou pelo corredor. O som de metal sendo arranhado bateu em meus ouvidos como num tambor. Meu coração disparou e um arrepio desceu pela coluna, ouriçando os pelos de minhas costas.

-Lisie, você trancou as portas quando desceu? -falou Passan, com pavor na voz.

A pergunta fora retórica. A porta de aço reforçado estava semi-aberta, e pelo vão deixado por ela a escuridão do corredor tentava se arrastar para dentro.

-Fodeu.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

83. Luz, Câmera, Sombra

A tela que se iluminou estava vazia. Bom, não vazia, já que mostrava uma esquina atulhada de escombros e uma rua cheia de esqueletos de prédios semi-destruídos, mas nada de anormal estava à vista. Passan soltou um risinho e resmungou alguma coisa, puxou um teclado mais para perto e se pôs a digitar. Instantes depois a tela piscou novamente, mas dessa vez a imagem exibida era escura, em tons de preto e azul. Primeiro não entendi, mas logo manchas vermelho e laranja começaram a se materializar em meio à escuridão. Passan tinha mudado para a câmera para visão de calor, e agora quem se escondia em meio aos escombros brilhava como lanternas na noite.

-Eles são de uma gangue do outro lado da cidade. Comerciei com eles nos primeiros anos, mas um dia, quando estavam doidões, tentaram me forçar a mostrar meu esconderijo e quase me mataram. Deixei três deles de jantar para os diabos e nunca mais troquei nada com eles, ainda que insistam todos os anos. Devem estar desesperados atrás de suprimentos e equipamentos pois cruzam essa região pelo menos uma vez por mês. Talvez estejam me procurando, mas quase nem me preocupo, são burros demais. Acho que eles pensam que ninguém consegue vê-los com aquelas roupas camufladas.

De fato aqueles caras eram difíceis de ser ver quando estavam parados, a espera de uma vítima, mas qualquer um que estivesse observando uma passagem ou uma rua com um pouco mais de atenção seria capaz de vê-los se aproximando. Mas Passan não estava para brincadeira, ainda que duvidasse da capacidade intelectual daquela gangue de mortos de fome, e não tirou os olhos do monitor. Seu indicador estava apoiado em um dos botões do teclado, pronto para ser apertado. Não resisti e perguntei:

-Por acaso esse botão aí vai detonar uma bomba nuclear, é?

-Nuclear não, mas se aqueles imbecis entrarem aqui -respondeu Passan em tom um pouco sério- vão ter uma bela dor de cabeça pra juntar as partes de seus corpos pelo chão.

Dei uma risada, comi o último pêssego em calda da lata e comecei a observar o imenso telão no fundo da sala que mostrava todas as câmeras instaladas por Passan. Era uma tela quadrada de pelo menos um metro e meio, dividida em vinte e cinco quadrados menores, cada um mostrando uma imagem diferente. Uns 4 ou 5 quadrados mostravam apenas chuvisco, de modo que pelo menos 20 câmeras estavam em funcionamento. Lisie se aproximou para olhar o monitor e senti quando seu braço quase esbarrou no meu, fazendo os pelos arrepiarem em uma onda até o ombro.

-Vamos ver o seu susto de hoje cedo? -e dizendo isso clicou em um dos quadrados da tela que mostrava o hall de entrada do prédio. O quadrado aumentou de tamanho, ocupando alguns dos quadrados adjacentes e botões surgiram próximos à base. Lisie apertou o botão "voltar" várias vezes, mas a imagem mostrada pareceu imóvel. Apenas a variação de luminosidade do hall indicava o passar das horas. Quando a luz começou a ficar mais fraca e uma figura se moveu rápido pela tela Lisie parou. -Pronto, Passan está se aproximando de você, de braços erguidos. E você... tremendo como uma vara verde! -pôs-se a gargalhar, apontando o dedo para mim.

-Devo admitir que fiquei com medo de você se assustar e puxar o gatilho... Nunca se sabe, não é? -Passan tinha decidido que o caminho tomado pela gangue de homens camuflados seguia em uma direção segura e tinha se juntado à Lisie na chacota contra mim. -Um cachorrinho assustado é mais perigoso do que parece... ainda mais quando dão a ele um Ak-47!

Eu nunca tinha visto um gato de verdade, apenas fotos em revistas e desenhos em livros, mas sorri amarelo, fazendo careta, quando ambos se puseram a rir juntos de mim. Estava pensando em algo para tirar sarro dos dois quando uma coisa me chamou a atenção no telão e me fez virar o rosto de repente.

-Vocês viram aquilo?!

