Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

113. Boteco

Tão logo foram atingidos, quem -ou o que- quer que estivesse dentro daqueles magníficos trajes mecânicos começou a disparar em resposta, fazendo as metralhadoras giratórias cuspirem sua munição incandescente por toda a rua, iluminando-a com o flash dos disparos e inundando com sua melodia ensurdecedora cada tímpano capaz de ouvir num raio de duas ruas. Nos protegemos novamente atrás da esquina, escondido pela grossa parede do prédio. Não conseguímos encontrar quem havia revidado os primeiros disparos dos trajes, mas também não esperamos que aparecessem e se apresentassem. Corremos. Corremos por nossas vidas. Corremos até os pulmões doerem e a boca começar a se encher com o gosto de bile e sangue. O som dos disparos tinha ficado mais esparso e distante, mas não estávamos mais longe do perigo que antes. Dobrando a esquina vinha um blindado, com seu canhão apontando para trás, à toda velocidade. Olhei em volta, procurando um esconderijo, e dei de cara com a porta lateral de um buteco. A porta de metal parecia bastante fragilizada pela ferrugem, e não pensei uma segunda vez antes de me jogar de ombro contra ela, fazendo a fechadura se espatifar e a janelinha de vidro colorido voar pelos ares com o impacto contra a parede. Lisie veio logo atrás, tropeçando nas cadeiras que eu havia derrubado no chão com a entrada quase triunfal. Fechamos a porta novamente e escoramos com as mesas e uma antiga jukebox que provavelmente já não tocava música alguma muito antes da guerra. Observamos pelos buracos no portão de ferro, daqueles que se desenrolavam do teto, e vimos quando a massa de metal militar passou em alta velocidade. Não podíamos ouvir os disparos através da porta e com o barulho alto das lagartas contra o asfalto, mas faíscas pulavam por toda a lataria do blindado.

-Eles estão fugindo! -exclamei, não contendo uma gargalhada em seguida.

-Shhhhh... -fez Lisie, me dando um soco no braço.

-Eles não podem nos ouvir. E além do mais estão morrendo de medo... -minha voz morreu quando a encarei. Sua lanterna apontava para o fundo do lugar, não mais que sete ou oito metros. Lá, iluminados pela luz da lanterna, jazia um amontoado de corpos de pele vermelho acinzentada, com chumaços de pelos aqui e ali, em avançado estado de putrefação. O bar que escolhemos de esconderijo não estava vazio.

-Diabos mortos... um monte deles...


terça-feira, 17 de julho de 2012

112. Revide

Os faróis, como dois olhos enormes e brilhantes, varreram a rua até o final e ali se focaram por alguns instantes, iluminando o amontoado caótico que restara de uma casa. O único som que se ouvia era o atrito metálico das metralhadoras giratórias cessando o movimento. Nem mesmo meu coração disparado e minha respiração profunda pareciam fazer som algum. Era como se meus hormônios houvessem criado um filtro contra os sons mundanos da noite, focando meus sentidos no que era novo e possivelmente perigoso. Ficamos ali, imóveis, sem sequer mudar o foco do olhar, com medo que mesmo isso fosse suficiente para nos denunciar. Estávamos expostos ali, encostados na parede do prédio, poucas centenas de metros à frente do que quer que espreitasse além da esquina, mas naquele momento, aquela esquina silenciosa e imóvel, parecia o lugar mais seguro de todos. Contanto que nem mesmo um fio de cabelo fosse movido.

-Alguém precisa revidar -arrisquei falar, um longuíssimo minuto depois de o som das metralhadoras terem parado por completo.

-Não ouse! -arregalou os olhos e exclamou Lisie, por entre os dentes.

-Não eu! -respondi irritado. -Eles atiraram em alguma coisa. E essa coisa ainda não revidou.

-Atiraram na gente! -respondeu ela, incrédula.

-Duvido muito -balancei a cabeça negativamente. -Não valíamos a pena que gastassem nem um punhado daquela munição. Essa merda ainda nem começou a feder...

Comecei a recolher as coisas. Lisie ainda não tinha se decidido se acreditava na possibilidade de meu argumento ou se eu tinha ficado louco de vez, mas arrumou a mochila nas costas e pegou sua Ak-47 do chão. Olhei uma vez mais pela esquina. Os olhos continuavam olhando em nossa direção, enquanto outro par deles se aproximava de uma rua lateral e se juntava aos primeiros. Pude ver, no segundo ou dois em que foi iluminado, o que havia disparado contra nós.

-Puta merda... são exoesqueletos!

