Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

domingo, 31 de janeiro de 2010

73. Diabos de Bermil

Meu primeiro turno de doze horas foi ainda no dia em que cheguei a Bermil. Um grupo de dez trabalhadores me tinha sido designado, e sua segurança dependia de mim. Meu trabalho era simples: impedir que algum deles morresse. Nos dirigimos à montanha de escombros na qual eles trabalhariam, a cerca de um quilómetro do acampamento, e de lá sondei os arredores. Estávamos sobre os restos de um prédio de escritórios de vinte andares, que ocupara metade da quadra antes de desabar, e que agora estava esparramado sobre prédios menores. Era um lugar com boas chances de se encontrar peças de computador, o que dava ânimo extra ao trabalho.

Deixei que trabalhassem e me posicionei no segundo andar de um sobrado do outro lado da rua. Estávamos em uma área considerada segura, mas não eram raros os casos de soldados abatidos nessas áreas. Sentado em uma pilha de tijolos, podia observar o grupo trabalhando sob as placas de concreto, ao mesmo tempo em que tinha uma visão desobstruída dos dois lados da rua e de metade da rua perpendicular. Um casal de corujas brancas foi o maior perigo que avistei durante todo o dia. Pelo menos para elas ainda havia comida de sobra no mundo, já que ratos e ratazanas se fartando com tudo o conseguiam roer era o que não faltava em Bermil. Retornamos ao anoitecer para o acampamento, sem que muito tivesse sido recuperado do antigo prédio.

Aquele primeiro dia tinha me animado, não tinham acontecido problemas, e todos estavam vivos e intactos de volta ao acampamento, fazendo-me esquecer um pouco da tristeza que tinha se abatido em mim por deixar Anne e Thompson em Amrak sem aviso. É claro, eu não tinha tido muita escolha entre vir ou não para Bermil, mas também não tinha me esforçado em avisá-los. Mas logo eles me procurariam e alguém os avisaria de onde eu estava, eu esperava. E absorto nesses pensamentos não vi o segundo dia passar, chegando a meu segundo turno, dessa vez noturno.

Dessa vez eu não teria que proteger ninguém. Trabalhar a noite não era arriscado, como descobri logo, era impossível. Um soldado veterano me acompanhou nessa primeira noite em claro em Bermil. Seu nome era Prank, tinha olhos duros de quem já viu mortes demais e viveu além do que gostaria, e sua barba estava por fazer. Mas ainda que sua função fosse me ensinar, não precisei de muitas palavras ou horas de vigia para aprender com o que eu teria de me preocupar. Nos abrigamos no mesmo lugar em que fiz meu primeiro turno, mas dessa vez Prank barricou a porta com escombros. Tão logo a noite avançou sobre as cidade em ruínas sombras começaram a se mexer por toda a parte, grunhindo, rosnando e uivando. Os soldados os chamavam de Diabos, e à primeira visão daqueles dentes afiados e olhos vermelhos, concordei.

76. Voluntário

-Como todos devem estar sabendo, um pedido de ajuda foi avistado no céu cerca de meia hora atrás -disse o general -o qual sequer soube o nome- que comandava as tropas em Bermil àqueles que estava ali. -Não temos informações de que seja algum dos nossos, e nem dispomos de um contingente que permita o envio de um grupo de ajuda neste momento. Ao amanhecer um dos grupos de extração fará uma breve missão de reconhecimento e...

-Senhor, eu me voluntário para a missão -falei de subto, fazendo alguns soldados próximos me olharem com espanto.

-Não me lembro de ter pedido voluntários, soldado -retrucou o general, enfatizando a última palavra. Abriu levemente os lábios, como se fosse continuar o discurso, quando parou e pensou um segundo ou dois, então virou-se novamente para mim e continuou. -Muito bem, soldado. Se está tão animado assim, vá. Pegue seus pertences, o que lhe é direito do soldo e deixe este acampamento. Dou-lhe uma hora.