-Aquilo o que? -retrucou Passan, arregalando os olhos e se aproximando da tela.

-Volte a imagem, Lisie... isso, pare!

Eu e Passan cruzávamos o hall do prédio e nos dirigíamos para o corredor onde ficava o alçapão. Pouco antes de sumirmos da visão da câmera uma sombra cruzou uma porta do outro lado do salão. Lisie retrocedeu a imagem quadro a quadro, e parou no momento exato em que uma mancha escura saltava de um lado ao outro da porta.

sábado, 28 de agosto de 2010

82. Pêssegos em Calda

Passamos horas jogando conversa fora. Passan trouxe latas de frutas em calda e uma enorme garrafa de refrigerante. Pensei no quanto aquelas coisas valeriam em uma cidade como Tradeport, mas Passan não parecia saber disso, ou não se importava, e eu decidi que não me importaria também. No momento queria me preocupar apenas em aproveitar aquelas iguarias e a boa companhia dos meu novos amigos.

Logo descobri que fora Lisie quem disparou o sinalizador na noite anterior. Ela havia se demorado em uma de suas incursões pela cidade, em busca de comida ou qualquer coisa útil, e acabou cercada pelos Diabos em um prédio próximo. Então Passan, vencendo sua aversão em sair de seu esconderijo, principalmente durante a noite, saiu em resgate de sua nova pupila.

-Ela me lembra minha irmã. Não podia deixá-la à própria sorte -me confidenciou Passan, meio bêbado com o excesso de açúcar no sangue depois de uma lata inteira de doce de pêssego.

Lisie já estava morando ali havia algum tempo. Sua unidade do Rosa Radioativa fora debandada depois de um combate sangrento e Nova Bermil tinha sido uma feliz coincidência em seu caminho sem rumo. À beira da morte, de fome e frio, Passan a encontrou desmaiada em um beco da cidade. Seu instinto foi deixá-la lá, à própria sorte, como havia feito outras tantas vezes com outros que encontrou. Passan temia, com razão, que a localização de seu esconderijo pudesse ser delatada quando a pessoa se recuperasse e quisesse ir embora, e por essa razão tinha vencido o instinto de ajudar todas as vezes. Mas certo dia, ao se deparar com uma pilha magricela de pele, ossos e farrapos, não pode deixar de se apiedar e se aproximou. Reconheceu a rosa no símbolo do RR em meio aos restos de roupa que cobriam aquela criatura e decidiu deixar os riscos de lado. Quem quer que lutasse pelo RR, acreditava, não poderia ser má pessoa. Passan poderia ter pensado que alguém simplesmente tinha encontrado aquelas roupas em algum cadáver, tinha matado um dos soldados do RR e tomado sua roupa, ou que fosse um traidor deserdado, mas felizmente não pensou. E Lisie estava salva.

Agora eles se ajudavam. Passan tinha mapas e equipamentos, mas não tinha a habilidade e a agilidade necessárias para incursões pela cidade, enquanto Lisie não tinha nada além de suas habilidades e seus treinamentos militares. Juntando forças eles agora tinham recuperado suprimentos e equipamentos de todos os prédios próximos, de modo que Passan pode terminar de montar sua rede de vigilância em torno do esconderijo. Nada nem ninguém passava a menos de duas quadras de distância do subsolo daquele prédio sem que Passan soubesse. E enquanto me explicava todos os censores, câmeras e auto-falantes espalhados pelas redondezas um bipe começou a ser emitido de um dos equipamentos da sala, sendo seguido imediatamente por um monitor de computador, que piscou e ligou exibindo a imagem de uma das câmeras externas.

-A cada ano eles vem mais cedo... -falou Passan quase num sussuro, metendo outra colher de pêssegos na boca.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

81. Lisie

Quando o rádio chiou em cima da mesa e uma voz feminina chamou por Passan quase tive um ataque fulminante. Mas foi quando ela entrou no abrigo que o Universo parou por um instante para admirá-la. Acho que esqueci de respirar por alguns minutos, pois quando dei por mim estava ofegante.

-Passan, veja o que encontrei no terceiro andar. Parece que... -sua voz se perdeu quando seu olhar cruzou o meu. Seus lábios se moveram, mas não falaram. Seus olhos arregalaram e o que quer que estivesse segurando foi ao chão. Achei que fosse gritar de medo, mas uma única palavra inundou a sala. -Nuke!

