Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

94. Águia de Ferro

Joguei-me para o lado com uma cambalhota, ficando de joelhos, agora de costas para onde eu olhava e de frente para o corredor por onde entrei. Alguém apontando uma arma teria disparado no vazio, e antes que pudesse mirar novamente estaria alvejado. Poucas coisas boas me lembro de Amrak e seu exército, e esse movimento é uma delas. Mas felizmente não havia ninguém, e o susto não passou de imaginação. Ainda assim, decidi deixar aquele lugar sombrio e abandonado, vigiado pelos fantasmas do passado. Peguei o rádio e avisei Passan e Lisie que não havia problema e que ira explorar os próximos andares.

Eu já havia explorado até o 10o andar, mesmo que apenas rapidamente, ao procurar pelo leite do diabinho. Mas ainda havia outros 30 ou 35 andares a explorar. Milhares de pessoas trabalhavam naquele prédio antes da Explosão, e as coisas deixadas para trás na pressa de salvarem suas vidas são como ouro para sobreviventes como eu. Ainda que Passan dispusesse de praticamente tudo o que eu poderia querer, meu instinto de sobrevivente me forçava a explorar cada canto por onde eu passava em busca de qualquer coisa útil. E aquele prédio, um dos poucos a não ter sido saqueado -provavelmente em todo o mundo-, era mais que uma mina de ouro, era um paraíso.

Segui pelo corredor, rumo à saída de emergência. Com alguns chutes e encontrões consegui desemperrar a porta, aumentando consideravelmente a corrente de ar que circulava pelo andar. Cruzei os braços e apertei o casaco no pescoço ao sentir o frio assassino que soprava em Bermil. Mesmo acostumado e com óculos especiais, semi-cerrei os olhos à claridade de toda aquela neve do lado de fora. Subi pelas escadas externas até o próximo andar e parei diante da porta fechada. Senti uma enorme preguiça em forçar mais uma porta a abrir, e a julgar pelo que pude ver através da janela ao lado da porta, o interior estava intacto às intempéries. Quebrar o vidro seria expor o interior ao vento e à neve depois de tantos anos ileso.

Tomei alguns instantes para ponderar sobre como agir. Pensei em disparar contra a trava da porta, ou usar um pé-de-cabra, mas ambas as alternativas arruinariam o mecanismo, que não mais manteria a porta fechada depois que eu saísse. Sem ter outras idéias, decidi perguntar a Passan por novas, e peguei novamente o rádio. Antes de apertar o botão para chamá-lo percebi um aviso piscando na tela, indicando que o scan do aparelho tinha detectado a presença de outra freqüência ativa em seu alcance. Reconfigurei o receptor para aquela faixa de freqüência, mas não havia nada. Aumentei o volume, mas sequer a estática podia ser ouvida. O sinal estava limpo, perfeito, mas não transmitia nada. Cerrei o cenho, pensativo.

Foi então que comecei a ouvir um barulho ao longe, aumentando gradualmente. Parecia um motor, mas vinha de cima. Subitamente o rádio berrou:

-Águia em sobrevôo no setor leste. Raposa, na escuta? Câmbio.

O helicóptero passou rasante na cobertura do prédio, jogando uma tempestade de neve para baixo.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

93. Décimo Primeiro Andar

Subi pela escada de incêndio. Olhei pela janela e vi o corpanzil de um dos enormes ratos que eu havia chutado no dia anterior, cuja barrigada havia sido parcialmente devorada e espalhada pelo corredor. Logo todo ele teria sido comido pelos de sua espécie. Um vento forte cortava Bermil naquela manhã, fazendo meus ossos congelarem, depois de me acostumar com o calor aconchegante do esconderijo de Passan. Decidi deixar que os ratos se acabassem e subi outro lance de escada. A porta estava emperrada, enferrujada com os anos, mas a janela do corredor tinha tido seu vidro quebrado. Com um pouco de cuidado consegui entrar. 

A enorme sala para a qual o corredor de emergência se abriu ocupava quase toda a extensão daquele andar. A área estava dividida em incontáveis micro-salas, separadas por paredes de madeira prensada de um metro e meio de altura. Os computadores que não haviam sido saqueados estavam arruinados pelo chão, junto a um mar de folhas de papel e outros materiais de escritório. Algumas das janelas, que iam do chão ao teto, estavam quebradas, fazendo uma corrente de vento constante cortar os corredores e erguer redemoinhos de papel e neve pelo ar. De arma em punho, entrei esperando que algo ou alguém pulasse sobre mim, mas quando senti o vento frio cortar meu rosto relaxei um pouco. Ali não era um bom lugar para um ser vivo comum se abrigar, e a julgar pela força do vento e pela bagunça espalhada pelo chão, bem como pelas quantidades enormes de neve acumuladas em cada lugar possível, nada nem ninguém vivia ali por muitos anos. Ainda assim não abaixei a arma. 

Comecei a circular pelos corredores que separavam as baias onde antigamente pessoas trabalharam. Me senti como se andando pelas lápides de um cemitério, onde as memórias daqueles que um dia estiveram ali  pairavam pelo ar, intocadas pelo vento que soprava feroz e parecia lhes dar voz, como fantasmas atormentados. Eu quase podia ver as pessoas andando apressadas, de um lado para o outro, em seu último dia naquele lugar, completamente alheias ao que lhes estaria reservado para o dia seguinte. Imaginei os olhos inchados de quem chora sem parar, as mãos sujas de sangue e poeira, e o sentimento de desespero e medo, não da morte, mas da solidão. Quando o véu da realidade finalmente ruiu, duvido que alguém estivesse preparado.

