Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 21 de abril de 2009

40. Poeira e Umidade

Com um chute a grade de proteção da pequena janela voou alguns metros, aterrissando na neve fofa. Thompson então empurrou a pequena janela e se espremeu para dentro. Um cheiro forte de mofo e ar parado saía pela abertura e impregnava mesmo nossos narizes entupidos pelo frio.

-Andem logo, ou vou ter que recolher os corpos de vocês... e não sei se vou me preocupar com isso. -Thompson não parecia estar brincando, mas ele nunca parecia, e mesmo assim eu nunca conseguia achá-lo arrogante ou carrancudo demais. Ele simplesmente não queria que fôssemos moles, e por isso fingia não se importar com nada além de si mesmo.

-Tem sangue aqui, vejam. -Apontei para a lateral dos degraus que levavam à porta de serviço. Mas apenas Anne estava ouvindo, enquanto Thompson tinha sumido na escuridão. -Acho que alguém lavou a parte de cima, mas se esqueceu de limpar o que escorreu pelos lados.

-Brrr...! -Tremeu Anne, fazendo careta para o sangue. -Vamos entrar logo, sinto-me observada.

Ajudei Anne a entrar pela janela e fui em seguida. O cheiro lá dentro era ainda mais forte, a ponto de me causar náuseas. Mal se podia enxergar sua própria mão diante do nariz, quanto mais o que havia ao redor. Thompson tirou então uma lanterna de sua mochila e iluminou a escuridão. Estávamos em uma espécie de depósito, cheio de caixas e prateleiras, todas amontoadas ou jogadas pelos cantos. Poeira era o que não faltava e, unida à umidade que penetrava pelas paredes não impermeabilizadas, criava tapetes escorregadios por todos o chão. Anne e eu tínhamos guardado as armas, mas Thompson mandou que as mantivéssemos preparadas. Caminhamos por entre os esqueletos do que um dia foram mesas e cadeiras e finalmente chegamos a uma porta, escondida atrás de um armário caindo aos pedaços.

-Não preciso lembrá-los para fazerem silêncio, não é? -Falou, já girando lentamente a maçaneta da porta. Apagou a luz da lanterna e puxou a porta, de modo a abrir apenas uma fresta. Uma lufada de ar entrou zumbindo e saiu pela janela. -Nuke, feche aquela janela já. Não queremos portas batendo por causa de correntes de vento.

Fechei a janela e voltei lentamente, andando com cuidado para não escorregar ou tropeçar em alguma coisa. Por mim, teria preferido o risco de uma porta bater à sufocar com aquele cheiro, mas eu não ia discutir com Thompson naquele momento em hipótese alguma. Juntei-me a eles e adentramos. Thompson ligou novamente a lanterna e olhou com mais atenção. Estávamos no final do corredor, haviam portas iguais dos dois lados, mas a maioria estava fechada. Na outra ponta havia uma escada, que subia e sumia de vista, provavelmente levando ao andar principal. Caminhamos lentamente, evitando fazer barulho e fomos direto até a escada. Thompson checou o interior de cada porta aberta com sua lanterna, mas eu e Anne passávamos sem olhar, como se temêssemos que alguma coisa pudesse nos puxar pra escuridão. Já subíamos os primeiros degraus quando Thompson parou abruptamente.

-Esperem, tem alguém do outro lado. -E assim que ele terminou de sussurrar a frase, uma sombra pode ser vista passando pela faixa de luz que se expremia por debaixo da porta no topo da escada. Thompson apontou sua arma e desligou a lanterna. -Abaixem-se, se a porta abrir vou atirar.

A sombra simplesmente passou pela porta, mas atrás de nós uma estante caiu em alguma das salas, fazendo o chão tremer e um som ensurdecedor encher o corredor. Anne gritou de imediato. E, ainda sussurrando, ouvi Thompson amaldiçoar os deuses.

-Merda! -Foi tudo que consegui dizer, comprimindo os olhos e esperando a adrenalina tomar conta de meu corpo.

sábado, 18 de abril de 2009

39. Tiros na Neve

Estávamos todos observando atentamente as janelas, esperando ver alguma coisa. Thompson e eu concordamos em parar o carro ao lado de um dos prédios, evitando assim as janelas sem tábuas. Foi então que Anne gritou, apontando para uma das janelas.

