Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 28 de março de 2011

106. Roedor

Mantive-me imóvel por um segundo. O som ecoou baixinho pelos confins do estacionamento e morreu na imensidão vazia. De olhar fixo na escuridão e coração acelerado, como se esperasse que um monstro pulasse das sombras e me arrancasse a cabeça, coloquei a lanterna sobre uma caixa e me afastei. Em completo silêncio me escondi atrás de outras caixas, mais ao fundo do depósito, onde apoiei meu fuzil AK-47 e preparei a mira. Esperei quase sem piscar que algo passasse pelo facho de luz. Vez em quando um ruído quase inaudível rompia  o silêncio tangível do estacionamento, mas nada aparecia. Depois de alguns minutos a impaciência já começava a lutar com a adrenalina e o medo, a agonia aumentava a cada instante transformando o depósito em uma arapuca. Queria sair do esconderijo, pegar as peças que faltavam e retornar à companhia de Lisie e Passan, mas podia sentir que algo se movia na escuridão, sorrateiro. Com minha sorte, assim que deixasse o esconderijo daria de cara com o que quer que fosse.

O som abafado, como se algo pesado fosse largado ao chão, se repetiu ainda duas ou três vezes, mas nada cruzou ou entrou pela porta do depósito. Esperei ainda mais 10 ou 15 minutos, lutando com meus receios, mas já estava mais bravo e impaciente com a situação que temeroso. Mandei à merda a prevenção, deixei o abrigo das caixas e avancei rumo à entrada do lugar. Peguei minha lanterna e iluminei o exterior, em busca de algo diferente. Ao redor havia apenas os mesmos carros abandonados e suas manchas de sangue seco pelo estacionamento. A porta do elevador de serviço parecia intacta, com seu aço inoxidável corta-fogo resistindo à ação do tempo. Satisfeito, dei uma última vasculhada com o facho de luz e voltei para pegar as peças. Ajoelhei-me ao lado da pequena caixa de papelão que estava usando para colocar os componentes e recomecei a busca. Levei ainda cerca de 20 minutos até recolher tudo o que podia, mas ainda faltavam uma ou duas que não fui capaz de encontrar.

Minha cabeça latejava, meu pulmão reclamava da podridão do ar e meu cérebro parecia estar derretendo dentro do crânio. Quando pus o pé fora do depósito da rádio já conseguia me imaginar descendo a escada para o esconderijo de Passan. Infelizmente, como minha má sorte predizia, uma massa de pelos cinzento do tamanho de um gato acabou com o pensamento de descanso. Por pouco não deixei cair a caixa, e estivesse com a arma em punho provavelmente teria disparado por puro reflexo na hora do susto. Apoiado nas duas patas traseiras estava um dos maiores roedores que provavelmente já existiu. A criatura meio pelada meio peluda me encarava com seus olhinhos escuros enquanto roía um pedaço de papelão seguro pelas mãozinhas esqueléticas. Como se me analisasse, a  pequena figura dentuça terminou sua refeição calmamente e pôs-se me circular, seguido pelo rabo magrelo quase tão grande quanto o corpanzil. Precedendo um ataque traiçoeiro acompanhei seus movimentos girando no lugar, mantendo-me sempre de frente. Depois de um círculo completo e meio, o roedor soltou um guincho assustado e correu desembestado pela escuridão do estacionamento. Confuso, dei um risinho para mim mesmo e balancei a cabeça. Contive minha curiosidade de segui-lo e desejei apenas que o que quer que rondasse por aquela escuridão, encontrasse de frente com esse rato.

Confiante do caminho a seguir, retornei à entrada do estacionamento rapidamente. Estava feliz em deixar para trás aquela catacumba de concreto e seus habitantes asquerosos. Pelo caminho ainda ouvi os ruídos e guinchos quase inaudíveis, mas agora sabia sua origem e não me incomodei em parar para olhar. Subia os primeiros degraus da escada que levava ao térreo quando levei outro susto. No topo do primeiro lance da escada estava novamente o monstruoso rato, que apoiado nas patas traseiras tinha a altura de meus joelhos. Fiquei a imaginar qual altura ele seria capaz de atingir em um único salto, e sem paciência para descobrir a resposta saquei minha pistola e apontei para o maldito. Mirei entre seus olhos, mas me detive por um instante, vendo sua curiosidade ser aguçada por meus movimentos. E nesse momento de indecisão ouvi o som que originou todos os temores da última hora se repetir agourento atrás de mim.

segunda-feira, 21 de março de 2011

105. Estacionamento

Eu tentava colocar corretamente o telescópio em sua base, descontando minha frustração em grandes colheradas de sopa, quando Passan veio com a notícia: outro passeio no frio assassino. Dei uma risada meio irônica, aceitando o fardo, e pus-me a arrumar a mochila às costas. Lisie também pegou a sua e deixamos a segurança e o calor do abrigo. Dessa vez, ao menos, sabíamos o que procurar. A emissora de rádio que um dia operara através daquela antena provavelmente tinha peças de reposição em algum lugar, bastava encontrá-las. E depois de Passan vasculhar em alguns arquivos antigos conseguimos ter uma idéia melhor de quais andares poderiam contê-las.