Com o mesmo olhar de que me lembrava a garota se jogou contra mim em um abraço apertado. Muitos meses tinham se passado desde que a vi pela primeira vez. Na verdade, ela me vira primeiro. Eu havia acabado de fugir do acampamento dos Escravizadores e tinha passado boa parte da noite correndo na escuridão. Pouco antes de cair exausto entrei em um veículo abandonado e adormeci profundamente. Pouco depois estava sob a guarda do RR, o exército rebelde Rosa Radioativa, que cuidou dos meus ferimentos e me deu roupas e equipamentos para continuar minha jornada solitária. Mas o RR também levou algo de mim, dentro dos olhos azuis de uma de suas combatentes. E apenas agora eu me dava conta disso.

-Pelo visto já se conhecem mesmo, não é? -disse Passan com um sorriso. -Venham, vamos nos sentar, comer alguma coisa e botar a conversa em dia. Tenho uma ou duas latas de feijão que venho guardando pra uma ocasião como esta.

Passan trouxe os feijões e um vidro de geléia de amoras. Eu tenho vagas lembranças de ter comido feijão quando era um garotinho, mas geléia era a primeira vez que comia. Não me lembro bem do gosto, mas acho que era bom. Eu estava mais interessado em ouvir o que aqueles olhos azuis tinham a dizer, de modo que comer, pensar ou falar estavam em segundo, talvez até em terceiro plano.

-Obrigada por tê-lo deixado entrar, Passan. Mas não precisava tê-lo assustado daquele jeito, não é? Eu ouvi tudo lá de cima. Até que foi engraçado, mas o coitadinho deve ter morrido de medo -então eles já sabiam quem eu era. Ela sabia! -Veja como ele ainda está meio avoado. Deve estar assustado ainda.

Eu estava mesmo avoado, e realmente era por causa do susto. Mas não do que Passan me dera, e sim do que ela me dera. Sua presença ali era quase inacreditável e completamente inesperada. Não sabia o que dizer, e em minha mente só ficava imaginando quais as chances de isso ter acontecido. Ainda assim, depois de quase engolir a colher e engasgar com o feijão tentando juntar coragem, falei pela primeira vez.

-A-ainda não nos apresentamos -comecei sem jeito. -B-bom, você sabe meu nome... mas, eu não...

-Lisie. Muito prazer!

terça-feira, 27 de julho de 2010

80. Passado de Passan

O aviso de bombardeio tinha sido dado em todas as cidades. Em todas as cidades do mundo, talvez. Não havia local seguro conhecido. Todos os locais eram alvos potenciais, tanto urbanos quanto rurais. Poucos conseguiram deixar as cidades onde estavam para encontrar amigos ou familiares em outras cidades. As rodovias congestionaram antes que os destinos fossem alcançados e, com o passar do tempo, sem policiamento, tornaram-se intermináveis campos de batalha, onde a população com medo e sem auxílio se enfrentava irracionalmente até a morte. O exército foi convocado a intervir, mas não havia contingente suficiente para cobrir todas as estradas, a enorme maioria das tropas já estava mobilizada nas fronteiras ou em outros países, preparando-se para a guerra iminente.

Eu e uns poucos colegas de trabalho morávamos em outras cidades, e portanto não tivemos para onde ir. Nos abrigamos no estacionamento subterrâneo do prédio, sobrevivendo com os suprimentos estocados no porão por ordem do governo. Mas comida não alimenta o espírito, e meus companheiros não suportaram a dor da espera. Mesmo as ruas tomadas por saqueadores e gangues parecia menos perigosa que ficar aprisionado em um lugar escuro com sua própria mente. E um dia antes de o céu irromper em chamas eles deixaram o prédio. Nunca mais os vi.

Mesmo sozinho, comecei a organizar e colocar em funcionamento os equipamentos que haviamos transportado para o estacionamento. Tínhamos a esperança de que a guerra fosse passageira e que nosso trabalho depois dela fosse ajudar a população a se reestabelecer. Trabalhávamos em uma rádio de alcançe nacional, transmitindo notícias à centenas de cidades, e decidi que faria sozinho o máximo que pudesse. Mas a guerra não acabou, e então não havia mais o que transmitir.

Quando a cidade parou de fumegar e o fogo consumiu seu último pedaço de madeira, tropas começaram a marchar. Mas mesmo os exércitos, um dia, terminaram de se exterminar, e apenas almas perdidas passaram a vagar por Nova Bermil. Inclusive eu. E foi em uma de minhas longas caminhadas pelos escombros que encontrei algo que me fez voltar ao trabalho. Em uma casa, no subúrbio da cidade, havia uma garagem com um carro esporte. Fiquei imaginando como um carro daquele ainda estava ali, intacto. Me aproximei um pouco e logo ficou claro o motivo de não terem tocado no veículo: uma ogiva havia atravessado o teto de madeira e assentado no banco traseiro. Eu não me importava, naquela época, em ser varrido por uma explosão, e sentei-me no banco ao lado, só para ouvir o tic-tac da morte vindo daquele tubo de metal recheado de explosivos.

