Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

107. Por do Sol


O gincho agudo e ameaçador do novo rato, quase o dobro do tamanho do outro, ecoou pelos cantos do estacionamento, retornando instantes depois, como se centenas de outros roedores estivessem respondendo ao chamado. Sem esperar para descobrir, enfiei uma bala na criatura asquerosa e pulei alguns degraus subindo a escada, sem nem ver o estrago causado. O primeiro roedor, assustado com o barulho e minha correria, fugiu escada acima, saiu pelo corredor e sumiu no saguão do prédio. Ignorando-o, torci para que os diabos o encontrassem na rua. A escada para o esconderijo de Passan estava a poucos passos dali. Peguei o rádio e chamei por Lisie. O aparelho chiou em resposta um pouco depois mas não houve resposta. Um instante mais e a voz suave de Lisie respondeu atrás de mim, fazendo-me pular de susto.

-Ê assustado! -brincou, com um risinho. Ela então se aproximou um pouco mais e pude sentir um cheiro suave de perfume que me arrepiou mais que o susto. -Venha, vamos descer, achei algumas peças e acho que podemos consertar a antena! -me puxando pelo braço seguimos ao alçapão. Agradeci à penumbra por esconder meu rosto vermelho de vergonha.

Passan rapidamente nos explicou como retirar as partes danificadas sem acabar de vez com o equipamento e como soldar as novas usando um antigo aparelho elétrico. Eu ainda atacava uma lata de carne em conservas quando partimos uma vez mais à cobertura do prédio. Lá, o vento continuava implacável, e parecia estar se esforçando para nos jogar fora do prédio. Sem Lisie para bloquear o vento, provavelmente não teria conseguido evitar que as minúsculas peças eletrônicas fossem levadas embora pelas rajadas geladas, quando minhas mãos trêmulas de frio as derrubaram incontáveis vezes. Levamos cerca de cinco horas para trocar todas as peças, parando de tempos em tempos para aqueçer os dedos congelados e comer alguma coisa. Já começava a anoitecer quando finalmente terminamos, e não houve sinal algum dos Deuses ou qualquer outra movimentação estranha por Bermil. Comecei a guardar minhas coisas, já imaginando-me tomando um banho quente e comendo uma comida gostosa, mas percebi o olhar triste de Lisie. Ela ainda pensava nos amigos, e aquela antena voltar a ser funcional era a oportunidade para que pudesse reencontrar parte deles. Abracei-a quando uma lágrima começou a escorrer de seus profundos olhos azuis. Ela me abraçou ainda mais forte, deitando seu rosto em meu peito. Respirávamos lentamente, em silêncio. O vento parara de soprar e o frio dera lugar a uma mormaço gostoso. No horizonte, por debaixo da infinitamente longa cama de nuvens, um sol tímido surgiu e pintou a cidade de vermelho com sua luz rubra.

Em uma fração de segundo Lisie colara seus lábios nos meus, o rádio gritava a voz de Passan, e um ponto negro surgia bem no meio do sol poente.

segunda-feira, 28 de março de 2011

106. Roedor

Mantive-me imóvel por um segundo. O som ecoou baixinho pelos confins do estacionamento e morreu na imensidão vazia. De olhar fixo na escuridão e coração acelerado, como se esperasse que um monstro pulasse das sombras e me arrancasse a cabeça, coloquei a lanterna sobre uma caixa e me afastei. Em completo silêncio me escondi atrás de outras caixas, mais ao fundo do depósito, onde apoiei meu fuzil AK-47 e preparei a mira. Esperei quase sem piscar que algo passasse pelo facho de luz. Vez em quando um ruído quase inaudível rompia  o silêncio tangível do estacionamento, mas nada aparecia. Depois de alguns minutos a impaciência já começava a lutar com a adrenalina e o medo, a agonia aumentava a cada instante transformando o depósito em uma arapuca. Queria sair do esconderijo, pegar as peças que faltavam e retornar à companhia de Lisie e Passan, mas podia sentir que algo se movia na escuridão, sorrateiro. Com minha sorte, assim que deixasse o esconderijo daria de cara com o que quer que fosse.

O som abafado, como se algo pesado fosse largado ao chão, se repetiu ainda duas ou três vezes, mas nada cruzou ou entrou pela porta do depósito. Esperei ainda mais 10 ou 15 minutos, lutando com meus receios, mas já estava mais bravo e impaciente com a situação que temeroso. Mandei à merda a prevenção, deixei o abrigo das caixas e avancei rumo à entrada do lugar. Peguei minha lanterna e iluminei o exterior, em busca de algo diferente. Ao redor havia apenas os mesmos carros abandonados e suas manchas de sangue seco pelo estacionamento. A porta do elevador de serviço parecia intacta, com seu aço inoxidável corta-fogo resistindo à ação do tempo. Satisfeito, dei uma última vasculhada com o facho de luz e voltei para pegar as peças. Ajoelhei-me ao lado da pequena caixa de papelão que estava usando para colocar os componentes e recomecei a busca. Levei ainda cerca de 20 minutos até recolher tudo o que podia, mas ainda faltavam uma ou duas que não fui capaz de encontrar.

