Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

83. Luz, Câmera, Sombra

A tela que se iluminou estava vazia. Bom, não vazia, já que mostrava uma esquina atulhada de escombros e uma rua cheia de esqueletos de prédios semi-destruídos, mas nada de anormal estava à vista. Passan soltou um risinho e resmungou alguma coisa, puxou um teclado mais para perto e se pôs a digitar. Instantes depois a tela piscou novamente, mas dessa vez a imagem exibida era escura, em tons de preto e azul. Primeiro não entendi, mas logo manchas vermelho e laranja começaram a se materializar em meio à escuridão. Passan tinha mudado para a câmera para visão de calor, e agora quem se escondia em meio aos escombros brilhava como lanternas na noite.

-Eles são de uma gangue do outro lado da cidade. Comerciei com eles nos primeiros anos, mas um dia, quando estavam doidões, tentaram me forçar a mostrar meu esconderijo e quase me mataram. Deixei três deles de jantar para os diabos e nunca mais troquei nada com eles, ainda que insistam todos os anos. Devem estar desesperados atrás de suprimentos e equipamentos pois cruzam essa região pelo menos uma vez por mês. Talvez estejam me procurando, mas quase nem me preocupo, são burros demais. Acho que eles pensam que ninguém consegue vê-los com aquelas roupas camufladas.

De fato aqueles caras eram difíceis de ser ver quando estavam parados, a espera de uma vítima, mas qualquer um que estivesse observando uma passagem ou uma rua com um pouco mais de atenção seria capaz de vê-los se aproximando. Mas Passan não estava para brincadeira, ainda que duvidasse da capacidade intelectual daquela gangue de mortos de fome, e não tirou os olhos do monitor. Seu indicador estava apoiado em um dos botões do teclado, pronto para ser apertado. Não resisti e perguntei:

-Por acaso esse botão aí vai detonar uma bomba nuclear, é?

-Nuclear não, mas se aqueles imbecis entrarem aqui -respondeu Passan em tom um pouco sério- vão ter uma bela dor de cabeça pra juntar as partes de seus corpos pelo chão.

Dei uma risada, comi o último pêssego em calda da lata e comecei a observar o imenso telão no fundo da sala que mostrava todas as câmeras instaladas por Passan. Era uma tela quadrada de pelo menos um metro e meio, dividida em vinte e cinco quadrados menores, cada um mostrando uma imagem diferente. Uns 4 ou 5 quadrados mostravam apenas chuvisco, de modo que pelo menos 20 câmeras estavam em funcionamento. Lisie se aproximou para olhar o monitor e senti quando seu braço quase esbarrou no meu, fazendo os pelos arrepiarem em uma onda até o ombro.

-Vamos ver o seu susto de hoje cedo? -e dizendo isso clicou em um dos quadrados da tela que mostrava o hall de entrada do prédio. O quadrado aumentou de tamanho, ocupando alguns dos quadrados adjacentes e botões surgiram próximos à base. Lisie apertou o botão "voltar" várias vezes, mas a imagem mostrada pareceu imóvel. Apenas a variação de luminosidade do hall indicava o passar das horas. Quando a luz começou a ficar mais fraca e uma figura se moveu rápido pela tela Lisie parou. -Pronto, Passan está se aproximando de você, de braços erguidos. E você... tremendo como uma vara verde! -pôs-se a gargalhar, apontando o dedo para mim.

-Devo admitir que fiquei com medo de você se assustar e puxar o gatilho... Nunca se sabe, não é? -Passan tinha decidido que o caminho tomado pela gangue de homens camuflados seguia em uma direção segura e tinha se juntado à Lisie na chacota contra mim. -Um cachorrinho assustado é mais perigoso do que parece... ainda mais quando dão a ele um Ak-47!

Eu nunca tinha visto um gato de verdade, apenas fotos em revistas e desenhos em livros, mas sorri amarelo, fazendo careta, quando ambos se puseram a rir juntos de mim. Estava pensando em algo para tirar sarro dos dois quando uma coisa me chamou a atenção no telão e me fez virar o rosto de repente.

-Vocês viram aquilo?!

-Aquilo o que? -retrucou Passan, arregalando os olhos e se aproximando da tela.

-Volte a imagem, Lisie... isso, pare!

Eu e Passan cruzávamos o hall do prédio e nos dirigíamos para o corredor onde ficava o alçapão. Pouco antes de sumirmos da visão da câmera uma sombra cruzou uma porta do outro lado do salão. Lisie retrocedeu a imagem quadro a quadro, e parou no momento exato em que uma mancha escura saltava de um lado ao outro da porta.

sábado, 28 de agosto de 2010

82. Pêssegos em Calda

Passamos horas jogando conversa fora. Passan trouxe latas de frutas em calda e uma enorme garrafa de refrigerante. Pensei no quanto aquelas coisas valeriam em uma cidade como Tradeport, mas Passan não parecia saber disso, ou não se importava, e eu decidi que não me importaria também. No momento queria me preocupar apenas em aproveitar aquelas iguarias e a boa companhia dos meu novos amigos.

Logo descobri que fora Lisie quem disparou o sinalizador na noite anterior. Ela havia se demorado em uma de suas incursões pela cidade, em busca de comida ou qualquer coisa útil, e acabou cercada pelos Diabos em um prédio próximo. Então Passan, vencendo sua aversão em sair de seu esconderijo, principalmente durante a noite, saiu em resgate de sua nova pupila.