Adormeci com o som e acordei apenas com o frio da noite. Quando saltei fora do carro pisei em um casaco esquecido ali, semanas atrás, e achei-me sortudo por não ter de caminhar em companhia do frio. Mas foi apenas quando retornei ao porão do prédio que me dei conta da sorte que havia no bolso do casaco: um mini music-player.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

79. Alçapão

Segui Passan pelos corredores do primeiro andar do prédio. Eu já havia checado todos aqueles cômodos no dia anterior, mas nada disse a Passan, que parecia determinado em seus passos pesados. Seguimos até as escadas de emergência, protegidas no passado por portas-corta fogo, cujo acesso aos andares superiores estava bloqueado por uma muralha de destroços. Passan percebeu meu olhar perdido e falou:

-Relaxe, não vamos por aí. Os militares bloquearam todas as passagens para os andares superiores, de todos os prédios da cidade. Mataram todos os que encontraram e se certificaram de não deixar esconderijos para atiradores. Nós vamos por aqui.

Passan se abaixou com dificuldades debaixo do vão da escada. Ali, camuflado por escombros de uma explosão que demoliu a porta e parte da parede do corredor, estava um alçapão. Uma escada de aço inoxidável descia em meio à escuridão. Espremendo a barriga protuberante Passan desceu os degraus lentamente. Segui-o, esforçando-me para fazer minha mochila caber na abertura. Dez metros de puro concreto abaixo havia uma pequena sala com uma única porta de aço. Não havia maçaneta ou tranca, mas ao lado havia um scanner de cartão, brilhando com seus LEDs fluorescentes. Passan tirou um crachá de identificação do bolso e passou na abertura. A porta emitiu um estalo e girou, revelando um corredor mal iluminado e outra uma porta.

-Se alguém lá dentro fechar essa segunda porta, não há como abrir pelo lado de fora. Uma medida para que hackers não pudessem entrar no abrigo. Veja. Essas travas de aço resistiriam até mesmo à explosivos. Sem falar que...

Tudo o que Passan disse a seguir não foi captado por meu cérebro. Eu tinha caminhado pelo pequeno corredor que havia adiante e entrado pela porta e, a partir de então minha mente estava abalada, tentando compreender a enorme quantidade de equipamentos e luzes piscantes que havia naquele lugar. Um zumbido fazia a trilha sonora da sala e me mantinha em transe. Na parede oposta havia um gigantesco monitor, cobrindo metade da parede, cuja tela estava dividida em quadrados menores, cada qual mostrando uma imagem diferente. Já me aproximava para observar melhor quando uma voz ecoou pela sala vinda de um robusto aparelho de rádio.

-Passan, na escuta? Passan? - disse uma familiar voz feminina, que me fez um nó na garganta.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

78. Passan

Ainda descia o terceiro degrau quando uma voz estrondosa ecoou pelo hall de entrada do prédio.

-ESPERE. ESPERE, GAROTO.

Meus músculos se retesaram, da testa ao calcanhar, e em uma fração de segundo me jogaram contra a parede. Podia sentir a adrenalina correndo em minhas veias, enquanto agarrava com força minha arma. Olhei de um lado ao outro da rua, mas nada havia além de escombros e neve. Chequei mais uma vez, apertando os olhos para enxergar mais longe, mas nada se movia.

-CALMA GAROTO, CALMA.

Lutei para que minhas pernas me obedecessem. Retornei ao interior do prédio em um só pulo, com o dedo no gatilho da arma. Também não havia ninguém ali. Mas a voz continuou:

-GAROTO, SE PROMETER ABAIXAR A ARMA, EU APAREÇO.

Mas é claro!, pensei. Claro que eu não abaixaria. Voltei para o local onde havia feito a fogueira, de lá eu podia observar a rua sem me expor. No peito, meu coração estava a ponto de explodir, mas continuava tentando bater mais e mais rápido. Olhei novamente pela rua. Nada.

-OLHA, GAROTO, VOU APARECER, MAS VÊ SE NÃO APERTA ESSE GATILHO, NÃO QUERO TE FAZER MAL.