Minha cabeça latejava, meu pulmão reclamava da podridão do ar e meu cérebro parecia estar derretendo dentro do crânio. Quando pus o pé fora do depósito da rádio já conseguia me imaginar descendo a escada para o esconderijo de Passan. Infelizmente, como minha má sorte predizia, uma massa de pelos cinzento do tamanho de um gato acabou com o pensamento de descanso. Por pouco não deixei cair a caixa, e estivesse com a arma em punho provavelmente teria disparado por puro reflexo na hora do susto. Apoiado nas duas patas traseiras estava um dos maiores roedores que provavelmente já existiu. A criatura meio pelada meio peluda me encarava com seus olhinhos escuros enquanto roía um pedaço de papelão seguro pelas mãozinhas esqueléticas. Como se me analisasse, a  pequena figura dentuça terminou sua refeição calmamente e pôs-se me circular, seguido pelo rabo magrelo quase tão grande quanto o corpanzil. Precedendo um ataque traiçoeiro acompanhei seus movimentos girando no lugar, mantendo-me sempre de frente. Depois de um círculo completo e meio, o roedor soltou um guincho assustado e correu desembestado pela escuridão do estacionamento. Confuso, dei um risinho para mim mesmo e balancei a cabeça. Contive minha curiosidade de segui-lo e desejei apenas que o que quer que rondasse por aquela escuridão, encontrasse de frente com esse rato.

Confiante do caminho a seguir, retornei à entrada do estacionamento rapidamente. Estava feliz em deixar para trás aquela catacumba de concreto e seus habitantes asquerosos. Pelo caminho ainda ouvi os ruídos e guinchos quase inaudíveis, mas agora sabia sua origem e não me incomodei em parar para olhar. Subia os primeiros degraus da escada que levava ao térreo quando levei outro susto. No topo do primeiro lance da escada estava novamente o monstruoso rato, que apoiado nas patas traseiras tinha a altura de meus joelhos. Fiquei a imaginar qual altura ele seria capaz de atingir em um único salto, e sem paciência para descobrir a resposta saquei minha pistola e apontei para o maldito. Mirei entre seus olhos, mas me detive por um instante, vendo sua curiosidade ser aguçada por meus movimentos. E nesse momento de indecisão ouvi o som que originou todos os temores da última hora se repetir agourento atrás de mim.

segunda-feira, 21 de março de 2011

105. Estacionamento

Eu tentava colocar corretamente o telescópio em sua base, descontando minha frustração em grandes colheradas de sopa, quando Passan veio com a notícia: outro passeio no frio assassino. Dei uma risada meio irônica, aceitando o fardo, e pus-me a arrumar a mochila às costas. Lisie também pegou a sua e deixamos a segurança e o calor do abrigo. Dessa vez, ao menos, sabíamos o que procurar. A emissora de rádio que um dia operara através daquela antena provavelmente tinha peças de reposição em algum lugar, bastava encontrá-las. E depois de Passan vasculhar em alguns arquivos antigos conseguimos ter uma idéia melhor de quais andares poderiam contê-las.

Nos despedimos com um longo abraço e desejos de sorte. Lisie seguiu rumo aos andares superiores, em busca das peças diretamente na antiga rádio. Já eu me aventurei por quatro ou cinco andares de estacionamentos subterrâneos, em busca de algum depósito, armazém ou coisa parecida. Levávamos um rádio cada, mas o meu deixou de funcionar pouco depois de descer a escada para o primeiro subsolo. Não me importei na hora, já que estava acostumado a estar sozinho e em lugares escuros, mas em pouco tempo comecei a me sentir desconfortável lá em baixo. Apenas minha lanterna cortava a escuridão e meus passos quebravam o silêncio sepulcral. E apesar de haver pouca ou nenhuma circulação de ar, o lugar era tão ou mais frio que o lado de fora do prédio. O ambiente era extremamente pesado e sombrio, enquanto o ar parecia já ter sido respirado completamente incontáveis vezes. Pra finalizar, um cheiro de podridão e mofo impregnava o nariz e fazia doer minha cabeça. 

Acelerei o passo, decidido a encontrar logo onde as empresas e lojas do prédio mantinham seus depósitos. Andava próximo à parede, em busca de alguma indicação que me dissesse para onde seguir, mas todas as placas e pinturas estavam arruinadas pela água que escorria lentamente pelas paredes, tornando o lugar um enorme labirinto de colunas e veículos abandonados. Destes últimos havia muitos, de todos os tipos e tamanhos.  Alguns estavam batidos contra paredes e postes, outros tinham sua lataria e para brisas alvejados, com marcas escuras de sangue salpicadas no vidro e no chão, vários haviam ardido em chamas até restar apenas a carcaça, enquanto uns poucos pareciam intocados, a não ser pela umidade e pelo tempo. Em nenhum dos que me desviei pelo caminho havia corpo ou vestígio humano além de sangue seco e objetos abandonados. Se alguém havia morrido ali, e estava muito claro de ter ocorrido, estranhamente não havia mais nada para contar a história.

