Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

57. Felicidade e Sangue

-Vamos Nuke, ajude-nos com o caminhão. A lataria do carro tá presa debaixo das placas do caminhão, precisamos erguê-lo para soltar -explicou Yoseph, fazendo o máximo de força que conseguia para tentar erguer o veículo.

-Já vou, preciso fazer uma coisa antes -e caminhei até a traseira do carro que Mark nos fornecera em Tradeport.

O engate na traseira do carro tinha sido suficiente para amortecer o impacto do caminhão contra a lateral do outro carro, felizmente. Abri o porta-malas e procurei por algumas das tranqueiras que Mark tinha mandado colocar lá, para casos de emergência. Não faço idéia de qual a utilidade da maioria daquelas coisas, nem de onde elas tinham saído - mas quem era eu pra questionar a sabedoria de um homem que é padre e sherife de uma cidade. Fiquei feliz quando encontrei uma placa de plástico e um tubo de cola plástica siliconada. Em poucos minutos a janela do carro tinha sido vedada e a úmidade demoraria um pouco em ajudar o tempo a desfazer a cena no interior do carro.

-Terminou sua obra, Da Vince?! -exclamou Thompson, jogando-me um pano imundo para limpar a cola das mãos. -Agora, será que o senhor, por favor -enfatizando as duas últimas palavras - pode nos dar a honra de sua ajuda? -e completou com uma reverência, como as que se faziam aos reis. Resolvi deixar de lado o clima triste e entrei na brincadeira.

-É claro, dar-lhes-ei tal honra. Afinal, faço questão -e também enfatizei a palavra -de tratar bem minha criadagem - o safanão que se seguiu deixou claro que a piada tinha sido entendida, de modo que minha gargalhada foi inevitável.

Thompson, Yoseph e eu passamos bons minutos tentando erguer o caminhão enquanto Anne e Lyriel tentavam romper os pedaços enroscados da lataria. Afinal, cansados e sem conseguir resultado, Yoseph teve uma ideia e, sem dizer nada, engatou a ré no caminhão e acelerou. Com um ranger metálico de rachar os ossos os veículos se soltaram. O eixo traseiro do carro estava destruído completamente, enquanto um risco azul em uma das placas de limpar neve era o maior dano sofrido pelo caminhão.

-Bom, é isso ae! Problema resolvido! -e pulou do caminhão, sorridente e orgulhoso.

Estávamos animados, mesmo depois do acidente e da descoberta do carro soterrado. Mas isso me dava um comichão por dentro, como se aquela alegria me arranhasse o estômago. Estarmos animados significava que as coisas, apesar dos pesares, corriam bem. E quando as coisas correm bem... dão errado.

-Tooodos a bordo! -chamou Lyriel, pendurada na porta do caminhão, balançando de um lado para o outro.

Caminhávamos todos para o caminhão quando meus temores se concretizaram. Uma rajada de tiros passou logo acima de nossas cabeças e ricocheteou na blindagem do caminhão, em meio a faíscas e fumaça. Mal tive tempo de amaldiçoar a mim mesmo pelos pensamentos agourentos de antes quando olhei para Lyriel, caída sobre a neve.

-Ly! -gritou Yoseph.

-Sangue! -gemeu Anne.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

54. Esquiando

O sono foi leve para todos aquela noite. A fogueira, cuja música nos embalou durante toda a madrugada, revigorou-nos mais que muitas horas sono poderiam fazer. Ainda estava escuro quando nos pusemos de pé e recolhemos nossas coisas. Olhei em volta, tentando avistar algo além do que o resto da fogueira iluminava: um vasto negrume de nada. Deixei vagar pelos pensamentos como era estranho que, por falta de uns raios de luz, toda aquela neve branca ficava escura como piche. A natureza é magnífica, pensei alto, ainda olhando o nada. De um lado, porém, um borrão de luz deixava transparecer a silhueta de algumas colinas. Entreabri a boca, mas quando pensei em falar, Anne se adiantou:

-Olhem que lindo, o sol já vai nascer... -e apontou para o horizonte.

-O sol deveria nascer daquele lado, não pode ser que seja ele -argumentou Thompson. -Mas, posso estar errado, vai saber.

-Você está certo, senhor Thompson -disse Lyriel, com respeito, olhando para uma bússola que trazia pendurada à mochila. -O sol nasce ali, daquele lado. Essa luz que vemos é a cidade de Amrak. Estamos a menos de um dia de viajem de lá.

-É estranho. Quando deixamos Tradeport, Mark, o sherife e sacerdote daquela pequena cidade mercante, nos disse que Amrak estaria a cerca de trezentos quilómetros. Distância que, obviamente, deveria ser superada em algumas horas de viajem, descendo o rio -indagou Thompson. Abrindo os braços, continuou. -Mas agora, depois de muitos dias de viajem que fazemos desde Tradeport, você nos diz que ainda falta um dia todo para chegarmos lá? Como é possível?