Virei-me de costas para a parede e fiquei observando a rua com o canto do olho, pela borda da janela. Minhas mãos comprimiam o cabo da arma, meu indicador roçava o gatilho, pronto para disparar. Quase molhei as calças quando um homem rechonchudo, de barba farta e cabelos sebosos cruzou a recepção do prédio em minha direção. Um microfone com fones-de-ouvido pendia em seu pescoço. O homem caminhava devagar, com os braços abertos e olhos meio assustados.

-Q-quem é você? -gaguejei, apontando a arma em sua direção.

-EU SOU... - a voz reverberou nas paredes. O homem fez uma careta e então, num movimento lento e calculado, sem tirar os olhos de mim, apertou um botão num dos fones do aparelho. -Alô? Isso. Desculpe. Agora sim, podemos conversar. Meu nome é Passan, e o seu?

Ainda hoje não acredito em minha sorte quando relembro momentos como este. O homem podia ser um louco, assassino, canibal, em busca de sua próxima presa fácil. Mas isso sequer me passou pela cabeça naquele momento. Seu olhar não parecia esconder segundas intenções, e meu sexto sentido dizia que era de confiança. Quando me estendeu a mão, querendo me cumprimentar, estiquei-lhe a minha. Alguma coisa naquele homem me lembrava Thompson, e isso trazia algum conforto em mim que não podia ser ignorado.

Lembrei-me também de Anne, Lyriel, Yoseph e até de Von Ricky. Bons amigos, por mais curta que minha convivência com eles tenha sido. E, naquelas lembranças, não reparei quando os primeiros raios de sol que aquele mundo via em duas décadas escaparam de sua prisão de nuvens e iluminaram a entrada do prédio.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

77. Sono, Sonho e Sangue

Perdi a noção do tempo. Vaguei sem rumo pelas ruas, sorrateiro. As sombras da noite pareciam se mover, fechando-se sobre mim. Cada canto escuro parecia esconder olhos a espreita. Ao longe podia ouvir os uivos e ganidos dos Diabos. A brisa que soprava incessante gelava meu corpo como se eu estivesse nu. E, bem verdade, era assim que me sentia dentro de cidades. Muitos esconderijos, armadilhas e inimigos bastando atravessar uma rua não é boa pedida para um cara sozinho e mal equipado. Já espaços abertos são perigosos contra rifles, claro, mas olhos atentos e um pouco de sorte são suficientes para a maioria dos problemas.

Muito tempo depois de deixar o acampamento comecei a observar a silhueta que a cidade formava contra os primeiros raios de sol que venciam a grossa camada de nuvens. A aproximação do amanhecer trazia um pouco de esperança. Não que eu temesse ficar preso ou mesmo morrer na cidade, mas um novo dia era sempre um novo dia, por mais clichê que isso soasse nos livros em que li. E quando minhas pernas pediam descanso e meus olhos começavam a se fechar pela falta de sono de dois dias, procurei abrigo em um prédio abandonado. As janelas tinham se quebrado há muito, apenas alguns lugares ainda tinham uma fraca camada de tinta cobrindo os tijolos, as portas tinham sido arrancadas, e no topo da escada que levava ao hall de entrada apenas os vasos de planta ainda mantinham-se inteiros... sem planta alguma.

Subi os degraus de três em três. Sair dos destroços da rua era um alívio, mas pensar em descansar era ainda mais reconfortante. As nuvens no céu se iluminavam quando terminei de fazer uma rápida inspeção no andar térreo do prédio. A porta para os andares de cima estava trancada, e não parecia haver outro modo de subir. Aproveitei para juntar uma boa quantidade de madeira. Acendi uma bem-vinda fogueira próxima a uma janela, de modo que a fumaça não tomaria conta do lugar, estiquei-me no saco-de-dormir e esperei que o cansaço dominasse meu corpo e me levasse para o mundo dos sonhos. E não demorou muito.

Acordei assustado. O som de uma explosão ecoou pelas ruas. Em seguida o som de sirenes anti-aéreas inundou a brisa que entrava pela janela. Em seguida o barulho das correntes de um blindado e de uma tropa em marcha começou a aumentar na rua. Encolhi-me o máximo que pude na quina das paredes, já com minha arma em punho, esperando que um exército invadisse o prédio. De repente, o som de um foguete cortando o ar e uma explosão de fogo e ferro contorcido, iniciou o combate. O som das metralhadoras cuspindo balas era frenético, enquanto o de corpos tendo suas cabeças dilaceradas por disparos certeiros era inconfundível.