Todos pareciam ter prendido a respiração para ouvirem com clareza cada palavra dita pelo general. Não se ouvia nem mesmo o vento. Ignorando todos os olhares bati continência, dei de costas e segui para minha barraca, onde recolhi minha mochila. Em seguida me dirigi ao depósito de suprimentos e equipamentos, onde me pagaram pelos meses de trabalho em Amrak e as semanas a serviço do exército. Meu salário não havia rendido muito, mas descobri que Thompson havia vendido o carro que Mark nos dera em Tradeport e mandado o dinheiro a mim, de modo que pude comprar roupas, suprimentos e armas. Gastei cada crédito que pude antes de me tirarem a pulseira, não deixaria para eles nem um tostão ganho com meu suor.

Não houveram despedidas ou conselhos. Dois soldados me guiaram para a saída do acampamento, e dali olharam com olhos frios eu me afastar. Sequer pude esperar o amanhecer, mas me consolava saber que os Diabos já deviam estar se fartando com a carne de um pobre coitado a essa hora. Eu não esperava encontrar sobreviventes, nem mesmo sabia em que direção seguir. Sabia apenas que aquela era mais uma das oportunidades que apareciam em minha infinita jornada para que eu mudasse de rumo e seguisse adiante. Eu era novamente livre, e adiante de mim havia apenas um vasto jardim de neve e ruínas pronto para explorar.

-Nuke! Nuke! -chamou-me alguém, enquanto eu já me adiantava pelas ruas de Bermil. Virei-me e vi Prank correndo em minha direção com alguma coisa nas mãos. -Um amigo seu enviou isso algumas horas atrás. Acabei de encontrar lá na sua barraca, parece que só entregaram agora. Ainda bem que cheguei a tempo.

Era o pequeno pé de morangos de Thompson. As folhas estavam amassadas e ressecadas pelo frio, mas parecia bastante saudável para uma planta tão frágil em condições tão adversas.

75. Fogo no Céu

Podíamos ouvir as garras arranhando a parede e a barricada no andar debaixo. Mesmo a quatro metros de altura, a janela parecia ser apenas um pouco mais alta do que os cães conseguiam saltar. O focinho de um deles chegou a aparecer de relance, e em uma fração de segundo Prank conteve o impulso de disparar. Mesmo sob o vento que corria pelas ruas destruídas era possível distinguir o som de dezenas de criaturas cheirando e fuçando em cada canto, procurando um modo de nos alcançar. A tensão quase podia ser sentida com as mãos. Por um tempo incontável mal respiramos, na esperança que desistissem de nós, mas a possibilidade de carne fresca dava àquelas aberrações uma determinação impossível.

De olhos vidrados na janela, Prank mexeu as pernas num espasmo estranho. Pensei que ele se levantaria e pularia pela janela, mas então chacoalhou a cabeça e piscou vigorosamente, como se voltasse à realidade. Olhou para mim e passou o dedão pela garganta, num sinal entendido pelos militares como uma ordem para matar. Fiz que não com a cabeça, mas ele simplesmente se levantou, apoiou a metralhadora no ombro e se aproximou da janela procurando um alvo. Eu já me preparava para levantar e me juntar à matança quando um grito quase inaudível fez tudo silenciar. Ao longe alguém gritava de desespero, em meio a disparos de espingarda. Imediatamente, como uma gigantesca sombra se movendo pela rua, as criaturas que nos cercavam avançaram em direção aos sons.

Lembro-me pouco do que aconteceu em seguida. Sei que Prank e eu olhamos um para o outro e concordamos no mesmo instante que aquela era hora de partir. Pulamos a janela em segundos e desatamos a correr pelos escombros da rua, agora vazia. Corremos sem olhar para trás, e não paramos nem mesmo para ajudar um ao outro quando inevitáveis tropeços e escorregões aconteceram. Quando finalmente nos aproximamos do acampamento de Amrak um enorme facho de luz nos cegou, fazendo-nos parar em uma derrapada. Protegemos os olhos com os braços, mas já estávamos ofuscados. Mal pude ver quando dois homens se aproximaram de nós, de armas em punho, e nos mandaram erguer os braços. Não tínhamos muita escolha, então obedecemos. Eu já suspeitava que o acampamento estivesse tomado, e já me preparava mentalmente para enfrentar o que quer que viria, mas felizmente não houveram surpresas. Um dos guardas tinha vindo comigo de Amrak e me reconheceu.