Nos despedimos com um longo abraço e desejos de sorte. Lisie seguiu rumo aos andares superiores, em busca das peças diretamente na antiga rádio. Já eu me aventurei por quatro ou cinco andares de estacionamentos subterrâneos, em busca de algum depósito, armazém ou coisa parecida. Levávamos um rádio cada, mas o meu deixou de funcionar pouco depois de descer a escada para o primeiro subsolo. Não me importei na hora, já que estava acostumado a estar sozinho e em lugares escuros, mas em pouco tempo comecei a me sentir desconfortável lá em baixo. Apenas minha lanterna cortava a escuridão e meus passos quebravam o silêncio sepulcral. E apesar de haver pouca ou nenhuma circulação de ar, o lugar era tão ou mais frio que o lado de fora do prédio. O ambiente era extremamente pesado e sombrio, enquanto o ar parecia já ter sido respirado completamente incontáveis vezes. Pra finalizar, um cheiro de podridão e mofo impregnava o nariz e fazia doer minha cabeça. 

Acelerei o passo, decidido a encontrar logo onde as empresas e lojas do prédio mantinham seus depósitos. Andava próximo à parede, em busca de alguma indicação que me dissesse para onde seguir, mas todas as placas e pinturas estavam arruinadas pela água que escorria lentamente pelas paredes, tornando o lugar um enorme labirinto de colunas e veículos abandonados. Destes últimos havia muitos, de todos os tipos e tamanhos.  Alguns estavam batidos contra paredes e postes, outros tinham sua lataria e para brisas alvejados, com marcas escuras de sangue salpicadas no vidro e no chão, vários haviam ardido em chamas até restar apenas a carcaça, enquanto uns poucos pareciam intocados, a não ser pela umidade e pelo tempo. Em nenhum dos que me desviei pelo caminho havia corpo ou vestígio humano além de sangue seco e objetos abandonados. Se alguém havia morrido ali, e estava muito claro de ter ocorrido, estranhamente não havia mais nada para contar a história.

Finalmente, depois de andar a esmo na imensidão escura por quase meia hora, encontrei a porta do elevador de serviço. Perto dali, grandes portas de grade se espalhavam igualmente pela parede. A maioria ainda tinha o símbolo da empresa dona do depósito pintado no metal, o que facilitou muito a busca pela rádio Digital Global, com seu logotipo de uma antena parabólica com desenhos de continentes. Houve, anos antes, cadeados enormes mantendo trancadas as portas, mas todos haviam sido arrombados e os interiores dos depósitos saqueados. O da rádio tinha sua porta aberta apenas parcialmente, e seu interior estava quase tão arrasado quanto as ruas de Bermil. Peças eletrônicas, cabos e equipamentos estavam espalhados pelo chão num caos completo. Pela quantidade de coisas, eu sabia que provavelmente todas as peças de que precisávamos estariam ali, mas encontrá-las já seria trabalhoso o bastante se tudo estivesse organizado, naquele estado então seria praticamente impossível. Provavelmente teria resistido a sair do abrigo se soubesse com antecedência do que me aguardava, mas estando ali, só conseguia pensar em encontrar as peças logo e deixar aquele lugar asqueroso e fétido. 

Ainda faltava pouco mais da metade das peças a ser encontrada quando, como se meus sentidos já estivessem acostumados a coisas estranhas acontecendo perto de mim, olhei para trás, para a escuridão que me cercava. Um barulho súbito e abafado ecoou pela imensidão vazia do estacionamento um instante depois.

quinta-feira, 10 de março de 2011

104. Peças Sobressalentes

Voltar lá para cima não foi agradável. Eu não estava completamente recuperado, e o vento parecia ainda mais gélido e cortante que antes, como se soubesse que quase me vencera na noite anterior e quisesse terminar o serviço. Eu tinha roupas mais adequadas dessa vez, e um estoque de barras de cereais -vencidas fazia dez ou quinze anos, mas intactas no sabor- para não haver surpresas. Minha mochila também estava às costas, com meus pertences de viagem, por garantia. Levava ainda o rádio e uma mini-câmera, para filmar o painel avariado.