Quando tudo silenciou, ainda esperei alguns instantes mais. Finalmente ergui a cabeça pela janela e olhei para a rua. Não havia fogo, destroços de veículos, corpos ou qualquer coisa que remetesse a um combate recente. Ainda assustado, pus-me de pé e segui para a porta de entrada. Finalmente, do outro lado da rua, avistei morte. Não me aproximei, mas pude ver o corpo de alguns Diabos dilacerados em cima de uma pilha de detritos. A julgar pelos ratos que atacavam os corpos, as mortes eram recentes. Uma trilha de sangue atravessava a rua e seguia para o prédio em que eu estava. Algo ou alguém tinha se ferido e buscado abrigo ali também. Eu não estava sozinho.

Com mais dúvidas em mente retornei à fogueira. Uma batalha sangrenta deveria ter acontecido do lado de fora, mas simplesmente desapareceu. Uma trilha de sangue entrava no prédio, mas não seguia a lugar nenhum dentro dele. E, finalmente, mas de maneira nenhuma menos importante, eu havia posto madeira na fogueira suficiente para durar oito longas horas de sono, mas as cinzas e o carvão restantes estavam gelados como a neve do lado de fora. Peguei meus pertences, guardei o saco-de-dormir e me preparei para voltar à caminhar. Antes de sair, lembrei de adicionar mais um motivo para não gostar de cidades: coisas estranhas acontecem dentro delas.

domingo, 31 de janeiro de 2010

73. Diabos de Bermil

Meu primeiro turno de doze horas foi ainda no dia em que cheguei a Bermil. Um grupo de dez trabalhadores me tinha sido designado, e sua segurança dependia de mim. Meu trabalho era simples: impedir que algum deles morresse. Nos dirigimos à montanha de escombros na qual eles trabalhariam, a cerca de um quilómetro do acampamento, e de lá sondei os arredores. Estávamos sobre os restos de um prédio de escritórios de vinte andares, que ocupara metade da quadra antes de desabar, e que agora estava esparramado sobre prédios menores. Era um lugar com boas chances de se encontrar peças de computador, o que dava ânimo extra ao trabalho.

Deixei que trabalhassem e me posicionei no segundo andar de um sobrado do outro lado da rua. Estávamos em uma área considerada segura, mas não eram raros os casos de soldados abatidos nessas áreas. Sentado em uma pilha de tijolos, podia observar o grupo trabalhando sob as placas de concreto, ao mesmo tempo em que tinha uma visão desobstruída dos dois lados da rua e de metade da rua perpendicular. Um casal de corujas brancas foi o maior perigo que avistei durante todo o dia. Pelo menos para elas ainda havia comida de sobra no mundo, já que ratos e ratazanas se fartando com tudo o conseguiam roer era o que não faltava em Bermil. Retornamos ao anoitecer para o acampamento, sem que muito tivesse sido recuperado do antigo prédio.

Aquele primeiro dia tinha me animado, não tinham acontecido problemas, e todos estavam vivos e intactos de volta ao acampamento, fazendo-me esquecer um pouco da tristeza que tinha se abatido em mim por deixar Anne e Thompson em Amrak sem aviso. É claro, eu não tinha tido muita escolha entre vir ou não para Bermil, mas também não tinha me esforçado em avisá-los. Mas logo eles me procurariam e alguém os avisaria de onde eu estava, eu esperava. E absorto nesses pensamentos não vi o segundo dia passar, chegando a meu segundo turno, dessa vez noturno.

Dessa vez eu não teria que proteger ninguém. Trabalhar a noite não era arriscado, como descobri logo, era impossível. Um soldado veterano me acompanhou nessa primeira noite em claro em Bermil. Seu nome era Prank, tinha olhos duros de quem já viu mortes demais e viveu além do que gostaria, e sua barba estava por fazer. Mas ainda que sua função fosse me ensinar, não precisei de muitas palavras ou horas de vigia para aprender com o que eu teria de me preocupar. Nos abrigamos no mesmo lugar em que fiz meu primeiro turno, mas dessa vez Prank barricou a porta com escombros. Tão logo a noite avançou sobre as cidade em ruínas sombras começaram a se mexer por toda a parte, grunhindo, rosnando e uivando. Os soldados os chamavam de Diabos, e à primeira visão daqueles dentes afiados e olhos vermelhos, concordei.

76. Voluntário

-Como todos devem estar sabendo, um pedido de ajuda foi avistado no céu cerca de meia hora atrás -disse o general -o qual sequer soube o nome- que comandava as tropas em Bermil àqueles que estava ali. -Não temos informações de que seja algum dos nossos, e nem dispomos de um contingente que permita o envio de um grupo de ajuda neste momento. Ao amanhecer um dos grupos de extração fará uma breve missão de reconhecimento e...