-Ali, tem alguém ali! -E assim que ela apontou para uma das janelas do terceiro andar, algo brilhou na escuridão, refletindo a fraca luz que penetrava pelas nuvens cinzas que cobriam permanentemente os céus.

-Acelera Nuke, vão abrir fogo! -E antes que eu pudesse raciocinar direito o que ele tinha dito, já estava acelerando e jogando o carro pela lateral do prédio. Mal evitamos a linha de visão das janelas ouvimos os disparos. Ainda tive tempo de olha pelo retrovisor e ver os buracos na neve, com pequenas núvens de vapor subindo em rodopios.

-Puta merda! -Desabafei em voz alta. -Filhos-da-puta! Atiraram em nós, sem nem saber quem somos!

Por alguns instantes ficamos estáticos. Ninguém queria sair do carro, porque alguém do lado de fora estava atirando, mas ninguém queria ficar ali, preso em uma lata de aço esperando morrer. Thompson foi o primeiro a descer. Passou pelo carro e subiu na neve acumulada na parede do prédio, aproximou-se da quina da parede e tentou olhar pela esquina. Não demorou e mais núvens de vapor subiam de novos buracos na neve, enquanto lascas do acabamento da parede voavam. Thompson estava meio assustado, provavelmente não tinha esperado encontrar briga naquele lugar, e agora tinha o dedo no gatilho de sua AK.

-Vamos dar a volta, se ficarmos aqui morreremos. -Eu já estava descendo do carro, segurando desajeitadamente a pistola que ele havia posto em meu colo. Estava com medo, admito, mas a cada estava me acostumando mais com ele, e naquele momento já não era mais do que outro tipo de adrenalina correndo em minhas veias. É certo que o medo salva vidas, afinal, nos impede de corrermos riscos absurdos, que certamente nos matariam. Mas, pra mim, o medo de algo sempre deu forças para enfrentá-lo, e provavelmente isso salvou minha vida mais vezes do que se tivesse me dado forças para apenas correr. Thompson tinha corrido pela lateral do prédio e estava na outra quina, olhando pela esquina e nos fazendo sinal para o acompanharmos. -Por aqui, tem uma entrada naquele canto, tenho certeza.

-Como ele sabe? -Perguntou-me Anne, enquanto corríamos até ele, tropeçando e atolando os pés na neve fofa.

-Não faço idéia... nenhuma.

Atravessamos um espaço de cerca de vinte passos entre dois prédios. Havia muitas janelas, mas aparentemente não havia nenhuma sem tapumes, e isso nos deu coragem suficiente para atravessar o vão entre as construções. Nos abrigamos debaixo de um telhado de alumínio parcialmente desabado, que cobria uma porta de serviço. Como eu já esperava, a porta estava trancada, e provavelmente bloqueada por dentro. Mas Thompson sequer se importou em testar se a porta capenga estaria aberta, simplesmente começou a remover a neve ao lado da porta com a ajuda do cabo da AK-47. Depois de remover a neve e um amontoado de entulhos pudemos ver o que ele procurava: uma janela de subsolo.

-Vamos entrar por aqui.

-Você já esteve aqui?

Olhei-o, inquisitivo e sem dizer palavra. E ele, com naturalidade, respondeu sem sequer piscar:

-Claro. Agora andem logo.

domingo, 12 de abril de 2009

38. Armas em Punho

Diferente de Anne e Thompson, eu não me sentia muito confortável em me aproximar daquele complexo. Não que ele parecesse ameaçador ou pudesse abrigar inimigos - apesar de parecer muito óbvio que abrigaria - mas era a primeira construção que eu via, em toda minha vida, que parecia intocada pela Explosão, parada eternamente no tempo. Havia neve acumulada nas paredes e nos tetos, nos parapeitos das janelas pendiam ponteiras de gelo escurecidas pela sujeira. Haviam dois veículos parados ao lado de um grande portão de ferro, como em uma garagem antiga. O maior deles, um trator amarelo, tinha a frente modificada para remover neve, enquanto o outro parecia um mini tanque de guerra. As paredes, feitas de grandes blocos de concreto, foram um dia pintada de branco, mas agora descascava sob a passagem dos anos. Grandes janelas, em sua maioria tapadas com tábuas e placas de metal, eram enormes e deviam iluminar todo o interior dos prédios.

