Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

11. Monstros

Não nos falamos muito mais naquela noite. Erwin me ofereceu um pouco da sopa que ele havia preparado e que estava cheirando muito bem, o prato em que me serviu não se podia dizer que era limpo, mas com certeza era uma das coisas mais novas que havia naquela cabana. Comi como se nunca houvesse comido, sequer reparando nos pedaços suspeitos de lagarto que apareciam e desapareciam no caldo grosso, como se ainda estivessem vivos. Adormeci logo em seguida, recostado numa cadeira, sem me preocupar em deitar ou me acomodar melhor.

O dia já dominava as colinas quando finalmente acordei. Eu não havia mechido um único músculo durante toda a noite, e agora eles reclamavam e gritavam enquanto eu os forçava a se mecherem. Vasculhei o pequeno comodo com o olhar, ao meu lado havia um prato fumegante da sopa de lagarto, a fogueira continuava acesa e sua fumaça inundava quase todo o espaço que havia, enquanto isso Erwin permanecia imóvel, como uma estátua, em um dos cantos. Chamei-o, mas não houve resposta. O vapor que saía de sua boca e se misturava à fumaça ao redor me dizia que ele ainda estava vivo, mas seu velho rifle de caça estava apoiado em uma rachadura na parede de plástico, vigiando as colinas brancas ao redor da cabana, e ele não fazia som algum, apenas escutava com atenção os sussurros trazidos pelo vento.

-Eles sabem que você está aqui. Eu queria que você os visse para mim, que fosse meus olhos quando eles resolvessem vir me pegar. Mas eles sabem de você e não virão durante o dia, só a noite - disse o velho atirador, após quase uma hora de silêncio. Ele queria ter certeza de que não perderia nada ao parar de ouvir para conversar comigo. - Não arriscarão enfrentar outra arma além da minha. Mas durante a noite eu e eles somos iguais, então veremos aquele que atira mais rápido - ele parou para pensar por um instante, e então concluiu. - Queria apenas saber como eles são, qual o tamanho de seus membros e suas cabeças, mas isso eu descubro depois do primeiro disparo.

Eu não disse uma palavra. Não saberia o que dizer, ainda que quisesse dizer algo. Eu sabia que ele havia me acolhido de boa vontade, sabia que ele queria apenas uma ajuda com algo que ele não mais poderia lidar sozinho, mas agora sabia que não fazia diferença. Eu queria ficar e ajudá-lo, bastaria uma arma e nós poderíamos enfrentar o que quer que estivesse por vir juntos, e quem sabe até sobreviver. Ainda que ele fosse rude e quase não falasse, principalmente sobre seu passado e sua vida, eu havia me apiedado dele, e queria poder fazer algo, mas ele insisitiu e com um rifle apontado para minha testa saí.

Caminhei pela neve fofa daquelas colinas esperando pelo momento em que monstros surreais sairiam de seus esconderijos e cairiam sobre mim como insetos na carne fresca. Mas não haviam esconderijos, e não haviam monstros. Apenas duas horas depois de sair me encostei em algumas pedras para descançar e cavar minha toca para a noite que viria. Não demorou muito para que os tiros vindos da cabana ecoassem pelos vales e fizessem neve cair das encostas. Os monstros haviam chegado, e apenas mais algumas figuras recortadas de jornais seriam adicionadas à parede da cabana, antes que tudo fosse destruído.

sábado, 6 de setembro de 2008

10. Erwin, o Atirador Cego

-Vou lhe dar comida. Vou lhe dar abrigo. Vou lhe dar proteção contra a tempestade que chegará hoje. Mas amanhã, você será meus olhos. E então partirá.

Eu estava paralisado. O rosto daquele homem transpirava dor, sofrimento e solidão, parecia encarcerado num mundo de sombras eternas e escuridão sussurrada. Ele não esperou resposta. Virou-se, fechou a porta e travou-a com uma tábua, prendendo-a nos batentes apodrecidos. Tive certeza de que um chute qualquer poria abaixo aquele pedaço de plástico, e de que qualquer ventania pudesse fazer voar aquele barraco inteiro, mas guardei essa opinião para mim mesmo quando percebi que a temperatura ali dentro era bem agradável e que o cheiro que vinha de um pequeno caldeirão era delicioso. O homem caminhou pelo pequeno espaço da cabana como se quisesse me mostrar onde morava, mas não soubesse o que falar sobre tudo aquilo. Havia um sofá velho e surrado, no qual provavelmente o velho dormia, uma mesa bamba com alguns papéis amassados e uma tesoura cega, um fogão a lenha adaptado e um amontoado de caixas de papelão e restos de madeira. Numa das paredes havia um papel retangular, protegido por vidro e moldura, no qual se podia ler Erwin - Atirador Honorário do Exército Germânico, e logo abaixo uma medalha dourada, já desgastada pelo tempo, ainda brilhava imponente. E, como um culto estranho e macabro, espalhado por toda a volta do quadro, haviam centenas de figuras de pessoas recortadas de revistas e jornais, algumas tinham tido uma das pernas ou braços arrancados, mas a maioria estava sem cabeça ou com apenas parte dela ainda presa ao pescoço.

-Sim, cada uma dessas pessoas representa um inimigo morto por mim. Mas, como você deve ter percebido, parei de contar a algum tempo, quando meus olhos não mais me permitiram cortá-las das revistas - disse Erwin, o melhor atirador que a coligação Britânico-Germânica já havia tido, ao perceber meu silêncio de curiosidade e perplexidade. - Mantendo-as na parede, me permite lembrar de cada um, de como morreram e como lutaram, assim, enquanto eu viver, eles não serão esquecidos e sua honra em batalha será lembrada.