Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

52. Esconde-esconde

Era uma noite qualquer. Fria, como sempre. Jantávamos em silêncio, como nos havia sido ensinado, honrando os que já não podiam mais desfrutar de algum alimento e aqueles que ainda passavam fome. Meu pai, como de costume, jantava rapidamente e volta a seu escritório, onde passava horas em seu notebook. Mesmo deixando a porta aberta, ele jamais permitiu que entrássemos lá, mesmo em sua presença. Nunca soubemos no que ele trabalhava, mas por vezes o ouvíamos pronunciar maldições e dar um soco de raiva na mesa. Minha mãe logo nos acalmava, dizendo que papai sabia o que fazia, que não precisávamos nos preocupar. E assim passaram-se muitos anos.

Costumávamos brincar do lado de fora do abrigo. Mas meu pai permitia apenas nos dias em que nevava e, ainda assim, apenas pouco antes do anoitecer. Hoje, sei que ele tentava nos proteger, impedindo que fossemos vistos facilmente, caso alguém estivesse observando. E por coisas assim, sinto falta dele. Sinto que, na tentativa de nos manter vivos, ele deixou de viver e aproveitar o que ainda podia e lhe restava no mundo: sua mulher e seus filhos.

E então, em uma de suas longas noites de trabalho, finalmente o que ele tanto temia aconteceu. Nós percebíamos quando meu pai cochichava com minha mãe, sabíamos que eram problemas que estavam por vir, mas ainda assim eles mentiam dizendo que tudo estava bem. Nos dias que se antecederam àquele os cochichos aumentaram, de modo que mamãe já não conseguia mais disfarçar, e para que não a víssemos chorar, corria para o quarto e trancava a porta. Papai estava preparado, tinha nos feito brincar de esconde-esconde o dia todo, e quando aconteceu, estávamos escondidos no armário de um dos quartos. Só pudemos ouvir os disparos. O confronto durou poucos instantes, e em seguida veio a gritaria. Vozes perguntavam sobre muitas coisas, mas meu pai apenas xingava de volta. Ameaças. Mais xingamentos. Um grito -ainda o ouço ecoar, algumas noites, em meu sono. Um disparo. E então um longo silêncio. As vozes perguntaram novamente. Sem resposta. Outro disparo. Outro longo silêncio.

Lembro de Lyriel ter dito que iria lá ver. Mas consegui convencê-la a ficar. Tremíamos de medo. Éramos crianças, mal sabíamos nos vestir sozinhos, quanto mais nos defender direito. Esperamos não haver mais sons pela casa, e quando tudo silenciou, esperamos muito mais. Finalmente, com as pernas doendo por ficarem encolhidas por tanto tempo, juntamos coragem e deixamos o esconderijo. Caminhamos pelo corredor sem fazer barulho, mal respirando. Sentíamos um vento gelado percorrer a casa. Entramos na sala e a encontramos toda destruída e revirada. No chão havia poças de sangue, rastros e pegadas por todos os lados. No sofá uma espingarda ainda mantinha uma mão decepada presa ao gatilho, enquanto em meio ao vidro espatifado da mesa de centro haviam duas pistolas abandonadas.

Nossos olhos não paravam de chorar. A porta da sala batia com o vento, que também fazia voar os papéis jogoados por todos os lados. Nos abraçamos longamente, sentados no chão, indefesos. Não sabíamos o que fazer, apenas chamávamos baixinho por nossos pais. Não sabemos quanto tempo se passou, mas ainda havia gente na casa, e quando nos encontraram, não foi muito divertido... pra eles.

-Olhem só. Os anõezinhos estão aqui! -falou por detrás da máscara o soldado que nos encontrou. E logo ouvimos o som de passos no porão, onde ficava o escritório de meu pai. Levantamos num pulo, com o coração saltando pela garganta. Corremos para trás do sofá, tentando nos esconder. -Rá! Eles acham que vão se esconder de nós! Querem brincar de esconde-esconde, pirralhos? Vamos brincar então. -O soldado deitou no chão e olhou por debaixo do sofá, rindo de nossa infantilidade ao ver nossos pés. Mas seu sorriso sumiu logo. Lyriel tinha pego uma das pistolas e enfiado debaixo do sofá. Um único disparo e a sala estava novamente em silêncio.

Dois outros soldados subiram correndo pela escada ao ouvirem o barulho do tiro, mas eu já os estava esperando. Tirei a mão decepada da espingarda, sentei na borda do sofá e apoiei a arma, que tinha meu tamanho. Mal as duas cabeças eram visíveis na porta do porão, disparei. Com o tranco da arma voei para trás numa cambalhota, caindo de costas no chão. Senti os cacos de vidro cortarem minha carne. Depois, lembro apenas de ter ouvido Lyriel gritar ao ser erguida no ar, pra em seguida um soldado me encarar através do visor de sua máscara.

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