-Ela me lembra minha irmã. Não podia deixá-la à própria sorte -me confidenciou Passan, meio bêbado com o excesso de açúcar no sangue depois de uma lata inteira de doce de pêssego.

Lisie já estava morando ali havia algum tempo. Sua unidade do Rosa Radioativa fora debandada depois de um combate sangrento e Nova Bermil tinha sido uma feliz coincidência em seu caminho sem rumo. À beira da morte, de fome e frio, Passan a encontrou desmaiada em um beco da cidade. Seu instinto foi deixá-la lá, à própria sorte, como havia feito outras tantas vezes com outros que encontrou. Passan temia, com razão, que a localização de seu esconderijo pudesse ser delatada quando a pessoa se recuperasse e quisesse ir embora, e por essa razão tinha vencido o instinto de ajudar todas as vezes. Mas certo dia, ao se deparar com uma pilha magricela de pele, ossos e farrapos, não pode deixar de se apiedar e se aproximou. Reconheceu a rosa no símbolo do RR em meio aos restos de roupa que cobriam aquela criatura e decidiu deixar os riscos de lado. Quem quer que lutasse pelo RR, acreditava, não poderia ser má pessoa. Passan poderia ter pensado que alguém simplesmente tinha encontrado aquelas roupas em algum cadáver, tinha matado um dos soldados do RR e tomado sua roupa, ou que fosse um traidor deserdado, mas felizmente não pensou. E Lisie estava salva.

Agora eles se ajudavam. Passan tinha mapas e equipamentos, mas não tinha a habilidade e a agilidade necessárias para incursões pela cidade, enquanto Lisie não tinha nada além de suas habilidades e seus treinamentos militares. Juntando forças eles agora tinham recuperado suprimentos e equipamentos de todos os prédios próximos, de modo que Passan pode terminar de montar sua rede de vigilância em torno do esconderijo. Nada nem ninguém passava a menos de duas quadras de distância do subsolo daquele prédio sem que Passan soubesse. E enquanto me explicava todos os censores, câmeras e auto-falantes espalhados pelas redondezas um bipe começou a ser emitido de um dos equipamentos da sala, sendo seguido imediatamente por um monitor de computador, que piscou e ligou exibindo a imagem de uma das câmeras externas.

-A cada ano eles vem mais cedo... -falou Passan quase num sussuro, metendo outra colher de pêssegos na boca.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

81. Lisie

Quando o rádio chiou em cima da mesa e uma voz feminina chamou por Passan quase tive um ataque fulminante. Mas foi quando ela entrou no abrigo que o Universo parou por um instante para admirá-la. Acho que esqueci de respirar por alguns minutos, pois quando dei por mim estava ofegante.

-Passan, veja o que encontrei no terceiro andar. Parece que... -sua voz se perdeu quando seu olhar cruzou o meu. Seus lábios se moveram, mas não falaram. Seus olhos arregalaram e o que quer que estivesse segurando foi ao chão. Achei que fosse gritar de medo, mas uma única palavra inundou a sala. -Nuke!

Com o mesmo olhar de que me lembrava a garota se jogou contra mim em um abraço apertado. Muitos meses tinham se passado desde que a vi pela primeira vez. Na verdade, ela me vira primeiro. Eu havia acabado de fugir do acampamento dos Escravizadores e tinha passado boa parte da noite correndo na escuridão. Pouco antes de cair exausto entrei em um veículo abandonado e adormeci profundamente. Pouco depois estava sob a guarda do RR, o exército rebelde Rosa Radioativa, que cuidou dos meus ferimentos e me deu roupas e equipamentos para continuar minha jornada solitária. Mas o RR também levou algo de mim, dentro dos olhos azuis de uma de suas combatentes. E apenas agora eu me dava conta disso.

-Pelo visto já se conhecem mesmo, não é? -disse Passan com um sorriso. -Venham, vamos nos sentar, comer alguma coisa e botar a conversa em dia. Tenho uma ou duas latas de feijão que venho guardando pra uma ocasião como esta.

Passan trouxe os feijões e um vidro de geléia de amoras. Eu tenho vagas lembranças de ter comido feijão quando era um garotinho, mas geléia era a primeira vez que comia. Não me lembro bem do gosto, mas acho que era bom. Eu estava mais interessado em ouvir o que aqueles olhos azuis tinham a dizer, de modo que comer, pensar ou falar estavam em segundo, talvez até em terceiro plano.

-Obrigada por tê-lo deixado entrar, Passan. Mas não precisava tê-lo assustado daquele jeito, não é? Eu ouvi tudo lá de cima. Até que foi engraçado, mas o coitadinho deve ter morrido de medo -então eles já sabiam quem eu era. Ela sabia! -Veja como ele ainda está meio avoado. Deve estar assustado ainda.

Eu estava mesmo avoado, e realmente era por causa do susto. Mas não do que Passan me dera, e sim do que ela me dera. Sua presença ali era quase inacreditável e completamente inesperada. Não sabia o que dizer, e em minha mente só ficava imaginando quais as chances de isso ter acontecido. Ainda assim, depois de quase engolir a colher e engasgar com o feijão tentando juntar coragem, falei pela primeira vez.

-A-ainda não nos apresentamos -comecei sem jeito. -B-bom, você sabe meu nome... mas, eu não...

-Lisie. Muito prazer!