Finalmente, depois de andar a esmo na imensidão escura por quase meia hora, encontrei a porta do elevador de serviço. Perto dali, grandes portas de grade se espalhavam igualmente pela parede. A maioria ainda tinha o símbolo da empresa dona do depósito pintado no metal, o que facilitou muito a busca pela rádio Digital Global, com seu logotipo de uma antena parabólica com desenhos de continentes. Houve, anos antes, cadeados enormes mantendo trancadas as portas, mas todos haviam sido arrombados e os interiores dos depósitos saqueados. O da rádio tinha sua porta aberta apenas parcialmente, e seu interior estava quase tão arrasado quanto as ruas de Bermil. Peças eletrônicas, cabos e equipamentos estavam espalhados pelo chão num caos completo. Pela quantidade de coisas, eu sabia que provavelmente todas as peças de que precisávamos estariam ali, mas encontrá-las já seria trabalhoso o bastante se tudo estivesse organizado, naquele estado então seria praticamente impossível. Provavelmente teria resistido a sair do abrigo se soubesse com antecedência do que me aguardava, mas estando ali, só conseguia pensar em encontrar as peças logo e deixar aquele lugar asqueroso e fétido. 

Ainda faltava pouco mais da metade das peças a ser encontrada quando, como se meus sentidos já estivessem acostumados a coisas estranhas acontecendo perto de mim, olhei para trás, para a escuridão que me cercava. Um barulho súbito e abafado ecoou pela imensidão vazia do estacionamento um instante depois.

quinta-feira, 10 de março de 2011

104. Peças Sobressalentes

Voltar lá para cima não foi agradável. Eu não estava completamente recuperado, e o vento parecia ainda mais gélido e cortante que antes, como se soubesse que quase me vencera na noite anterior e quisesse terminar o serviço. Eu tinha roupas mais adequadas dessa vez, e um estoque de barras de cereais -vencidas fazia dez ou quinze anos, mas intactas no sabor- para não haver surpresas. Minha mochila também estava às costas, com meus pertences de viagem, por garantia. Levava ainda o rádio e uma mini-câmera, para filmar o painel avariado.

Não foi difícil encontrar onde estava o problema. Logo de cara, a tampa de ferro que deveria proteger o painel do mundo exterior estava aberta, batendo com o vento. O painel de transmissão estava bastante danificado, com neve e ferrugem em praticamente todos os componentes eletrônicos. Mas não parecia estar faltando nada. Filmei minuciosamente cada detalhe com a câmera e parti de volta para o abrigo. Antes de descer o primeiro lance de escadas, porém, dei uma última olhada ao redor. No fundo, tinha esperanças de ver o helicóptero dos Deuses partindo ao longe para não mais voltar, mas sabia que minha sorte não era tão boa assim.

Durante a descida encontrei com Lisie, que havia tirado uma folga de cuidar de mim e do filhote de Diabo, e estava explorando um dos andares do prédio, seguindo recomendações de Passan. Ela voltava com uma caixa abarrotada de inúmeras peças e componentes eletrônicos dos mais variados tipos e tamanhos, e pendurado às costas estava um tubo revestido de couro preto de mais de um palmo de grossura e um metro e meio de comprimento. Pensei em lhe perguntar do que se tratava o curioso objeto, mas sua animação em narrar sobre como éramos afortunados de encontrar tantas peças assim tão facilmente me fez esquecer o assunto.

No interior do abrigo, enquanto me servia de mais um tanto de sopa quente, Lisie e Passan analisavam cuidadosamente cada segundo das imagens que eu havia feito. Procuravam por quais peças poderiam estar quebradas, e dentre elas quais poderiam ser trocadas pelas que Lisie encontrara. Mas a animação dos dois foi diminuindo rapidamente, enquanto praticamente nada do que tínhamos seria de serventia. Tentei me distrair olhando o Diabinho choramingar dentro da caixa, balançando o corpinho de um lado para o outro sem sair do lugar, mas não conseguia deixar de pensar em um meio de consertar a antena. Foi então que percebi, no chão ao lado da caixa, o tubo que Lisie trouxera.

-Lis, o que é esse tubo que você trouxe? -perguntei, tentando fazê-los parar de resmungar e praguejar a cada peça não encontrada.

-O que? -demorou ela a processar minha perguntar. -Ah, isso? Um telescópio, eu acho.

sábado, 5 de março de 2011

103. Opções

-Três meses.

-Mesmo com todos os recursos que os Deuses dispõem, eles levaram três meses para encontrar o local da queda? -me surpreendi. -Tem algo errado aí, só pode!

-Queria poder fazer algo a respeito... -choramingou Lisie, inspirando fundo -pelos meus companheiros do RR.

