Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

9. O Atirador

Eu estava morto. Tinha certeza disso, e naquele segundo infinito me conformei que fosse verdade. Mas eu estava errado outra vez. Levei algum tempo até que pudesse reconhecer e entender o significado do som. E então, para que não houvessem dúvidas, o trovão subiu outra vez a colina e colidiu contra meus ouvidos como uma avalanche. Era a voz de um homem, rouca e assustadora.

-Venha aqui agora. Ou não errarei o tiro outra vez. E a próxima cicatriz que deixarei em você irá do seu rosto até sua nuca, passando direto pelo olho.

Eu estava entorpecido. Era como se aquelas palavras tivessem perfurado todo meu corpo como balas de uma arma, e agora só me restasse esperar a dor chegar e me consumir. Mas ela não veio, e ao invés disso uma estranha sensação tomou conta de mim, como se eu não pudesse negar àquela voz sua ordem. Não que eu achasse que o homem fosse capaz de concretizar sua ameaça, ainda mais com a noite que caía rápida e a distância que nos separava, e bastaria um único movimento rápido para que a escuridão e as árvores me dessem proteção, mas eu simplesmente não pude me virar e partir. Ao invés disso, desci em sua direção, lentamente. Enquanto caminhei não desviei o olhar de seu rosto, a fraca luz que vinha da cabana lutava para se desvencilhar da fumaça e da sujeira das placas de plástico da cabana e escapava na noite crescente, mas seu rosto permanecia oculto pela sombra de uma boina que pendia precáriamente de sua cabeça.

Balbuciei receoso meu nome, me apresentando, mas ao invés de responder, o homem virou-se de costas e se aproximou da cabana, abriu a porta e deixou que outro jorro de luz iluminasse a neve suja. Com um antigo rifle de caça nas mãos fez um gesto para que eu entrasse, e eu obedeci. Mal dei um passo porta adentro quando uma de suas mãos me segurou pelo ombro e me puxou, fazendo-me girar no lugar e ficar de frente para ele. Seu rosto era marcado por cicatrizes, a pele era flácida, caindo em grandes porções e misturando-se à barba rala e acinzentada, seu cabelo desgrenhado parecia ter sido arrancado em alguns pontos. Mas o que mais chamava a atenção eram seus olhos, vazios e sem vida, brancos como a neve mais pura que eu já tinha visto.

Seu nome era Erwin.

Cego.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

8. Monstro

A visão daquela fumaça fez surgir em mim forças de onde não havia, brotar esperança em uma mente despedaçada pela solidão e o velho medo de encontrar alguém nesse mundo insano e devastado. Apesar de afoito por encontrar a fonte da fumaça, aproximei-me devagar por entre os pinheiros, evitando quebrar algum galho ou pisar em gelo quebradiço, já que até o menor barulho ecoaria por todas aquelas colinas silenciosas - e mais tarde aprendi que até mesmo o som de uma respiração pode ser diferenciado do vento por um ouvinte atendo e treinado - e me denunciaria para quem quer que fosse. Quando atingi o topo da colina segui caminho me arrastando por entre os últimos restos de árvores, até que finalmente pude ver a chaminé de uma precária cabana, feita de toras de madeira e placas de algo que parecia plástico sujo. A fumaça saía com dificuldade, e grande parte dela inundava parte da cabana e vazava pelas inúmeras frestas, como se a boca cheia de dentes de um grande monstro deixasse escapar seu bafo quente.