-O que? -Lisie, obviamente, não entendeu o que eu tinha dito. -São quem? Como assim exoesqueletos?

-Uma espécie de armadura, sei lá. Coisa de ficção científica!

Lisie se abaixou e também olhou pela esquina, logo abaixo de mim. Ouvi sua respiração mudar quando se preparava para dizer alguma coisa, mas não houve chance de comentários. Uma série de zumbidos quase inaudíveis, como morcegos passando rasante, encheu a noite e nos fez encolher novamente. Ao longe, o som de metal sendo atingido e faíscas voando deixou claro que o revide tinha começado.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

111. Chuva de Fogo

Pensei ter ouvido os diabos se levantando para roerem os ossos do que sobrou do dia anterior. Eu podia apostar que a grande maioria deles estaria escondida em buracos imundos ali por perto, só esperando a noite chegar para mais uma refeição fácil. Mas eu estava errado. Não eram aqueles cachorros asquerosos do nono inferno que estavam fazendo o barulho. Era algo maior. Bem maior. Algo mecânico, pesado, que parecia ecoar de todos os cantos. Se olhasse com atenção, veria a poeira do chão pular a cada pancada surda que se seguia. Lisie também tinha ouvido, mas nada disse, fitando a escuridão de olhos arregalados, como se os sons fossem aparecer escritos no véu da noite como legendas para que não perdêssemos nada do que acontecia.

Um minuto depois o céu despencou uma chuva de metal incandescente e fogo. Estilhaços de tijolo e concreto voaram de todas as direções. O ar foi tomado pela poeira que se erguia de todos os cantos, engrossando a cada segundo. A noite tinha se iluminado em tons de vermelho e branco, e sua trilha sonora agora retumbava explosões, estampidos e assovios inconfundíveis. Estavam disparando incessantemente sobre nós.

Não levou mais que dois segundos para decidirmos pular pelo buraco na lateral da casa, rumo à escuridão da rua. Pouco me importei em torcer o pé e espatifar por cima da lama e da sujeira, minha vida continuava agarrada á meu corpo, e isso bastava para afastar a dor. Lisie pousara com muito mais delicadeza, e não parara de correr mesmo quando a bandoleira de sua arma escorregou do ombro e ficou pendurada em sua mão, arrastando o cabo no chão. Os disparos continuavam varrendo o ar, espalhando metal e buracos pelas  casas, prédios, carros e ruas. Um dos projéteis passou fervendo ar debaixo de meu braço direito e atravessou as duas portas do utilitário parado do outro lado da rua. Os buracos que se formaram na lataria eram do tamanho da cabeça de uma criança, pelo menos. Um terceiro buraco tinha se formado na fachada do prédio, e eu era capaz de apostar que haveriam outros adiante na trilha de destroços. Tentei não imaginar o que aconteceria se uma daquelas merdas me atingissem, mas não pude deixar de pensar em carne moída e uma chuva de entranhas. O mínimo que se podia ganhar atingido por um daqueles disparos era ter um membro decepado e morrer agonizando com os órgãos rompidos pela onda de choque.

Viramos a esquina derrapando na poeira. Pulmões na garganta, mochilas e armas despencando pelos braços. Os flashes dos disparos davam uma visão em câmera lenta da realidade, como se estivéssemos em uma das antigas casas noturnas de Vale Vermelho ou Gran Valência. Os diabos de Bermil corriam de buraco em buraco, ganindo de dor com os rabos entre as pernas, tão assustados quanto nós. Por um segundo, quase senti pena deles. Mas o mundo tinha se silenciado de repente. E minha respiração junto, enterrando a pena enquanto me trazia de volta à realidade. Arrisquei olhar pela quina do prédio. Lá no fundo da escuridão, pouco antes do sobrado onde estivemos, dois olhos brilhantes, acima dos dois metros de altura, vasculhavam a rua. As metralhadoras giratórias, como as atingas gatling, ainda fumegavam, com os canos incandescentes girando lentamente.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

110. 24 Horas

Queria ter tido maior noção do perigo naquele tempo...

Lisie acordou quando ouvíamos a mensagem pela terceira ou quarta vez. Seus olhos se arregalaram de imediato e encheram-se de lágrimas. Era um de seus companheiros do RR, conseguiu nos dizer por entre os soluços. Ainda tentávamos tirar mais informações dela quando o scanner do rádio nos alertou para uma comunicação em andamento.

-Lobo Cinzento. Lobo Cinzento, na escuta?

Não ouvimos a resposta -o que provavelmente indicara que o receptor da mensagem estava além do alcance, segundo Pasan- mas a mensagem que veio a seguir era bastante auto explicativa.

