Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

88. Necessário

Eu não era um matador. Menos ainda um assassino. Mas assim eu me senti minutos depois de deixar o esconderijo de Passan. O homem ainda estrebuchava no chão, sua barriga aberta sorvendo sangue no meio da rua, quando virei as costas e comecei a correr de volta ao esconderijo. 

Demorei longas noites para esquecer aqueles olhos. Quando gritei para que parasse, o homem virou em minha direção com olhos de fúria, arma em punho e dedo no gatilho. Um segundo - e três tiros na barriga - depois, seus olhos transbordaram medo e desespero, enquanto sua vida se esvaia pela poeira da rua. Fiquei aturdido, preso por aquele olhar. Era incrível, e até fascinante, ver quanto medo um homem podia sentir, e o quanto esse medo se tornava visível à beira da morte. Mas o fascínio, naquele momento, durou apenas isso, um momento. E então, enquanto corria de volta, tentei me convencer de que a morte daquele homem não tinha sido apenas um assassinato, mas uma morte necessária - se é que existem, realmente, mortes necessárias.

Corri o mais rápido que podia. A caçada tinha acabado e a noite avançava rápido pelo céu nublado. Não tinha percebido, mas corri por muito mais quadras do que esperava quando persegui o homem. E agora temia não voltar ao esconderijo antes que a noite estendesse seus reinos pela cidade e os Diabos dominassem as ruas com seus dentes mortíferos. Saltei por pilhas de escombros e carcaças de carros sem raciocinar, usando apenas o instinto. E, quando as sombras dos prédios começaram a se fundir em uma escuridão crescente, uivos e latidos distantes ecoaram pelas ruas. Subi a escadaria na entrada do prédio com as pernas bambas e a garganta ardendo. 

Eu só carregava minha arma naquele dia, mas mesmo ela parecia pesar muitos quilos mais que o normal depois daquela corrida. Levei alguns segundos para me recompor, estatelado no meio do saguão de entrada, mas a escuridão e os sons da noite me ajudaram na decisão de levantar. Praticamente me arrastei até o corredor, imaginando Lisie e Passan me olhando pelas câmeras de segurança. Queria apenas entrar pelo alçapão e me deitar no chão do esconderijo até que meus músculos se recuperassem um pouco. Mas então eles se retesaram de novo. Ainda que estivesse muito escuro e eu muito cansado, meus olhos não tinham perdido sua sensibilidade para o perigo, e vi quando alguma coisa se moveu no final do corredor.

Respiração presa na garganta. Um ganido baixinho, quase inaudível. E eu já sabia qual era meu inimigo.

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