-O senhor está certo outra vez. Bom, quase certo. Amrak, na verdade, está a cerca de quinhentos quilómetros de Tradeport. Mas a antiga highway, que passava por essas cidades antes da Explosão, está destruída em noventa porcento de seu percurso, e como vocês puderam perceber, tentar seguir seus destroços ao longo do rio é extremamente perigoso. E a estrada alternativa que vocês pegaram aumenta o caminho em outros duzentos ou trezentos quilómetros. Sem contar as paradas e os desvios adicionais para evitar as rotas bloqueadas, imagino que esses dias nem foram tantos assim -concluiu Lyriel.

-Maldição... Vamos embora daqui logo, não vou suportar mais um dia todo com essa ração militar que vocês dois chamam de comida -e dizendo isso cuspiu uma pelota deformada de fibras que compunham a ração fornecida pelos Deuses a seus soldados. Yoseph e Lyriel riram, enquanto mastigavam as suas. Eu e Anne também não gostávamos muito, mas não que fosse ruim aquela ração, e mesmo sendo muito mais nutritiva, não tinha gosto de carne de rato ou lagarto seca. Ainda rindo subimos no veículo blindado e em pouco tempo estávamos nos movendo, no que, esperávamos, fosse o último dia de viajem a Amrak.

Nos mantivemos a meia altura nas colinas, evitando o fundo, onde detritos dificultariam que os esquis do veículo deslizassem com eficiência, e o topo, onde poderíamos ser vistos por olhares não amigáveis. Depois de algumas longas horas de viajem, procuramos um lugar decente para uma pausa. O sol, bem no alto do céu, forçava alguns de seus raios por entre as nuvens espessas e raivosas. Estávamos com fome, e mesmo não gostando, Thompson melhorava muito de humor após as refeições, por isso não deixávamos de fazê-las. Eu sempre me perguntei se não deveríamos simplesmente comer dentro do veículo, sem pararmos, mas sempre que eu descia e esticava as pernas, esses pensamentos se esvaíam.

Paramos o veículo logo abaixo de uma grande pedra, de modo que ela nos protegesse parcialmente do vento forte que fazia. Papeamos alguns minutos, deixando clara a ansiedade de todos em voltar à civilização. Eu não estava, porém, particularmente animado. Chegar em uma cidade grande significava deixar para trás minha rotina, e o simples pensamento de ficar parado por muito tempo me deixava nervoso. Tentando pensar em outra coisa, mirei o horizonte, e percebi algo que nunca tinha visto.

-Vejam, lá embaixo, um riacho! -gritei animado.

-Vejam o caminhão, isso sim! Ele está esquiando encosta abaixo! -gemeu Yoseph.

55. Vidro, Neve, Gás

Descemos colina o mais rápido que pudemos. Lyriel rolou os últimos metros, afundando da cabeça à cintura na neve fofa. O caminhão levou tudo em seu caminho, rochas, árvores secas e neve, muita neve. Parou apenas quando chegou ao fundo, depois de bater em uma montanha de neve acumulada. Yoseph e Thompson tiveram trabalho para desenterrar Lyriel, que apesar de ter engolido um pouco de neve, apenas perdeu o fôlego. Anne ainda terminava a descida, descabelada, com o rosto vermelho e a respiração ofegante, quando me aproximei do veículo.

-Ei, venham ver só isso! -e comecei a tirar a neve acumulada. Escondido por uma grossa camada de neve estava um outro veículo. As placas limpa-neve da frente de nosso caminhão haviam feito um enorme estrago na lateral traseira daquele carro soterrado. Ele provavelmente estava ali a muitos anos, pois, quanto mais fundo se cavava na camada de neve, mais sujeira havia. Sem que eu percebesse uma súbita curiosidade havia tomado conta de meu cérebro e transbordava pelas orelhas. Começei a cavar com afinco.

-Deixe isso pra lá, Nuke. Não deve ter nada que valha a pena aí -tentou Thompson a me fazer parar de cavar. -Já devem ter saqueado tudo.

Mas eu não dei ouvidos e continuei a retirar a neve. Quando consegui liberar a janela do passageiro corri até o caminhão e peguei uma lanterna. Aquela provavelmente era a primeira vez que o interior daquele carro via luz por muitos anos. Mas não pude ver nada, e minha decepção ao perceber que o vidro estava embaçado e sujo demais foi visível.

-Larga mão disso e vem ajudar a gente a desatolar o caminhão, vai -tentou Lyriel, já recuperada do tombo, enquanto os outros riam do meu esforço inútil com o carro. -Do contrário não sairemos daqui hoje -continuou, segurando a risada.