Eu ainda estava absorvendo aquela visão inédita quando percebi que o carro estava descendo a colina. Thompson tinha se cansado de esperar que minha admiração passasse e tinha soltado o freio de mão, e só percebi quando já estávamos ganhando velocidade. Pressionei de leve o pedal do freio, para que não derrapássemos, e deixei que o carro deslizasse lentamente até o fundo do vale, enquanto ainda observava cada detalhe da magnífica estrutura. Thompson não estava preocupado com minhas sentimentalidades e tirou-me novamente de meus devaneios colocando uma pistola em meu colo, passou outra para Anne e engatilhou sua metralhadora, uma antiga AK-47 - que, ainda hoje, é uma das melhores armas que existem.

-O que faremos com isso?! -Bradou Anne, completamente desnorteada e visivelmente assustada com a arma em suas mãos. -Eu não sei nem atirar pedras em uma casa!

-É, eu também não sei atirar! -Completei.

-Vão aprender logo, vejam. -Falou Thompson, com sua calma impossível diante de situações de desespero.

Em uma das janelas mais altas uma sombra acabara de se mecher e desaparecer na escuridão.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

37. Desvios

-Thompson. Estamos dirigindo a horas, e esse já é o segundo dia. -Mas Thompson estava cochilando, roncando baixinho, e não tinha ouvido. Cutuquei-o para que acordasse e então repeti. - Já estamos na estrada faz horas. Mark tinha dito que eram apenas 300 quilômetros até Amrak, mas aposto que já andamos mais que isso.

-Sim, você está certo. Mas onde paramos para descansar ontem, na hora do almoço, tomamos um desvio. -Falou Thompson, sem tirar os olhos da estrada. -A estrada em que deveríamos estar, que segue o leito do rio, foi bloqueada e desviada para esta. Percebi que havia algo errado, mas não quis assustar ninguém. E, além do mais, essa estrada parecia estar em melhores condições do que aquela estaria.

-Mas você sabe pra onde estamos indo, não é? -Perguntei alarmado. -E porque não nos contou antes?

-Não. Sei que devia ter contado, mas como disse, preferi não assustar você e a Anne. Mas isso não importa, realmente. Ontem a noite conversei com os garotos que estavam nos acompanhando e chegamos a conclusão de que o melhor era que nós seguíssemos por aqui. -Apesar de parecer um pouco desconfortável por não ter nos contado, Thompson parecia confiante na decisão de não retornar a Tradeport e seguir pela rota alternativa. -Eles me contaram que os mercadores que chegam à Tradeport fazem esse caminho já a alguns meses, mas que ninguém se deu ao trabalho de avisar ao sherife Mark que a rota original está bloqueada.

-Como assim? Porque esconder que alguém fez isso?

-Eles temem que, se Mark souber do bloqueio, vai querer removê-lo. E, além de muito trabalho, isso significa descobrir o responsável e impedir que ele refaça o bloqueio. Sabemos, pelo que vimos hoje, que os Escravizadores estão metidos nisso, mesmo que apenas oportunamente, e mecher com eles é pedir guerra.

-É, sei como é... Já fui escravo e isca pra escravizador... Lembra?

-É verdade, tinha me esquecido. -Thompson ficou em silêncio por um tempo. Pensei que ele estivesse imaginando um confronto contra os Escravizadores, mas pouco depois ele falou, animado. -Vire aqui, reconheci onde estamos!

