Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 27 de julho de 2010

80. Passado de Passan

O aviso de bombardeio tinha sido dado em todas as cidades. Em todas as cidades do mundo, talvez. Não havia local seguro conhecido. Todos os locais eram alvos potenciais, tanto urbanos quanto rurais. Poucos conseguiram deixar as cidades onde estavam para encontrar amigos ou familiares em outras cidades. As rodovias congestionaram antes que os destinos fossem alcançados e, com o passar do tempo, sem policiamento, tornaram-se intermináveis campos de batalha, onde a população com medo e sem auxílio se enfrentava irracionalmente até a morte. O exército foi convocado a intervir, mas não havia contingente suficiente para cobrir todas as estradas, a enorme maioria das tropas já estava mobilizada nas fronteiras ou em outros países, preparando-se para a guerra iminente.

Eu e uns poucos colegas de trabalho morávamos em outras cidades, e portanto não tivemos para onde ir. Nos abrigamos no estacionamento subterrâneo do prédio, sobrevivendo com os suprimentos estocados no porão por ordem do governo. Mas comida não alimenta o espírito, e meus companheiros não suportaram a dor da espera. Mesmo as ruas tomadas por saqueadores e gangues parecia menos perigosa que ficar aprisionado em um lugar escuro com sua própria mente. E um dia antes de o céu irromper em chamas eles deixaram o prédio. Nunca mais os vi.

Mesmo sozinho, comecei a organizar e colocar em funcionamento os equipamentos que haviamos transportado para o estacionamento. Tínhamos a esperança de que a guerra fosse passageira e que nosso trabalho depois dela fosse ajudar a população a se reestabelecer. Trabalhávamos em uma rádio de alcançe nacional, transmitindo notícias à centenas de cidades, e decidi que faria sozinho o máximo que pudesse. Mas a guerra não acabou, e então não havia mais o que transmitir.

Quando a cidade parou de fumegar e o fogo consumiu seu último pedaço de madeira, tropas começaram a marchar. Mas mesmo os exércitos, um dia, terminaram de se exterminar, e apenas almas perdidas passaram a vagar por Nova Bermil. Inclusive eu. E foi em uma de minhas longas caminhadas pelos escombros que encontrei algo que me fez voltar ao trabalho. Em uma casa, no subúrbio da cidade, havia uma garagem com um carro esporte. Fiquei imaginando como um carro daquele ainda estava ali, intacto. Me aproximei um pouco e logo ficou claro o motivo de não terem tocado no veículo: uma ogiva havia atravessado o teto de madeira e assentado no banco traseiro. Eu não me importava, naquela época, em ser varrido por uma explosão, e sentei-me no banco ao lado, só para ouvir o tic-tac da morte vindo daquele tubo de metal recheado de explosivos.

Adormeci com o som e acordei apenas com o frio da noite. Quando saltei fora do carro pisei em um casaco esquecido ali, semanas atrás, e achei-me sortudo por não ter de caminhar em companhia do frio. Mas foi apenas quando retornei ao porão do prédio que me dei conta da sorte que havia no bolso do casaco: um mini music-player.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

79. Alçapão

Segui Passan pelos corredores do primeiro andar do prédio. Eu já havia checado todos aqueles cômodos no dia anterior, mas nada disse a Passan, que parecia determinado em seus passos pesados. Seguimos até as escadas de emergência, protegidas no passado por portas-corta fogo, cujo acesso aos andares superiores estava bloqueado por uma muralha de destroços. Passan percebeu meu olhar perdido e falou:

-Relaxe, não vamos por aí. Os militares bloquearam todas as passagens para os andares superiores, de todos os prédios da cidade. Mataram todos os que encontraram e se certificaram de não deixar esconderijos para atiradores. Nós vamos por aqui.

Passan se abaixou com dificuldades debaixo do vão da escada. Ali, camuflado por escombros de uma explosão que demoliu a porta e parte da parede do corredor, estava um alçapão. Uma escada de aço inoxidável descia em meio à escuridão. Espremendo a barriga protuberante Passan desceu os degraus lentamente. Segui-o, esforçando-me para fazer minha mochila caber na abertura. Dez metros de puro concreto abaixo havia uma pequena sala com uma única porta de aço. Não havia maçaneta ou tranca, mas ao lado havia um scanner de cartão, brilhando com seus LEDs fluorescentes. Passan tirou um crachá de identificação do bolso e passou na abertura. A porta emitiu um estalo e girou, revelando um corredor mal iluminado e outra uma porta.