-Senhor, eu me voluntário para a missão -falei de subto, fazendo alguns soldados próximos me olharem com espanto.

-Não me lembro de ter pedido voluntários, soldado -retrucou o general, enfatizando a última palavra. Abriu levemente os lábios, como se fosse continuar o discurso, quando parou e pensou um segundo ou dois, então virou-se novamente para mim e continuou. -Muito bem, soldado. Se está tão animado assim, vá. Pegue seus pertences, o que lhe é direito do soldo e deixe este acampamento. Dou-lhe uma hora.

Todos pareciam ter prendido a respiração para ouvirem com clareza cada palavra dita pelo general. Não se ouvia nem mesmo o vento. Ignorando todos os olhares bati continência, dei de costas e segui para minha barraca, onde recolhi minha mochila. Em seguida me dirigi ao depósito de suprimentos e equipamentos, onde me pagaram pelos meses de trabalho em Amrak e as semanas a serviço do exército. Meu salário não havia rendido muito, mas descobri que Thompson havia vendido o carro que Mark nos dera em Tradeport e mandado o dinheiro a mim, de modo que pude comprar roupas, suprimentos e armas. Gastei cada crédito que pude antes de me tirarem a pulseira, não deixaria para eles nem um tostão ganho com meu suor.

Não houveram despedidas ou conselhos. Dois soldados me guiaram para a saída do acampamento, e dali olharam com olhos frios eu me afastar. Sequer pude esperar o amanhecer, mas me consolava saber que os Diabos já deviam estar se fartando com a carne de um pobre coitado a essa hora. Eu não esperava encontrar sobreviventes, nem mesmo sabia em que direção seguir. Sabia apenas que aquela era mais uma das oportunidades que apareciam em minha infinita jornada para que eu mudasse de rumo e seguisse adiante. Eu era novamente livre, e adiante de mim havia apenas um vasto jardim de neve e ruínas pronto para explorar.

-Nuke! Nuke! -chamou-me alguém, enquanto eu já me adiantava pelas ruas de Bermil. Virei-me e vi Prank correndo em minha direção com alguma coisa nas mãos. -Um amigo seu enviou isso algumas horas atrás. Acabei de encontrar lá na sua barraca, parece que só entregaram agora. Ainda bem que cheguei a tempo.

Era o pequeno pé de morangos de Thompson. As folhas estavam amassadas e ressecadas pelo frio, mas parecia bastante saudável para uma planta tão frágil em condições tão adversas.

75. Fogo no Céu

Podíamos ouvir as garras arranhando a parede e a barricada no andar debaixo. Mesmo a quatro metros de altura, a janela parecia ser apenas um pouco mais alta do que os cães conseguiam saltar. O focinho de um deles chegou a aparecer de relance, e em uma fração de segundo Prank conteve o impulso de disparar. Mesmo sob o vento que corria pelas ruas destruídas era possível distinguir o som de dezenas de criaturas cheirando e fuçando em cada canto, procurando um modo de nos alcançar. A tensão quase podia ser sentida com as mãos. Por um tempo incontável mal respiramos, na esperança que desistissem de nós, mas a possibilidade de carne fresca dava àquelas aberrações uma determinação impossível.

De olhos vidrados na janela, Prank mexeu as pernas num espasmo estranho. Pensei que ele se levantaria e pularia pela janela, mas então chacoalhou a cabeça e piscou vigorosamente, como se voltasse à realidade. Olhou para mim e passou o dedão pela garganta, num sinal entendido pelos militares como uma ordem para matar. Fiz que não com a cabeça, mas ele simplesmente se levantou, apoiou a metralhadora no ombro e se aproximou da janela procurando um alvo. Eu já me preparava para levantar e me juntar à matança quando um grito quase inaudível fez tudo silenciar. Ao longe alguém gritava de desespero, em meio a disparos de espingarda. Imediatamente, como uma gigantesca sombra se movendo pela rua, as criaturas que nos cercavam avançaram em direção aos sons.

Lembro-me pouco do que aconteceu em seguida. Sei que Prank e eu olhamos um para o outro e concordamos no mesmo instante que aquela era hora de partir. Pulamos a janela em segundos e desatamos a correr pelos escombros da rua, agora vazia. Corremos sem olhar para trás, e não paramos nem mesmo para ajudar um ao outro quando inevitáveis tropeços e escorregões aconteceram. Quando finalmente nos aproximamos do acampamento de Amrak um enorme facho de luz nos cegou, fazendo-nos parar em uma derrapada. Protegemos os olhos com os braços, mas já estávamos ofuscados. Mal pude ver quando dois homens se aproximaram de nós, de armas em punho, e nos mandaram erguer os braços. Não tínhamos muita escolha, então obedecemos. Eu já suspeitava que o acampamento estivesse tomado, e já me preparava mentalmente para enfrentar o que quer que viria, mas felizmente não houveram surpresas. Um dos guardas tinha vindo comigo de Amrak e me reconheceu.