-Vocês não tentaram contatar outras unidades do RR? Talvez eles possam ajudar.

-Eu queria ter tentado, mas a antena no topo do prédio foi avariada alguns anos atrás, segundo Passan.

-Infelizmente é isso mesmo -completou Passan, entrando no dormitório com outro prato de caldo fumegante. -Desde o fim da guerra eu vinha transmitindo, para quem pudesse e quisesse ouvir, as músicas que encontrei no music-player em meu passeio pela cidade, mas alguns anos atrás uma tempestade destruiu a caixa de transmissão na base da antena.

-Ao meu ver, temos algumas opções. Podemos consertar a antena, pedir ajuda ao exército de Amrak, investigar por nós mesmos ou simplesmente ignorarmos tudo isso e deixarmos que eles sem matem.

Pouco depois me arrependi de ter dado as opções e continuado com aquela história. Eu sabia que o exército de Amrak não faria o menor esforço em nos ajudar. Pelo contrário, dar essa informação a eles seria adicionar mais uma variável à equação já bastante complicada. Até minha saída das forças armadas da cidade de Amrak eles aparentemente nada sabiam sobre a queda de tal aeronave, e não seria eu a lhes contar. Deixar a história de lado também parecia fora de cogitação, segundo o olhar triste de Lisie. E como eu não estava para missões suicidas, apesar das inúmeras besteiras e situações de riscos que já me colocara antes, investigarmos por nós mesmos estava fora da minha lista. Restava apenas dar um jeito na antena, e torcer para que ela nos colocasse em contato com o resto dos rebeldes do Rosa Radioativa. Mas obviamente não seria assim tão simples:

-Passan, você sabe exatamente o que há de errado com o transmissor e onde conseguimos peças de troca?

-Nem um nem outro. Depois que a passagem pelas escadas foram fechadas nunca mais subi lá. Quando a antena parou de funcionar, tentei fazer o possível remotamente, mas não houve meio. Parei de fazer as transmissões, e desde então só consigo recebê-las. Lisie foi lá em cima olhar para mim, uns tempos atrás, mas não conseguiu identificar o problema.

-Sei... -e respirei fundo, sabendo que outro passeio ao terraço me aguardava.

-Talvez haja peças para troca aqui mesmo no prédio! -tentou ser otimista, enxugando as lágrimas do rosto e sorrindo para mim.

-Sei... -repeti, e comecei a me preparar mentalmente.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

102. Ataque ao RR

Estávamos com sorte, pensamos. Uma de nossas patrulhas levou apenas três dias para encontrar o local da queda, em uma das barreiras de contenção de um dos rios que corta Nova Bermil. Ao fim da tarde estávamos a cerca de dez quadras do impacto, e até ali nenhum sinal dos Deuses ou de qualquer gangue. Mas então a coisa toda aconteceu. Mal o primeiro carro chegou ao topo da ladeira que nos levaria à parte baixa da cidade a rua inteira explodiu. Os dois primeiros veículos sumiram na bola de fogo. O terceiro foi arremessado sobre o que eu estava. Me encolhi no banco traseiro o máximo que pude para escapar, mas os outros não tiveram a mesma sorte. Mal tive tempo de pensar no que fazer a seguir. Senti o veículo que vinha logo atrás atingir o meu e, em meio ao cheiro de combustível que vazava, uma chuva de disparos atingiu-nos de todos os lados. Abri a porta da caminhonete aos chutes e corri para dentro de uma casa. Um segundo depois o veículo irrompeu em chamas, e enquanto eu começava minha fuga por entre entre os escombros ele finalmente explodiu.

Nos primeiros quarteirões ainda podia ouvir os zumbidos e estampidos dos disparos com clareza, mas logo eles ficaram distantes e cessaram. Não sei por quanto tempo corri, mas parei apenas quando a noite caiu. Ainda tinha minha arma, pendurada na bandoleira, mas a mochila tinha se perdido junto com a caminhonete. Tinha apenas dois carregadores de munição, uma ração de viagem e uma pequena lanterna comigo, presos ao cinto. Subi ao segundo andar de um antigo sobrado e derrubei as escoras que mantinham a escada de pé. Passei ali aquela primeira noite em Bermil, assistindo de longe o fogo que consumia os veículos do Rosa Radioativa e atraia os Diabos como moscas. Chorando em silêncio passei a noite acordada, e aos primeiros sinais de claridade pulei para a rua e comecei a vagar pela cidade. Fazia muito tempo desde a última vez em que tinha ficado sozinha por minha própria conta. Já estava acostumada a ter outras pessoas por perto, para me ajudar e apoiar, e então, de uma hora para outra, estava completamente sozinha outra vez.