-Siga para o ponto de impacto, imediatamente. Permissão para ataque concedida. Vinte e quatro horas. Cambio final.

Quem quer que tivesse dado as ordens tinha sido bastante claro. Inclusive para mim. E assim, repito, queria ter tido maior noção do perigo naquele tempo. Pois restava menos de 24h para que um novo grupo dos Deuses embarcasse nos escombros daquela metrópoles em busca de sabe-se lá o que, tendo de enfrentar sabe-se lá quem. E isso me dava menos de 24h para encontrar qualquer sobrevivente ou pista do RR que houvesse. É claro que Lisie e Passan tentaram me impedir, mas eu não era conhecido -nem nunca seria até hoje- por fazer as coisas pensadas e planejadas, e ninguém ia me impedir de ao menos saciar minha curiosidade de saber o que -diabos!- tinha se espatifado naquela merda de rio que todo mundo queria saber. Então simplesmente peguei minha arma, algumas barras de cereal, duas latas de sopa, um vidro de anti-séptico e parti. Passan sorriu incrédulo, Lisie deixou uma lágrima escapar de seus olhos de lagoa azul, mas nenhum deles tentou de fato dobrar minha determinação. Uns podem dizer que foi por amor. Outros que por pura falta de experiência e bom senso. Mas eu digo que foi aquela sensação de formigamento que dá na gente quando sabemos que é a cagada certa a se fazer. 

O vento do lado de fora tinha voltado a se mostrar implacável. Meus ossos congelavam por dentro da carne, mas o conforto de saber que um tiro de longa distância era quase impossível fazia valer a tremedeira. Caminhei por cada minuto que havia de luz, o mais rápido e escondido que pude. Não avistei nenhuma viva alma no caminho, e esperava não ter sido avistado por nenhuma. Quando as sombras começaram a se apoderar da cidade apenas um filete de fumaça negra se erguia sobre os escombros poucas centenas de metros adiante, mostrando onde tinham sido sepultados os "bravos" Deuses. Procurei abrigo em um sobrado, escorei a porta com todos os móveis e escombros que havia disponível e me aninhei dentro da segurança do saco-de-dormir.

-Nuke! -me acordou uma voz feminina, no instante em que o sono chegara.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

109. Mensagem Codificada

De fato, nem um único diabo espreitava quando voltei ao esconderijo. Nem mesmo um uivo podia ser ouvido vindo de outro lugar, que não às margens do rio, poucos quilômetros ao sul. Mesmo por entre os prédios pude ver as chamas iluminando a escuridão, fazendo sombras dançarem nas paredes pintadas de vermelho e laranja. Pensei ter ouvido um grito ou outro, mas não senti remorso algum quando pisei na segurança do abrigo e senti o calor reconfortante lá de dentro. Lisie ainda tentava contato com alguém do RR, mas o silêncio era completo em todas as frequências, inclusive as dos Deuses e de Amrak. Provavelmente todos já sabiam -e provavelmente podiam ver as luzes iluminando o céu- do que acontecera aos soldados dos Deuses. E era como se os que restaram tivessem  se encolhido em suas camas e estivessem esperando a tempestade passar, torcendo para que o telhado aguentasse e pela manhã tudo voltasse a ser colorido, com o sol ardendo no céu azul a esquentá-los.

Por Lisie, continuaríamos tentando contato até que houvesse resposta, mas Passan e eu a aconselhamos a descansar um pouco e tentar novamente depois. Havia sido um longo dia e não foi preciso muito para convencê-la. Ajudei-a a se deitar e percebi como também estava cansado. Voltei à sala de Passan para dizer alguma coisa mas não conseguia lembrar o que era. Chacoalhei de lado a cabeça e voltei ao dormitório, adormecendo assim que encostei no travesseiro macio. Acordei o que me pareceram dias depois, assustado com um monte de sonhos e pesadelos encavalados. Lembro-me de um homem cego, animais deformados, um por do sol à beira mar, robôs inteligentes, piquenique em um gramado verde e misseis nucleares cruzando o espaço. Passan continuava mexendo em seus arquivos, e pelo que me contou, passou as dez horas que estive dormindo retransmitindo através da antena uma gravação codificada. Caso alguém do RR interceptasse a mensagem, saberia como decifrá-la, segundo Lisie havia lhe dito. Lá fora a cidade estaria acordando e os diabos se retirando após o banquete, pensei, mas não havia nada que eu pudesse fazer para ajudar Lisie. Tudo o mais estava fora de nosso alcance.