Não havia ninguém por perto mas ainda assim fiquei observando. E observar com paciência, sabia eu, é algo de extremo valor em um mundo como esse, e eu era bom nisso. Apenas quando o sol começou a se por é que decidi que era hora de me aproximar, afinal, a fumaça não tinha parado de sair, o que indicava que alguém estava alimentando o fogo, e se mais alguém estivesse para voltar, então já deveria ter voltado, pois todos sabem que não se deve viajar a noite. Mas eu estava errado - ao menos em parte - e quando me levantei percebi o erro. Um piscar de olhos depois o som do disparo chegou ao topo da colina e a meus ouvidos, como se a casa fosse mesmo um monstro e houvesse acordado e gritado em fúria, girei o mais rápido que pude e joguei-me no chão, afundando na neve fofa. Mas eu sabia que a neve não era alta o bastante pra me esconder e que quem quer que houvesse atirado não iria me deixar escapar facilmente. Sondei com a mão todo meu corpo, procurando o local do ferimento, mas senti um grande alívio ao perceber que a bala tinha deixado apenas um rastro de queimadura em minha mandíbula, onde a bala passou a milímetros e apenas seu calor me feriu. Eu estava inteiro, mas ainda corria perigo, e quando tinha juntado coragem o bastante para levantar e correr por entre os pinheiros ressecados, outro som estrondoso ecoou pelas árvores.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

7. Fumaça, cinza e branco

A terceira semana de caminhada estava se aproximando, e nenhuma perspectiva de mudança surgia no horizonte. A luz do sol brigava através das nuvens tentando a noite do céu enquanto eu me esticava preguiçosamente pra fora do buraco que havia cavado no dia anterior. Era engraçado admirar um novo dia nascer, olhando pras montanhas no horizonte e para os morros e colinas logo adiante, forrados pela neve e pelos esqueletos de árvores e rochas deformadas. A luz que conseguia penetrar na grossa camada de poeira e vapor que cobria o céu se esparramava por todos os lados, o vento soprava flocos de gelo pelo ar e um silêncio inquietante musicava o ambiente. Mas era como se o mundo sequer tivesse percebido o que lhe havia acontecido anos atrás. Os dias iam e vinham sem cessar, o planeta continuava girando e, por incrível que pareça, a vida continuava se espalhando e impregnando cada lugar existente. E eu era cúmplice de tudo isso, observando tudo com os olhos de uma criança e o coração de um velho. E de tanto caminhar e observar já estava reconhecendo mais tons de branco e azul do que havia percebido minha vida toda, e se eu tomasse mais uma gota de neve derretida ou começe mais um único pedaço de carne seca acho que iria enlouquecer.

Mas não enlouqueci. A fome veio e o último pedaço de carne podre desceu arranhando minha garganta seca. Eu sabia que meu corpo precisava de água, mas eu me recusava a dá-la, com medo de que aquele tom de branco-acinzentado que a neve daquela região tinha fosse mais do que simples poeira misturada ao gelo. E novamente não enlouqueci. Na verdade foi bastante revigorante quando tomei o que os Antigos chamariam de chá, mas que na verdade não passava de água quente com folhas secas e poeira. Surpreendi-me ao ver que já era capaz de por fogo em praticamente tudo com praticamente nada, mesmo quando a úmidade parecia ser maior do que o combustível encontrado, e assim me aquecia, "cozinhava", e derretia gelo todos os dias e noites.



O dia já seguia avançado, mas eu não tinha tido forças para ir muito longe e havia apenas me arrastado até uma pilha de rochas próximas ao local onde passei a noite. A comida tinha finalmente acabado - não que isso me preocupasse, pois já tinha passado fome muitas vezes e sempre havia arranjado um meio de sobreviver - e eu não fazia idéia de pra onde ir. Havia caminhado aesmo por muitos dias, desde que tinha sido libertado pelo exército do RR, e não tinha avistado uma única alma viva, construção, trilha ou estrada. Nem mesmo rastros encontrei em todos aqueles dias, fosse de pessoas, veículos ou animais, e isso era incomum, mesmo num mundo arrasado por uma guerra nuclear. Já estava considerando voltar por onde vim, ainda que minha própria trilha tivesse sido apagada, mais de uma vez, por nevascas e ventanias, mas isso me levaria apenas aos restos de um acampamento militar e a uma base de escravizadores, de onde eu não poderia conseguir muito mais do que encrencas. Foi então que vi, camuflando-se com o cinza do céu e o branco da paísagem, um pequeno filete de fumaça subindo lentamente por detrás do que um dia foi um bosque de pinheiros. Uma chaminé.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