Por duas vezes tentei abater um Diabo durante a noite para que tivesse algo para comer, mas assim que um caia morto, os outros se amontoavam com ferocidade para devorar a carne magra. E então, três dias depois do ataque, com fome, cansada e sofrendo de hipotermia, cheguei a uma rua comprida tomada por prédios dos dois lados. De tão fraca, mal conseguia pensar, quanto mais andar, e tão logo entrei em uma casa a procura de abrigo para a noite, minhas forças me abandonaram e tudo ficou escuro. Quando acordei estava deitada em uma cama quente e confortável, podia sentir novamente os dedos dos pés e das mãos, e no ar havia um delicioso cheiro de cozido. Sabia que estava segura, mas também sabia que as coisas não seriam mais as mesmas a partir dali.

-Passan te salvou, assim como salvou a mim -concluí a história, enxugando uma lágrima que lhe escorria pelo rosto.

-Eu queria apenas esquecer essa história toda, Nuke. Sua chegada veio me trazer forças para esquecer a perda e deixar o que houve de lado -confessou Lisie, entre soluços. -Mas agora essa coisa toda volta à tona. Se não foram os Deuses que nos atacaram aquele dia... não sei quem pode ter sido.

-Ou o porquê.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

101. Caldo Quente

A noite foi longa. Dentre as mais longas que já tinha vivido até então. A fome apertava o estômago e me fazia desejar os pedaços de carne de rato seca que muitas vezes comi. Sem vestimentas adequadas, o frio entrava pela roupa e congelava meu corpo pouco a pouco. As horas se arrastaram agoniantes, e às primeiras luzes do amanhecer meu corpo tremia incontrolavelmente. Ouvi os soldados saírem para a rua e retomarem os reparos no blindado assim que o último uivo dos Diabos cessou. Tentei levantar, mas meus braços pareciam grudados em volta dos joelhos, que por sua vez congelaram um ao outro. Controlando os músculos e contendo a tremedeira me forcei a levantar e caminhar ao corredor. Com ainda mais esforço retirei a barricada de mesas e cadeiras do caminho e arrastei os pés até a escada.

Sem sequer lembrar de me preocupar com a presença de algum soldado, desci as escadas. Tamanho frio sentia, mal reparei nas marcas dos ganchos que haviam usado para acessar o primeiro andar. Me espremi pelo vão no topo de destroços que bloqueavam o acesso da escada e me estatelei no chão abaixo. Depois, literalmente, engatinhei rumo ao alçapão. Pensava em como fazer meu corpo sobreviver à queda pelo buraco do esconderijo, já que meus braços não aguentariam me descer pelos degraus da escada, quando o alçapão se abriu e um par de mãos me puxou para dentro. Quando me dei conta estava deitado em uma das camas do dormitório, coberto da cabeça aos pés com cobertores, enquanto Lisie me servia um caldo quente ralo, porém revigorante. Me lembro de ter apagado e acordado algumas vezes ao longo do dia, e em todas elas Lisie estava sentada ao lado da cama, massageando minhas mãos e pés.

Não me lembro quanto tempo levei para me recuperar completamente. Por dias ainda teria tremeliques esporádicos e calafrios, mas assim que recobrei de vez a consciência imediatamente comecei a falar, narrando o que havia visto. Lisie esboçou um sorriso, e colocando o indicador em meus lábios, me fez calar.

-Nós sabemos, Nuke. Vimos pelas câmeras. Tentamos te avisar, mas... -seus olhos se encheram de lágrimas e sua respiração pessou. -Eu devia ter contado antes, mas... achei que eles tinham desistido, que tinham ido embora. E eu só queria esquecer.

-Eles quem? Desistido do que? Esquecer o que? -perguntei, surpreso. Mas novamente Lisie me fez calar.

-Esses homens são os Deuses. Um exército que age, segundo eles, sob as ordens do Governo. Ou do que restou dele. Mas na verdade são gafanhotos, roubando e matando aqueles quem se metem em seu caminho.

-Eu sei, conheço eles. Eles... -comecei, mas uma lágrima caiu de seus olhos azuis e escorreu pelo rosto alvo como a neve, e minhas palavras se perderam em sua tristeza.

-Minha unidade do Rosa estava pela região -começou, com a voz engasgada e os lábios trêmulos -quando uma luz iluminou as nuvens, cruzou os céus e caiu sobre Bermil. A princípio achamos que fosse apenas a queda de algum avião que alguém havia tentado fazer voar, mas logo percebemos que o rastro deixado não era de um motor normal. Corremos para a cidade o mais rápido possível, em busca do ponto de impacto. Aeronaves são raríssimas hoje em dia, ainda mais voando, e por isso não podíamos ignorar o acontecimento.

-Mas então alguma coisa deu errada... -concluí.

Outra lágrima escorreu quando Lisie confirmou com a cabeça.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

100. Dormente

Uma descarga de adrenalina percorreu todo meu corpo, arrepiando os pelos do braço. Meu braço estremeceu e meus dedos se contraíram. Num esforço em conter o impulso, estiquei o polegar para a frente e evitei bem a tempo o disparo. Os soldados invadiram a sala segundos depois. Mal podia contá-los enquanto entravam pela porta, gritando ordens uns aos outros. O líder, um homem enorme e truculento, com o lado esquerdo do peito repleto de medalhas e insígnias, se aproximou do soldado imóvel. Eu ainda o mirava, mas sequer respirava, com medo de ser encontrado a poucos metros dali.