-Ei, é aquele cara que veio comigo de Amrak. Desculpem amigos, podem abaixar os braços e pegar suas armas. Estamos sendo precavidos, parece que uns tipos estranhos andaram passando perto demais do acampamento.

Sequer tivemos chance de perguntar ou contar algo sobre os Diabos quando um ponto luminoso escalou o breu da noite e estourou em uma cascata de fagulhas pouco abaixo da camada de nuvens manchando de vermelho-sangue a escuridão. Alguém pedia ajuda do outro lado das ruínas de Bermil.

74. Melhor Amigo do Homem

De cada fenda, vão ou buraco uma sombra se ergueu. Eram centenas, talvez milhares. Pareciam rastejar na poeira e na neve, por entre os destroços da cidade. Se espalharam pelas ruas, farejando e fuçando por todo lado. Aqui e ali um rato podia ser ouvido tentando correr por sua vida, mas logo uma onda de sombras se mexia e os guinchos do roedor davam lugar ao som de rosnados e ganidos, num emaranhado de corpos lutando pela carne fresca. As brigas e disputas duraram por uma ou duas horas, e só pararam quando um uivo cortou a escuridão. Prank e eu nos encolhemos de súbito, atordoados pela melancolia que se abateu sobre a noite. Não sabíamos de onde vinha, mas era como se todas as mulheres e crianças que morreram naquela cidade chorassem ao mesmo tempo, criando um lamento único e devastador para quem ouvisse.

-Veja, eles estão se amontoando ali -falou Prank, apontando para uma pilha de escombros quase no final da rua.

Com o binóculos podíamos ver claramente as criaturas se reunindo em volta dos restos de um prédio. O uivo ficou ainda mais forte e detrás dos escombros surgiu um enorme animal. Tinha metade da altura de um homem, e provavelmente seria muito maior que um ao ficar sobre as patas traseiras. Seu pelo era curto, sua pele parecia esticada demais sobre o esqueleto e os músculos, suas orelhas eram pontudas e seu rabo era quase tão grande quanto o corpo.

-Esse deve ser o líder da matilha, com certeza -disse Prank, num sussurro quase inaudível.

-Mas o que eles são, afinal?

-Eles já foram um dia o melhor amigo do homem.

-Cães?

-Quando seus donos morreram ou fugiram por causa da guerra, só lhes restou uma opção para sobreviverem: instinto. Aqueles que não sucumbiram pela fome, doenças ou frio, reproduziram-se e tornaram-se no que você vê hoje. Devem ter se misturado com os lobos, e provavelmente são mais fortes e ferozes que eles. Verdadeiras máquinas de matar sobre quatro patas. Podem farejar comida à grande distância. Com certeza sabem que estamos aqui.

Ecoei essas últimas palavras de Prank em minha mente, enquanto reparava que várias daquelas criaturas miravam seus olhares para nossa direção de quando em quando. Eles definitivamente sabiam que estávamos ali. Não havia como eles subirem até nós, a não ser que fossem capazes de saltar mais de quatro metros de altura, mas ainda assim eu não me sentia plenamente seguro. Conferi minha arma e deixei-a em punho. Prank me olhou de soslaio. Pensei que fosse rir de mim, mas então engatilhou a própria arma e deixou-a também à postos. Como se pressentissem nossos temores as criaturas se espalharam novamente pela escuridão num piscar de olhos. E num jogo de gato e rato, apareciam e desapareciam nas sombras. Minutos de tensão culminaram em fungadas e rosnados logo abaixo da janela que escolhemos para fazer vigília.

-Eles sabem que estamos aqui. Estão tramando alguma -sussurrei desconfiado, tentando não deixar o medo transparecer.

-Querem nos assustar, estão brincando conosco. São criaturas inteligentes, mestres da sobrevivência. -Prank não se preocupou em esconder o medo, mas pareceu confiante de que os cães -ou o que quer que fossem- não poderiam nos alcançar ali.

De repente um silêncio tomou conta da noite. Até mesmo a brisa que soprava constante por entre as ruínas da cidade tinha prendido a respiração.

-Que Deus tenha piedade de nós... -ouvi Prank murmurar, fazendo o sinal da cruz.