6. Caminhar



Uma vez li em um livro que caminhar faz bem. Mas acho que quem escreveu vivia numa cidadezinha, toda de ruas perfeitamente asfaltadas, cujas calçadas eram forradas por flores e folhas caídas das imensas árvores e ressecadas pelo sol de outono, e cujo maior perigo era torcer o pé ou ter caimbras. Enquanto eu, em minha humilde posição, caminho a duas semanas ininterruptas sobre neve fofa, dormindo em buracos de gelo e terra, racionando pedaços cada vez mais apodrecidos de carne seca, bebendo neve - certamente contaminada - derretida, esperando pela próxima matilha de lobos famintos encontrar meu rastro e sair em uma nova e interminável caçada a minha carne "fresca".

Eu gosto de caminhar, admito. Gosto de sonhar enquanto ando, de imaginar o que havia no lugar daquela camada de neve e destroços antes da Explosão, de quantas pessoas foram felizes ali e de quantas um dia poderão ser. Não penso em minha própria felicidade, ou ao menos não costumo pensar. Prefiro planejar o próximo passo a seguir, imaginar o próximo problema a enfrentar, inventar a próxima refeição a fazer ou temer a próxima noite a chegar. Não que eu duvide que um dia minha felicidade possa chegar, mas para alguém que conhece o mundo apenas desse jeito, é difícil imaginar o que a felicidade poderia ser. Talvez fosse ter uma casa, uma companheira, madeira para alimentar o fogo, uma ou duas vacas e um poço de água não-contaminada. Ou quem sabe ter uma fortaleza, armas e munições, alguns capangas, mulheres para se divertir e procriar, pessoas para escravizar e inimigos para matar. Ou ainda ter um rifle, um cachorro e nada a perder.

Eu nunca soube, e talvez nunca saiba, o que é felicidade. Sei apenas que não me importo com isso. E continuo caminhando, sem nada a perder. Porque uma vez eu li em um livro que caminhar faz bem.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

5. Azul

O Rosa Radioativa me soltou na manhã seguinte. Não precisavam mais de mim, eu já havia servido de isca e dado a eles, em poucos dias, mais armas, equipamentos e veículos do que eles poderiam ter conseguido em meses. E, ficando com eles, eu seria apenas mais uma boca sem função para alimentarem e protegerem. Ao nascer do sol uma equipe foi designada pra me levar ao local exato onde haviam me encontrado. Agora acordado, pude ver que não ficava muito longe de onde eles estavam acampados, e do topo da colina era possível ver a fumaça que subia em pequenas nuvens no horizonte, indicando onde os escravizadores estavam. Era, ainda, perto demais para que eu deixasse de me preocupar com eles. E a partir daquele momento eu estaria sozinho.

-Adeus, Nuke. Cuide-se enquanto estiver aí fora - disse uma das mulheres do grupo. Não a reconheci de imediato, mas, quando desviei o olhar do horizonte e observei seu rosto jovem, quase não pude parar de admirá-la. Era a mesma que havia me explicado, dias antes, o motivo de eu ainda estar vivo, que cuidou de mim enquanto estava desacordado. Sua pele era quase tão branca quanto a neve que soterrava o mundo, seus olhos azuis eram muito claros e transmitiam uma sinceridade difícil de se encontrar nas pessoas, em seu rosto não havia marcas ou cicatrizes, tão comuns em combatentes, nem feridas ou deformações radioativas. Era como se seu corpo não vivesse em um mundo infectado pela radiação. Mas talvez sua beleza fosse a maior de todas as mutações, diferenciando-a e destacando-a dentre os demais sobreviventes, marcados pela a radioatividade e guerra sem fim. - Não que eu ache que você não saiba se cuidar, mas... tente não morrer e... nada, esqueça - terminou ela, com um sorriso discreto no rosto, então entrou em um jipe adaptado para andar sobre neve fofa e partiu. Acho que ainda pude ver um raio de luz azul vindo de seus olhos, mas talvez fosse o excesso de branco da paisagem, e talvez ela sequer tenha me lançado um último olhar.