Eu estava dirigindo com gosto, a mais de 100 km/h, e fui pego de surpresa pela ordem de Thompson. Virei o volante com vigor demais, e logo depois estávamos rodando pela neve e gelo. Por pura sorte o carro não atolou na neve e pudemos seguir pelo pequeno desvio soterrado de gelo que havia entre um punhado de árvores mortas. Andamos por certa de 30 minutos, até que a estradinha precária, ladeada por pedras e restos de árvores, terminou em uma longa descida. Adiante de nós, no fundo de um pequeno vale, havia um imenso complexo de construções enormes. Em um portão de grade arruinado havia os resquícios de uma placa. "Propriedade Governamental - Proibída a entrada", dizia.

-Anda logo Nuke, vamos descer. Estou congelando aqui! -Falou Anne, pela primeira vez desde que escapamos dos Escravizadores.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

36. Escombros e Gelo

Os escravizadores deviam estar nos observando desde o dia anterior. Sabiam que nossos veículos não eram os adequados para andar sobre montanhas de neve, e que isso nos forçaria a ficar na estrada. Mas, depois de uma tempestade de neve, mesmo as estradas ficavam intransitáveis a veículos comuns sem esquis, e essa era a maior vantagem deles. Veículos com limpadores de neve constantemente mantinham as estradas livres de neve, mas podia levar dias até que um desses percorresse aquele caminho e a deixasse limpa, até que a próxima tempestade a inutilizasse novamente. Nossos carros tinham correntes em volta dos pneus, mas a neve fofa era intransponível para eles.

Eu mal sabia dirigir em uma rua limpa e sem obstáculos, quanto mais em uma estrada cheia de neve e gelo, mas mesmo assim só pensava em pisar fundo no acelerador e sair dali. Levei poucos segundos para arrancar com o carro depois que Anne e eu entramos. Thompson ainda corria colina abaixo e praticamente se jogou porta adentro quando passamos por ele ainda acelerando. Eu estava me esforçando ao máximo para manter o carro na estrada, mas Thompson segurou o volante com uma das mãos e girou-o com força, fazendo o carro sair da estrada e subir o pequeno barranco de entulhos e terra que havia do lado.

-Mas que porra é essa que você tá fazendo? -Berrei de imediato, tentando fazer o carro voltar para a estrada. Mas Thompson segurava o volante firmemente, e falou com força, mas sem gritar:

-A neve se acumulou na estrada e está fofa. Aqui há mais gelo e detritos, onde as correntes podem conseguir apoio para não deixar os pneus girarem em falso. -Em principio não acreditei, mas logo estávamos andando mais rapidamente, ainda que com muitos trancos e solavancos. -Não acelere tanto, e reduza uma marcha. O motor precisa de mais força que velocidade, por enquanto.

Certo, certo! -Meu coração estava disparado, tentando abrir um buraco em meu peito para fugir. E quando eu pensava que não poderia haver mais descargas de adrenalina em meu sangue, Anne gritou ainda mais alto do que já vinha gritando enquanto fugíamos.

-Os escravizadores pegaram eles! -Exclamou desesperada, apontando pelo vidro traseiro para o outro carro, ainda parado no meio da estrada. Os veículos dos escravizadores os haviam bloqueado e agora rendiam seus ocupantes, que eram surrados até que caíssem no chão.

-Temos que voltar!

-Não podemos. Condenaríamos a nós mesmos se voltássemos. Vamos fugir antes que queiram nos perseguir. -Continuou serenamente Thompson, segurando novamente o volante, para que eu não fizesse a estupidez que tinha em mente, de voltar e tentar ajudar.

-Vamos voltar! POR FAVOR! -Implorou Anne. Mas tiros passaram assobiando pelo carro, corroborando a decisão de não voltarmos. Dois dos disparos acertaram a lataria do porta-malas, fazendo-nos abaixar as cabeças. Mas logo fizemos uma curva e estávamos fora de mira.

Depois de algum tempo tínhamos apenas o barulho das correntes se agarrando aos escombros no chão e os soluços contidos de Anne em meio ao seu choro silencioso. Lembro de ter criado coragem para olhá-la pelo espelho retrovisor, mas depois de ver seu rosto cheio de lágrimas e seus lindos olhos vermelhos de choro, desejei ter guardado na memória apenas seu sorriso do dia anterior.