Agachei e peguei um porta-retratos no chão. Uma moça bonita de cabelos castanhos segurava uma menininha nos braços, sorrindo alegres em uma praia ensolarada.

-Estaria eu preparado? -e na hora não soube se disse num sussurro, ou se alguém mais dissera.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

92. Conservantes

Recostei-me na parede em frente à porta da antiga creche. Fiquei alguns instantes pensando, enquanto recuperava o fôlego, no começo daquele covil de roedores. Pouco depois de todas as pessoas abandonarem o prédio -ou antes, provavelmente - os ratos começaram a se alimentar dos alimentos armazenados na despensa. Sem mulheres histéricas dando chiliques ao vê-los, eles se reproduziram livremente, provavelmente devorando uns aos outros na falta de alimento melhor, até atingirem tamanhos assustadores e números inimagináveis. Então me surgiu um pensamento que me fez ter calafrios e arregalar um pouco os olhos, tirando completamente de minha mente o som que viera do andar de cima. Se os cachorros e ratos daquela cidade haviam crescido e se tornado máquinas de matar, o que seria das baratas?

Antes que as suspeitas aparecessem se arrastando em minha frente em forma de insetos cascudos do tamanho de bolas de futebol, segui minha busca. Se antes eu havia levado vinte minutos subindo pelas escadas de incêndio até o 10o andar, e outros cinco dentro da colônia de ratos, levei quase duas horas explorando cada salinha de café e copa em busca de algo que já não houvesse virado fezes de algum roedor. Finalmente, no 3o andar, encontrei dentro de um armarinho de inóx o objetivo de tanto trabalho. A lata de leite-em-pó estava intacta, protegida dos dentes afiados dos ratos pelo inóx e pelo aço inoxidável, e de microorganismos pelos inúmeros conservantes criados pelas indústrias alimentícias -e se tem algo que eu agradeço até hoje por terem inventado são os conservantes de alimento, que mantém a comida boa... isto é, comestível, indefinidamente!

Levei a lata de volta a Lisie junto de uma mamadeira que encontrei pelo chão. Fiquei observando-a alimentar o pequeno diabo, tentando ignorar o aviso que sentia dentro de mim dizendo que aquilo não era boa idéia. Tentei mudar de pensamentos repassando pela mente o surgimento daquela colônia de ratos, imaginando se eles utilizavam os encanamentos para se locomover e de onde conseguiam àgua para tantos indivíduos, até que subitamente me lembrei do barulho que tinha ouvido vindo do 11o andar. Levantei num pulo, com os pêlos arrepiando na nuca. Lisie e Passan me olharam interrogativamente. Não queria alarmá-los, mas não conseguia pensar em nenhuma desculpa decente para me entupir de armas e subir novamente os andares do prédio. Então disse a verdade:

-Acho que ouvi alguma coisa vindo do 11o andar enquanto procurava pelo leite. Vou voltar lá.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

91. Leite-em-pó

O primeiro que apareceu na minha frente cruzou a pequena sala de entrada voando e por pouco não saiu pela janela. Os ratos que haviam tomado aquele lugar eram maiores do que qualquer outro que eu já tivesse visto. A cada chute dois ou três roedores voavam de encontro às paredes. Eram centenas, talvez milhares deles. Corriam e pulavam por entre os brinquedos empoeirados, como se brincassem com eles. Havia fezes em toda parte e o ar estava impregnado com um cheiro medonho de carniça e mofo. Carcaças de ratos e outros restos mortais se espalhavam pelos cantos em amontoados de quase meio metro de altura, de onde eles entravam e saiam sem parar.

Comecei a cruzar a enorme sala, onde provavelmente as crianças passavam boa parte de seu tempo brincando com as monitoras enquanto seus pais trabalhavam em algum escritório pelo prédio, mas havia um exército de roedores no caminho. Na parede oposta havia uma porta de onde se podia ver algumas mesas, e imaginei que a cozinha e a despensa deveriam ser naquela direção. Com sorte encontraria uma lata ou duas de leite-em-pó, que serviriam de alimento ao diabinho. Mas infelizmente não fui muito longe. Antes de chegar à metade da sala os pequenos soldados dentados, que até então tinham ignorado minhas investidas violentas contra alguns de seus familiares, pareceram acordar para o perigo. Como se fossem um, mostraram os dentes e se ergueram nas patas traseiras, guinchando em desafio. Me imobilizei de imediato, tentando não demonstrar ameaça, mas não houve sequer tempo de pensar em como agir. Do tamanho de um gato, vindo do banheiro, surgiu o que provavelmente era o rei daqueles ratos. Com dentes tortos e amarelos ele avançou com o corpanzil pelo meio de suas fileiras de guerreiros roedores, guinchando estridente.

Tive tempo apenas de tapar as orelhas e me encolher enquanto corria para o corredor, em meio à uma chuva de ratos kamikazes, que se atiravam ao ar das prateleiras de brinquedo tentando me atingir. Fechei a porta atrás de mim com um chute, e com outros dois dei cabo dos roedores que tinham conseguido sair da creche, jogando-os para longe e fazendo-os correr.

Com a respiração ofegante já estava pensando em uma desculpa para dar a Lisie quando um barulho soou sobre minha cabeça. Abaixei-me por reflexo, e de olhos semi-cerrados olhei para cima. Só então percebi que o som viera do andar de cima. Havia alguém lá.