-Ei, é aquele cara que veio comigo de Amrak. Desculpem amigos, podem abaixar os braços e pegar suas armas. Estamos sendo precavidos, parece que uns tipos estranhos andaram passando perto demais do acampamento.

Sequer tivemos chance de perguntar ou contar algo sobre os Diabos quando um ponto luminoso escalou o breu da noite e estourou em uma cascata de fagulhas pouco abaixo da camada de nuvens manchando de vermelho-sangue a escuridão. Alguém pedia ajuda do outro lado das ruínas de Bermil.

74. Melhor Amigo do Homem

De cada fenda, vão ou buraco uma sombra se ergueu. Eram centenas, talvez milhares. Pareciam rastejar na poeira e na neve, por entre os destroços da cidade. Se espalharam pelas ruas, farejando e fuçando por todo lado. Aqui e ali um rato podia ser ouvido tentando correr por sua vida, mas logo uma onda de sombras se mexia e os guinchos do roedor davam lugar ao som de rosnados e ganidos, num emaranhado de corpos lutando pela carne fresca. As brigas e disputas duraram por uma ou duas horas, e só pararam quando um uivo cortou a escuridão. Prank e eu nos encolhemos de súbito, atordoados pela melancolia que se abateu sobre a noite. Não sabíamos de onde vinha, mas era como se todas as mulheres e crianças que morreram naquela cidade chorassem ao mesmo tempo, criando um lamento único e devastador para quem ouvisse.

-Veja, eles estão se amontoando ali -falou Prank, apontando para uma pilha de escombros quase no final da rua.

Com o binóculos podíamos ver claramente as criaturas se reunindo em volta dos restos de um prédio. O uivo ficou ainda mais forte e detrás dos escombros surgiu um enorme animal. Tinha metade da altura de um homem, e provavelmente seria muito maior que um ao ficar sobre as patas traseiras. Seu pelo era curto, sua pele parecia esticada demais sobre o esqueleto e os músculos, suas orelhas eram pontudas e seu rabo era quase tão grande quanto o corpo.

-Esse deve ser o líder da matilha, com certeza -disse Prank, num sussurro quase inaudível.

-Mas o que eles são, afinal?

-Eles já foram um dia o melhor amigo do homem.

-Cães?

-Quando seus donos morreram ou fugiram por causa da guerra, só lhes restou uma opção para sobreviverem: instinto. Aqueles que não sucumbiram pela fome, doenças ou frio, reproduziram-se e tornaram-se no que você vê hoje. Devem ter se misturado com os lobos, e provavelmente são mais fortes e ferozes que eles. Verdadeiras máquinas de matar sobre quatro patas. Podem farejar comida à grande distância. Com certeza sabem que estamos aqui.

Ecoei essas últimas palavras de Prank em minha mente, enquanto reparava que várias daquelas criaturas miravam seus olhares para nossa direção de quando em quando. Eles definitivamente sabiam que estávamos ali. Não havia como eles subirem até nós, a não ser que fossem capazes de saltar mais de quatro metros de altura, mas ainda assim eu não me sentia plenamente seguro. Conferi minha arma e deixei-a em punho. Prank me olhou de soslaio. Pensei que fosse rir de mim, mas então engatilhou a própria arma e deixou-a também à postos. Como se pressentissem nossos temores as criaturas se espalharam novamente pela escuridão num piscar de olhos. E num jogo de gato e rato, apareciam e desapareciam nas sombras. Minutos de tensão culminaram em fungadas e rosnados logo abaixo da janela que escolhemos para fazer vigília.

-Eles sabem que estamos aqui. Estão tramando alguma -sussurrei desconfiado, tentando não deixar o medo transparecer.

-Querem nos assustar, estão brincando conosco. São criaturas inteligentes, mestres da sobrevivência. -Prank não se preocupou em esconder o medo, mas pareceu confiante de que os cães -ou o que quer que fossem- não poderiam nos alcançar ali.

De repente um silêncio tomou conta da noite. Até mesmo a brisa que soprava constante por entre as ruínas da cidade tinha prendido a respiração.

-Que Deus tenha piedade de nós... -ouvi Prank murmurar, fazendo o sinal da cruz.