E novamente fingi não ouvir. Apanhei uma pá no porta-malas do veículo blindado e comecei a retirar a neve que bloqueava o resto da porta. Mas quando tentei abrir-la o trinco saiu na minha mão, e novamente todos riram. Dessa vez não aguentei, e também caí na risada.

-Porra...! Esse carro conspira contra mim! -sorri.

-Ok, Nuke. Vou resolver isso pra você, se prometer ajudar a gente depois -barganhou Thompson, com aquele tom de voz que usamos com crianças levadas. Então se aproximou do carro, pegou a pá de minha mão e bateu-a com força no vidro. Mal os estilhaços terminaram de cair um cheiro de morte se espalhou pelo ar.

-Pelos deuses! -Anne se abaixou, vomitando o almoço. Thompson e eu, também assustados, cobrimos o nariz ao mesmo tempo.

-Rápido Ly, máscaras de gás! -gritou Yoseph preocupado, puxando sua máscara sobre o nariz.

56. Passado e Presente

Quando o cheiro diminuiu me aproximei novamente, empunhando a lanterna. No banco do motorista havia o corpo de um homem, debruçado sobre o volante. Sua pele estava escura e repuxada, completamente colada aos ossos, enquanto suas roupas não passavam de farrapos. Em seu colo, enrolada nos restos de um cobertor, estava aconchegada uma menininha, ainda abraçada a seu ursinho de pelúcia.

-Eles deviam estar fugindo da guerra -murmurei atônito.

Anne chorava em silêncio. Lyriel se aconchegou nos braços do irmão, que abraçou-a com força. Thompson permaneceu em silêncio, olhos vidrados em lugar nenhum. E eu continuei a desenterrar o carro. Primeiro a parte de trás, onde pude ver malas, cobertores, garrafas de água e comida enlatada, depois as portas do lado esquerdo, e por fim a frente.

-Dispararam contra eles, vejam -anunciei, ao terminar de limpar a neve sobre o capô e encontrar diversas perfurações.

Eu não entendia. As portas estavam trancadas e os vidros inteiros. Nada fora roubado. Olhei, então, uma vez mais para o interior do carro. Os cabelos loiros da menininha brilhavam à luz da lanterna, e seu rosto, ainda que maltratado pelo tempo, continuava a guardar toda a calma e serenidade que faltava ao resto do mundo. Talvez, se todos tivéssemos um ursinho para abraçar e um colo para se aconchegar, pudéssemos dormir naquela mesma paz.

Provavelmente eu nunca saberia o que realmente aconteceu àquele pai e sua filha, mas sabia que nunca os esqueceria.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

53. Noite de Silêncio

Naquela noite ninguém falou, preferindo observar o fogo estalar e sibilar. Nos abrigamos na reentrância de um barranco coberto de neve e utilizamos os veículos para esconder o brilho das chamas de olhos curiosos. A brisa uivava do lado de fora, enquanto uns poucos flocos de neve rodopiavam para dentro e faziam malabarismos, até se derreterem em um chiado baixinho. Todos olhávamos fixamente as chamas, estávamos, cada um, sozinhos com nossos pensamentos. Era como se nossos corpos tivessem sido abandonados e nossas mentes estivessem em seus próprios mundos, viajando livres.

Yoseph foi o primeiro a quebrar o silêncio. Colocou a mão sobre o brasão dos Deuses e arrancou-o do braço direito da jaqueta. Lyriel o acompanhou, e ambos jogaram os brasões no fogo. Nem Thompson, Anne ou eu dissemos palavra, apenas observamos o cálice branco, com a hóstia e auréola, brilharem por entre as chamas, impotentes. Os irmãos então se abraçaram. Eram jovens, assim como Anne e eu, e também estavam aprendendo com os erros e decisões. Com Thompson era diferente. Ele ainda sentia-se preso ao passado, tentando encontrar seu mundo em meio aos escombros que formavam o novo. Suas lembranças não se encaixavam com o que seus olhos viam, e cada vez mais ele sofria em silêncio. Eu sabia, percebia, mas ele continuava firme com sua carapaça de coragem e determinação. E, por mais que desejássemos, continuávamos todos naquele mesmo mundo esquecido, coberto de pó e neve.

E foi naquela noite, pela primeira vez desde que consigo me lembrar, em que vislumbrei, em meio a tantos pensamentos, uma resposta à uma das tantas perguntas que me fiz todos os dias de minha vida. Vi ali, em meio àquelas pessoas até a pouco desconhecidas, uma família: almas unidas pelo acaso -ou destino, como alguns costumam chamar- que em qualquer outro momento ou lugar seriam apenas desconhecidas. Percebi, então, que tinha que adicionar um novo item à minha lista. Felicidade talvez fosse ter um abrigo do vento, uma fogueira e o acaso de uma noite de silêncio.