-SOLDADO! PELO AMOR DA PUTA QUE TE PARIU, MAS QUE BUCETA CANCEROSA QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FAZENDO? -gritou o homem, já sem a máscara, a plenos pulmões.

-Des-desculpe, senhor! E-eu... -gaguejou o soldado amedrontado.

-SENHOR. DESCULPE, SENHOR! -corrigiu o líder, fazendo as medalhas chacoalharem no uniforme.

-Sen-senhor. Des-desculpe senhor! E-eu...

-DESCULPA O CARALHO! SAIA DA MINHA FRENTE AGORA -e berrou ainda mais a última palavra- OU O PRÓXIMO DISPARO DESSA ARMA VAI SER NA SUA CABEÇA! VAMOS, SUMA!

-Senhor. Sim, senhor -concluiu o soldado, arrasado.

Cabisbaixo e ainda tremendo, o soldado saiu apressado. Os demais permaneceram imóveis, de armas em punho, voltados ao seu líder. Ele encarou cada um dos seus por alguns instantes, com raiva transbordando do rosto vermelho, colocou de volta a máscara e saiu sem dizer palavra. Sem jeito, os soldados o seguiram, sumindo na escuridão do corredor. Pensei em levantar, mas preferi aguentar as cãibras nas pernas e nos braços por mais algum tempo e esperei. Apenas quando os ouvi montando uma barricada com mesas e cadeiras para barrar o vento é que deixei o abrigo e saí de perto das janelas. Procurei um canto protegido e comecei a massagear meus pés, dormentes por causa do frio e do vento.

Demorou quase meia hora até que voltasse a sentir a ponta dos dedos dos pés. Com fome e frio, até meu cérebro começava a diminuir o ritmo. Eu podia ouvir as vozes abafadas dos soldados em salas do outro lado do andar, mas entender o que diziam era impossível. Tentei me manter focado, para que o sono não viesse. Se dormisse ali, sem uma fonte de calor ou proteção contra o vento, morreria congelado durante o sono sem ao menos perceber. Lembrei-me então da transmissão que o helicóptero havia feito e que o rádio do soldado tinha captado. Aumentei o volume do meu aparelho e comecei a ouvir, atento. Mas hoje, o que lembro de ter ouvido aquele dia, é apenas:

-Repito. Local da queda encontrado. Local da queda encontrado.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

99. Na Mira

Mal dava para ver o caminho, tão escuro estava. Acendi a lanterna, mas mantive sua luz apontada para baixo, para que seu facho não me traísse. Pouco me importei com os chutes e tropeções nas coisas que estavam quase invisíveis nos corredores escuros, queria apenas chegar ao alçapão no andar de baixo. Os soldados só poderiam ter se escondido na entrada do esconderijo, e ajudar Lisie e Passan era tudo que conseguia pensar. Corri o mais rápido que pude até a porta de emergência e já pensava no que fazer depois quando vi outros fachos de luz.

Subindo do térreo, pela escada externa, luzes de lanternas cortavam a escuridão e se projetavam para cima. Parei de correr de imediato, deslizando alguns centímetros na poeira e na neve. Abri os braços procurando equilíbrio, e assim como parei, voltei a correr no sentido oposto. Já não me importava esconder a luz, apenas fugir o mais rápido possível. Podia ouvir a voz dos soldados conversando entre si enquanto avançavam pelos degraus. E mal tive tempo de chegar à sala na fachada do prédio quando na outra ponta do corredor suas silhuetas apareceram à porta.

Um facho de luz iluminou todo o corredor e parte da sala onde eu estava. Alguém gritou uma pergunta, mas não houve resposta, e depois a luz se apagou. Voltei à janela de onde a pouco os tinha observado e esperei. Tinha esperanças de que continuassem subindo, a procura de um lugar para ficarem, mas não confiava em minha sorte. Conferi minha arma, deitei entre algumas mesas jogadas e mirei a porta. Meu pé direito estava para fora do prédio, pelo vão onde a janela que ia do chão ao teto estivera. Dali, eram pelo menos cinco metros de queda até a escadaria de entrada.

Como eu temia, a movimentação dos soldados continuou pelo andar. Os focos de luz iam e vinham, cruzando a porta de entrada. Não demorou mais que dois ou três minutos até que um deles entrasse para revistar a ampla sala onde eu estava. Acompanhei-o com a mira. Sabia que se dependesse deles atirariam primeiro e perguntariam depois. Então seria eu a atiraria sem hesitar. O homem havia tirado o capuz branco que cobria a cabeça, mas mantinha a máscara ocultando-lhe  a face. Sua respiração era ruidosa através do filtro de ar, seu ritmo lento e compassado dava calafrios ainda maiores que o vento gelado que entrava da rua. Mas mantive-me focado, expulsando da mente todos os pensamentos. E quando os passos puderam ser ouvidos logo adiante, coloquei o dedo no gatilho e prendi a respiração.