-Se alguém lá dentro fechar essa segunda porta, não há como abrir pelo lado de fora. Uma medida para que hackers não pudessem entrar no abrigo. Veja. Essas travas de aço resistiriam até mesmo à explosivos. Sem falar que...

Tudo o que Passan disse a seguir não foi captado por meu cérebro. Eu tinha caminhado pelo pequeno corredor que havia adiante e entrado pela porta e, a partir de então minha mente estava abalada, tentando compreender a enorme quantidade de equipamentos e luzes piscantes que havia naquele lugar. Um zumbido fazia a trilha sonora da sala e me mantinha em transe. Na parede oposta havia um gigantesco monitor, cobrindo metade da parede, cuja tela estava dividida em quadrados menores, cada qual mostrando uma imagem diferente. Já me aproximava para observar melhor quando uma voz ecoou pela sala vinda de um robusto aparelho de rádio.

-Passan, na escuta? Passan? - disse uma familiar voz feminina, que me fez um nó na garganta.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

78. Passan

Ainda descia o terceiro degrau quando uma voz estrondosa ecoou pelo hall de entrada do prédio.

-ESPERE. ESPERE, GAROTO.

Meus músculos se retesaram, da testa ao calcanhar, e em uma fração de segundo me jogaram contra a parede. Podia sentir a adrenalina correndo em minhas veias, enquanto agarrava com força minha arma. Olhei de um lado ao outro da rua, mas nada havia além de escombros e neve. Chequei mais uma vez, apertando os olhos para enxergar mais longe, mas nada se movia.

-CALMA GAROTO, CALMA.

Lutei para que minhas pernas me obedecessem. Retornei ao interior do prédio em um só pulo, com o dedo no gatilho da arma. Também não havia ninguém ali. Mas a voz continuou:

-GAROTO, SE PROMETER ABAIXAR A ARMA, EU APAREÇO.

Mas é claro!, pensei. Claro que eu não abaixaria. Voltei para o local onde havia feito a fogueira, de lá eu podia observar a rua sem me expor. No peito, meu coração estava a ponto de explodir, mas continuava tentando bater mais e mais rápido. Olhei novamente pela rua. Nada.

-OLHA, GAROTO, VOU APARECER, MAS VÊ SE NÃO APERTA ESSE GATILHO, NÃO QUERO TE FAZER MAL.

Virei-me de costas para a parede e fiquei observando a rua com o canto do olho, pela borda da janela. Minhas mãos comprimiam o cabo da arma, meu indicador roçava o gatilho, pronto para disparar. Quase molhei as calças quando um homem rechonchudo, de barba farta e cabelos sebosos cruzou a recepção do prédio em minha direção. Um microfone com fones-de-ouvido pendia em seu pescoço. O homem caminhava devagar, com os braços abertos e olhos meio assustados.

-Q-quem é você? -gaguejei, apontando a arma em sua direção.

-EU SOU... - a voz reverberou nas paredes. O homem fez uma careta e então, num movimento lento e calculado, sem tirar os olhos de mim, apertou um botão num dos fones do aparelho. -Alô? Isso. Desculpe. Agora sim, podemos conversar. Meu nome é Passan, e o seu?

Ainda hoje não acredito em minha sorte quando relembro momentos como este. O homem podia ser um louco, assassino, canibal, em busca de sua próxima presa fácil. Mas isso sequer me passou pela cabeça naquele momento. Seu olhar não parecia esconder segundas intenções, e meu sexto sentido dizia que era de confiança. Quando me estendeu a mão, querendo me cumprimentar, estiquei-lhe a minha. Alguma coisa naquele homem me lembrava Thompson, e isso trazia algum conforto em mim que não podia ser ignorado.

Lembrei-me também de Anne, Lyriel, Yoseph e até de Von Ricky. Bons amigos, por mais curta que minha convivência com eles tenha sido. E, naquelas lembranças, não reparei quando os primeiros raios de sol que aquele mundo via em duas décadas escaparam de sua prisão de nuvens e iluminaram a entrada do prédio.