Tentando descansar a cabeça de infinitos pensamentos comecei a ouvir algumas músicas da vasta coleção de Passan. Tudo o que ele conseguiu reunir do gigantesco passado musical da humanidade estava ali, naquele pequeno music-player. Um trabalho de duas décadas, completamente desprovido de uso prático, mas ainda assim de valor inestimável para qualquer um que pudesse perceber a grandiosidade daquela coletânea. Viajava ouvindo um rock clássico centenário quando Passan tirou seu head-fone e me chamou.

-Ouça isso! -falou, visivelmente entusiasmado. -Vem sendo transmitido já faz uma hora, talvez mais. Não tinha percebido até agora, estava muito baixo e parecia apenas chiado. Resolvi passar uns filtros de áudio antigos e... bum!

O começo e o fim da mensagem eram inaudíveis, com um barulho de estática agudo e longo, mas o meio continha algumas partes inteligíveis. Um homem falava baixinho, com a respiração ofegante e a voz trêmula:

..."eles marcham à noite, sem se importar com os... os cachorros...", "...são incansáveis, passam o dia de um lado para o outro, e não param para dormir...", "...aquela coisa... continua soltando fumaça... cada vez menos, mas nunca para...", "...se alguém estiver ouvindo, não venha pelo...", e então recomeçava.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

108. Águia à Passarinho

Quando percebi o perigo já era tarde demais. O helicóptero passou rasante pela cobertura do prédio, erguendo grandes nuvens de neve e poeira. Lisie deu um gritinho assustado e se agachou atrás do parapeito. Vi quando, pouco antes de o helicóptero mergulhar por entre os prédios, o atirador pendurado na lateral nos observou com a luneta de seu rifle. Peguei o rádio e só então ouvi Passan gritando para que nos escondêssemos. Lisie ainda me olhava de olhos arregalados enquanto descíamos correndo as escadas, corações tentando pular fora do peito. Entramos pela passagem do esconderijo sem saber o que fazer a seguir. Mas sequer teríamos chance de pensar em algo. Passan tinha mais más noticias.

-É o segundo que passa nos últimos cinco minutos -falou, apontando para a imagem de uma das câmeras de vigilância que ele tinha instalado do lado de fora. Ali, naquela divisória quadrada da tela, um blindado usado para transporte de tropas acabara de passar, deixando redemoinhos de flocos de gelo pelo ar. -O outro era o mesmo de ontem, pelo que pude perceber...

-Pelo menos a antena funciona? -consegui dizer, sem tentar esconder a decepção na voz.

-Sim! Assim que vocês terminaram eu reiniciei o sistema e imediatamente captei as comunicações dos Deuses. Tentei avisá-los, mas vocês não respondiam. Já esperava pelo pior... pensei que fosse tarde demais.

Pude sentir meu rosto esquentar e corar com as palavras de Passan. Lisie gaguejou alguma coisa inaudível.  Passan, aparentemente sem perceber nosso embaraço, começou a explicar sobre o alcance fenomenal da antena e sua capacidade de captar mesmo as mais fracas transmissões. Olhei de canto de olho pra Lisie, esperando um olhar de cumplicidade, mas ela estava concentrada nas palavras de Passan, provavelmente imaginando as possibilidades que agora teríamos de encontrar alguém do Rosa Radioativa. Forcei meus devaneios de lado e foquei minha mente. Tentávamos captar palavras em meio a um amontoado de chiados, conforme o scanner automático da antena circulava pelas centenas de frequências possíveis. Checamos cada uma delas três vezes, mas conseguíamos captar apenas as transmissões de Amrak e dos Deuses. Os primeiros pareciam focados em patrulhar as fronteiras do que restara de sua cidade e proteger os catadores de etulhos. Já os Deuses estavam metidos em alguma coisa.

-Vamos sobrevoar outra vez -dizia o piloto do Águia. -Onde está a equipe em...-chiado- ...manter distância de combate em duzentos met...dois subindo o rio, dois a norte... aproximem-se pelo nor... pela ponte! Pela ponte! Caralho, agora, agor...

Seguiu-se um chiado forte e então silêncio completo.

-Águia, na escuta? -chamou um dos blindados, minutos depois. -Águia, na escuta? Cambio.

Quando cheguei novamente à cobertura do prédio, com o telescópio na mão, o último raio de sol sumia atrás dos esqueletos dos prédios. Ao longe, os uivos dos diabos começavam a surgir. Mas eu não temia ficar preso ali em cima. Não dessa vez. Não enquanto estivesse rolando o churrasco às margens do rio.