-Águia para Raposa, na escuta? -gritou o rádio, acompanhando o disparo.

domingo, 30 de janeiro de 2011

98. Escondidos

Desci até o primeiro andar do prédio o mais rápido que pude. Caminhei em completo silêncio corredores de escritórios arruinados até a fachada do prédio, de onde podia observar o blindado parado na rua, cinco ou seis metros abaixo. Os soldados que tentavam colocá-lo em funcionamento haviam interrompido o serviço e agora terminavam de recolher suas ferramentas. Os outros não podiam ser vistos, mas pelas vozes que ecoavam do hall de entrada pude perceber que haviam outros ali, esperando no topo da escadaria que subia da rua. Alguém gritava ordens, mas o vento forte e meu coração disparado abafavam as vozes e me impediam de entender com clareza o que planejavam. Estava óbvio, infelizmente, que não passariam a noite no blindado.

Os uivos e grunhidos dos diabos aumentavam rapidamente, a medida que todos deixavam suas tocas em busca de presas desavisadas pela cidade. Os soldados, por sua vez, pararam de falar subitamente. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar o desespero crescente naqueles homens com a aproximação de tais criaturas. Fiquei esperando, torcendo para que corressem ao blindado assim que os primeiros diabos entrassem pela porta e avançassem por sua carne, mas duvidava que fossem tão inexperientes a ponto de não conhecerem os perigos de se passar uma noite desprotegido nem Bermil. Aqueles não eram soldados de Amrak, com certeza, mas tampouco eram burros.

Logo os diabos vieram, às centenas, com seus dentes pontudos e sua pele esticada sobre os ossos. Saltavam e rosnavam, mordendo uns aos outros em um frenesi sanguinário. Muitos entraram no prédio desembestados, provavelmente procurando novos corpos para um banquete fácil, mas em poucos minutos todos tinham saido sem sucesso. Nem um único disparo foi dado, ou ao menos não pode ser ouvido, e isso só poderia significar que os diabos não haviam encontrado os soldados. Tentei me lembrar de um lugar onde aqueles homens pudessem ter se escondido, mas todas as portas do térreo haviam sido arrancadas muito tempo atrás, e não havia material nem tempo suficiente para que uma barreira fosse construída de modo a isolá-los em algum cômodo.

Ou eles haviam sumido, ou ainda estavam por ali em algum lugar. E quando esse lugar me veio à mente...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

97. Angústia

Recostado no parapeito, podia sentir meu coração bater forte no peito. Não fosse pelos óculos, meus olhos congelariam, tão abertos estavam, enquanto minha mente pensava em milhares de possibilidades ao mesmo tempo.

-Lobo para Águia -chiou o rádio, com uma voz desconhecida e diferente das anteriores. Para meu alívio. -Estamos retornando. Câmbio e desligo.

Tentei me tranquilizar, convencendo a mim mesmo de que Passan tinha suas câmeras espalhadas, e que provavelmente sabia antes mesmo de mim da presença dos soldados. Mas ainda me preocupava que pudessem empreender uma busca mais detalhada ao encontrar os vestígios dos dias anteriores no interior do prédio. Os Diabos tinham se refestelado com os corpos dos caçadores, mas em troca haviam deixado sangue espalhado por todo o andar térreo do lugar. Senti uma vontade súbita de descer as escadas e ajudar meus companheiros, mas algo dentro de mim dizia para esperar.

Ainda meio assustado levantei-me e olhei para baixo. Os dois soldados tinham voltado a caminhar pela rua, checando cada construção nos arredores, mas os que haviam entrado no prédio continuavam fora de vista. Corri então para o outro lado da cobertura e olhei para o antigo jardim que fazia fundos para outros prédios. Temia que pudessem subir pelas escadas de emergência e vasculhar o prédio todo. E apesar de o primeiro lance de escadas ter sido bloqueado com entulhos quase duas décadas atrás, ainda havia no topo uma pequena passagem entre os blocos de concreto e tijolo, pela qual eu me espremia para subir aos outros andares. Duvidava que eles subissem, mesmo que não houvesse a pilha de escombros, mas não saber onde estavam era angustiante.

Com o passar das horas a angústia apenas aumentou. Os soldados tinham se concentrado, aparentemente, na entrada do prédio, deixando apenas dois dos seus na rua a cuidar dos reparos do blindado. Não vi comoção entre eles, e deduzi que felizmente não haviam encontrado Passan e Lisie. Em compensação o frio tinha aumentado muito durante a tarde, o vento parecia cortar minhas bochechas desprotegidas, e o pequeno lanche que eu havia levado há muito acabara. A noite se aproximou lentamente, escurecendo as nuvens e enchendo as ruínas de Bermil com sombras ameaçadoras. E então, quando a noite chegou e os uivos dos Diabos começaram, o medo espantou a angústia e se alojou em mim com unhas e dentes.