Fiquei ali, observando os veículos se afastarem e pensando em que direção daria meu primeiro passo em liberdade, após três longos anos de escravidão. Não tinha casa, não tinha família, não tinha amigos. E aquela garota, que agora se ia pelo horizonte, era a primeira mulher da qual eu sentiria falta na vida, mesmo não sabendo que um dia iria revê-la. Eu não tinha muito mais no momento do que quando fui capturado e escravizado, mas uma roupa de frio, mochila, pederneira, saco de dormir, cantil, 5 metros de plástico, cordões e nacos de carne de aparência duvidosa não era o que se podia chamar de fortuna. Mas eu estava feliz, e algo dentro de mim me impedia de ficar muito tempo em um mesmo lugar, arrastando minha carcaça quase vazia pela vastidão de neve e radiação.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

4. 10 segundos

Eu definitivamente não era um espião, e eles sabiam disso, então me forçaram a passar dois dias de cama, para que eu me recuperasse completamente e não adoecesse quando começasse a trabalhar para eles. E não adoeci. O trabalho de limpar os veículos e tirar a neve que insistia em entrar pelos toldos das tendas não era nem de longe tão pesado quanto o de recolher destroços para os escravizadores, e eu ainda recebia três refeições diárias, seis horas de sono e duas de descanso durante o almoço, e tinha roupas novas e quentes. Foram dias despreocupados, eu estava em um acampamento grande do RR, com pelo menos trinta guardas armados fazendo vigia e rondas constantes, e portanto me sentia seguro. Mas no fundo eu sabia que os escravizadores precisavam me encontrar e me levar de volta, para então me torturarem e me matarem na frente dos outros escravos, servindo-lhes de lição a não fugirem.

Então eles vieram. Como moscas em um montanha de merda eles chegaram às dezenas. Os batedores desceram as colinas cobertas de neve com seus snowmobiles e passaram pelo meio do acampamento, atropelando e destruindo tudo o que podiam. Dois grandes caminhões desciam lentamente pela encosta, suas metralhadoras duplas, presas com grandes armações de ferro no topo da cabine, cuspiam balas para todos os lados sem parar. E atrás dos veículos, cerca de vinte homens traziam suas metralhadoras em punho, prontos para matar tudo que se movesse. Muitas pessoas saiam das tendas assustadas, principalmente aquelas que não eram treinadas pra conflitos armados, e eram facilmente massacradas. Eu estava próximo a um dos veículos de reboque do RR quando tudo começou, tive tempo apenas de me jogar debaixo do veículo e me cobrir com neve o melhor que podia, rezando para que não tivessem me visto.

Mas, apesar de estarem cheios de confiança e animados com a matança inicial, não foi uma grande luta. O exército do Rosa Radioativa os estava esperando a muito. Pois, depois de se certificarem de que eu era procurado por eles, trataram de me deixar todos os dias bem à amostra, para que um batedor inimigo me avistasse com facilidade, e quando isso aconteceu, eles simplesmente aguardaram que viessem me buscar. E foi só morte. Por todos os lados soldados do RR deixaram seus esconderijos sob a neve e dispararam ao mesmo tempo contra o pequeno grupo de escravizadores. Eram pelo menos cinquenta homens disparando ao mesmo tempo, sem chance para qualquer reação. Em instantes havia gente pendurada nos caminhões, matando a sangue frio seus motoristas e jogando seus corpos ainda se contorcendo na neve fria. Os batedores que tentavam fugir para todas as direções, subindo as colinas além do acampamento, sequer viam quando os caçadores lhes atingiram com seus rifles e faziam suas cabeças explodirem em pedaços, manchando a neve com seu sangue escuro.


Tudo não tinha durado mais de 10 segundos. Eu estava vivo, sem um único arranhão, e só fiquei sabendo do que aconteceu mais tarde naquele dia, depois de recolher membros e órgãos da neve e empilha-los para os lobos da noite se banquetearem. Eu estava livre dos escravizadores. Ou quase.