Não foi difícil encontrar onde estava o problema. Logo de cara, a tampa de ferro que deveria proteger o painel do mundo exterior estava aberta, batendo com o vento. O painel de transmissão estava bastante danificado, com neve e ferrugem em praticamente todos os componentes eletrônicos. Mas não parecia estar faltando nada. Filmei minuciosamente cada detalhe com a câmera e parti de volta para o abrigo. Antes de descer o primeiro lance de escadas, porém, dei uma última olhada ao redor. No fundo, tinha esperanças de ver o helicóptero dos Deuses partindo ao longe para não mais voltar, mas sabia que minha sorte não era tão boa assim.

Durante a descida encontrei com Lisie, que havia tirado uma folga de cuidar de mim e do filhote de Diabo, e estava explorando um dos andares do prédio, seguindo recomendações de Passan. Ela voltava com uma caixa abarrotada de inúmeras peças e componentes eletrônicos dos mais variados tipos e tamanhos, e pendurado às costas estava um tubo revestido de couro preto de mais de um palmo de grossura e um metro e meio de comprimento. Pensei em lhe perguntar do que se tratava o curioso objeto, mas sua animação em narrar sobre como éramos afortunados de encontrar tantas peças assim tão facilmente me fez esquecer o assunto.

No interior do abrigo, enquanto me servia de mais um tanto de sopa quente, Lisie e Passan analisavam cuidadosamente cada segundo das imagens que eu havia feito. Procuravam por quais peças poderiam estar quebradas, e dentre elas quais poderiam ser trocadas pelas que Lisie encontrara. Mas a animação dos dois foi diminuindo rapidamente, enquanto praticamente nada do que tínhamos seria de serventia. Tentei me distrair olhando o Diabinho choramingar dentro da caixa, balançando o corpinho de um lado para o outro sem sair do lugar, mas não conseguia deixar de pensar em um meio de consertar a antena. Foi então que percebi, no chão ao lado da caixa, o tubo que Lisie trouxera.

-Lis, o que é esse tubo que você trouxe? -perguntei, tentando fazê-los parar de resmungar e praguejar a cada peça não encontrada.

-O que? -demorou ela a processar minha perguntar. -Ah, isso? Um telescópio, eu acho.

sábado, 5 de março de 2011

103. Opções

-Três meses.

-Mesmo com todos os recursos que os Deuses dispõem, eles levaram três meses para encontrar o local da queda? -me surpreendi. -Tem algo errado aí, só pode!

-Queria poder fazer algo a respeito... -choramingou Lisie, inspirando fundo -pelos meus companheiros do RR.

-Vocês não tentaram contatar outras unidades do RR? Talvez eles possam ajudar.

-Eu queria ter tentado, mas a antena no topo do prédio foi avariada alguns anos atrás, segundo Passan.

-Infelizmente é isso mesmo -completou Passan, entrando no dormitório com outro prato de caldo fumegante. -Desde o fim da guerra eu vinha transmitindo, para quem pudesse e quisesse ouvir, as músicas que encontrei no music-player em meu passeio pela cidade, mas alguns anos atrás uma tempestade destruiu a caixa de transmissão na base da antena.

-Ao meu ver, temos algumas opções. Podemos consertar a antena, pedir ajuda ao exército de Amrak, investigar por nós mesmos ou simplesmente ignorarmos tudo isso e deixarmos que eles sem matem.

Pouco depois me arrependi de ter dado as opções e continuado com aquela história. Eu sabia que o exército de Amrak não faria o menor esforço em nos ajudar. Pelo contrário, dar essa informação a eles seria adicionar mais uma variável à equação já bastante complicada. Até minha saída das forças armadas da cidade de Amrak eles aparentemente nada sabiam sobre a queda de tal aeronave, e não seria eu a lhes contar. Deixar a história de lado também parecia fora de cogitação, segundo o olhar triste de Lisie. E como eu não estava para missões suicidas, apesar das inúmeras besteiras e situações de riscos que já me colocara antes, investigarmos por nós mesmos estava fora da minha lista. Restava apenas dar um jeito na antena, e torcer para que ela nos colocasse em contato com o resto dos rebeldes do Rosa Radioativa. Mas obviamente não seria assim tão simples:

-Passan, você sabe exatamente o que há de errado com o transmissor e onde conseguimos peças de troca?

-Nem um nem outro. Depois que a passagem pelas escadas foram fechadas nunca mais subi lá. Quando a antena parou de funcionar, tentei fazer o possível remotamente, mas não houve meio. Parei de fazer as transmissões, e desde então só consigo recebê-las. Lisie foi lá em cima olhar para mim, uns tempos atrás, mas não conseguiu identificar o problema.

-Sei... -e respirei fundo, sabendo que outro passeio ao terraço me aguardava.

-Talvez haja peças para troca aqui mesmo no prédio! -tentou ser otimista, enxugando as lágrimas do rosto e sorrindo para mim.

-Sei... -repeti, e comecei a me preparar mentalmente.