Ou os soldados deixavam o prédio, ou a noite seria longa. Muito longa.

domingo, 9 de janeiro de 2011

96. Raposa Enguiçada

O som do blindado vinha da frente do prédio. Levantei e já começava a correr em direção ao parapeito quando o barulho de um segundo motor se sobressaiu ao vento. Em um susto me joguei de volta ao esconderijo e observei o helicóptero passar rasante, quase ensurdecedor. Torci para que não tivessem me visto e me encolhi de medo apenas de pensar na possibilidade.

-Águia para Raposa. Estamos na escuta. Temos autonomia para apenas mais uma passagem, e então retornaremos. Câmbio -gritou o rádio, ainda no volume máximo, fazendo-me arregalar os olhos e disparar o coração.

Com o coração martelando no peito, girei o botão do volume até quase deixá-lo no mudo. Era impossível que alguém ouvisse o som do rádio, mesmo em um dia sem vento, mas eu não estava para me arriscar. Esperei pacientemente, enquanto tentava relaxar e por as idéias em ordem, que o helicóptero fizesse a volta e passasse por ali novamente. Mas logo perceberia que o helicóptero seria o menor dos problemas. Tão logo a aeronave passou em rasante pela região, o rádio captou nova transmissão.

-Raposa para Águia. Não temos condições de retornar, precisamos parar e reparar o veículo. Câmbio e desligo.

Silêncio no rádio. Esperei alguns segundos mais e deixei o esconderijo. Consegui ver o ponto branco se afastar ao longe, seguindo para o sul pelo rumo do rio. Me aproximei então do parapeito e olhei para baixo. O blindado estava parado, com uma das lagartas sobre a calçada, bem a frente da escadaria de entrada do prédio.  Dois soldados vestindo roupas camufladas brancas andavam pela rua, de armas em punho, enquanto outros dois subiam os degraus. Meu sangue congelou, e o coração quase parou de bater. Lisie e Passan estavam para serem descobertos! Peguei o rádio, coloquei na frequência de Passan e apertei o botão para falar. De súbito percebi a enorme burrada. Soltei o botão e de olhos fechados desejei ardentemente que os dois não tivessem ouvido a tentativa de chamada.

Mas instantes depois o rádio chiou quando uma nova conexão foi estabelecida. Imediatamente os soldados que estavam na rua estacaram, olhando ao redor.

domingo, 2 de janeiro de 2011

95. Raposa Blindada

Subi os lances de escada até o último andar o mais rápido que pude. Mesmo tendo um preparo físico invejável, sugava o ar gelado em grandes golfadas ao atingir a cobertura do prédio, exausto. Quando finalmente consegui me recompor e olhar em volta já não havia nada a se ver. O helicóptero tinha desaparecido de vista, camuflado nos infinitos tons de cinza e branco que cobriam a cidade e nublavam o céu. Me concentrei, tentando ouvir o barulho do motor, mas o vento era forte demais ali em cima.

A aparição misteriosa daquele helicóptero deixou rapidamente meus pensamentos ao contemplar Bermil. Daquele lugar privilegiado praticamente toda a antiga metrópole podia ser avistada. Colinas delimitavam o que foi a área urbana a leste, ao sul podia-se divisar os restos agonizantes de um rio assoreado pelos escombros da cidade, ao norte e oeste uma planície começava pouco antes do horizonte, indicando onde a área rural da região um dia estivera. Nada se movia na paisagem. Nada era colorido até onde a vista podia alcançar. E ainda assim a visão era maravilhosa. Levei muitos minutos admirando cada detalhe, tentando imaginar como seria morar em um lugar junto a milhares de outras pessoas. Aquilo tudo era desconhecido para mim, e para sempre continuaria a ser.

Deixei os sonhos de lado e voltei a me preocupar com o helicóptero. Aquela era a primeira aeronave que eu via efetivamente voando. Todas as que eu já havia visto estavam destroçadas, reduzidas a pilhas de metal enferrujado, ou sem combustível suficiente para fazê-las funcionar. Ver em funcionamento, e sobrevoando uma área urbana completamente arrasada por bombardeiros duas décadas atrás, era algo altamente incomum -até mesmo para um mundo como esse. Desejei que o helicóptero estivesse apenas de passagem, mas no fundo sabia que não estava. Eu podia senti-lo fazendo a volta ao longe, para novamente sobrevoar a cidade. Peguei o rádio, pensando em alertar Passan e Lisie, mas temi que, do mesmo modo como pude ouvir a chamada, quem quer que fosse também poderia me ouvir. Então me escondi o melhor que pude sob uma cobertura no telhado e esperei.

Poucos minutos se passaram até o barulho de motor pudesse ser novamente ouvido por entre as rajadas de vento. Mas dessa vez vinha de baixo, da rua.

-Raposa para Águia, Raposa para Águia. Na escuta?

O som das lagartas de um blindado se arrastando pelo asfalto logo se tornou inconfundível.