Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

72. Campo de Exploração de Destroços

A inesperada e súbita partida a Bermil aconteceu ainda aquela noite. Quando fui embarcado no veículo que me levaria aos campos de exploração de destroços, descobri que minha bagagem tinha sido arrumada e já estava embarcada. O caminhão que faria o transporte era grande, e dentro haviam cerca de outros vinte soldados de Amrak, todos pouco mais velhos que eu, com excessão de dois, que pareciam ter idade para ser pai qualquer outro ali.

Ninguém conversou muito durante todo o percurso, que não era maior que vinte quilómetros, mas pelas poucas palavras trocadas pude perceber que havia mais em comum entre nós além da idade: todos havíamos, de algum modo, tocado em um ponto indevido das fundações político-militares de Amrak e seu exército, e de suas relações com outras cidades e facções. Bermil não era simplesmente uma fonte extra de recursos e riquezas, era um lugar suficientemente longe de Amrak no qual espertinhos curiosos podiam ser mantidos longe de descobrirem mais sobre o que não deviam. Chegamos com a noite ainda escurecendo as nuvens e fomos mandados direto às barracas de campo, onde teríamos pouco menos de duas horas de sono antes que começássemos nossas novas funções ao nascer do dia.

Pela manhã pudemos vislumbrar pela primeira vez o que nos aguardava. Aquele ambiente era novo para a maioria, mas como um ex-escravo eu estava acostumado e não me surpreendi nem um pouco. O acampamento havia sido erguido em uma clareira aberta em meio aos escombros de dezenas de construções. O entulho retirado tinha sido empilhado por toda a volta, criando uma espécie de muralha, e apenas uma única entrada, apontando para onde o sol nascia por detrás das nuvens, havia sido deixada para a entrada de veículos. Cerca de cento e cinquenta soldados podiam se apinhar por ali, mas o efetivo era de mais de duzentos e oitenta, de modo que tudo funcionava em esquema de revezamentos.

Sob o comando e a proteção dos militares estavam grupos de trabalhadores livres, vindos de outras duas cidades da região: Mora e Trapas. Os recursos desenterrados das ruínas eram reciclados nas indústrias e se tornavam equipamentos e principalmente armas. A tecnologia retirada dos escombros também era muito valiosa, e amigos podiam matar uns aos outros por um simples chip de computador ou disco rígido em boas condições. Eu esperava que meus anos de experiência no assunto me garantissem um pouco de sussego, mas meu primeiro turno de guarda mostrou o que eu temia: o mundo era mais do que ruínas, cidades decadentes e desejos de riquezas, era um lugar de política e poder, com monstros reais e imaginários, no qual nos afogaríamos muito em breve.

71. Wisky, Charutos e Mulheres.

Von Ricky permaneceu em silêncio durante todo o caminho de volta à Amrak. Concluí que era pelo fato de ter perdido um de seus homens, famosos por serem rigorosamente selecionados dentre os melhores do exército pelo Comandante. Desde então não o vi mais pelo acampamento, assim como qualquer membro dos Fantasmas, e só pude imaginar que estariam em alguma missão por aí.

Passei ainda outras duas semanas como vigia da muralha. Foram dias, como sempre, de completo tédio, ainda mais que a matilha de lobos tinha deixado de frequentar aquelas colinas depois do incidente. Mas, felizmente -ou infelizmente- meu tormento não durou muito, e em um noite de forte tempestade fui chamado a falar com o comandante em serviço. Dois soldados vestindo tinham vindo me dar o recado e me escoltar até a tenda onde eu deveria me apresentar. Nenhum deles respondeu às minhas perguntas, permanecendo em silêncio todo o tempo, e como tinham os rostos cobertos por gorros e máscaras para se protegerem do frio, não pude reconhecê-los. Durante todo percurso mantiveram suas metralhadoras em punho e permaneceram sempre um passo atrás de mim.

Dois outros soldados guardavam a entrada da enorme tenda, e novamente não pude identificar nenhum deles. Dentro havia vários outros, mas a luz fraca de dois pequenos lampiões mal era suficiente para iluminar as mesas e cadeiras que havia no caminho. Ao fim da tenda, sentado em uma cadeira reclinável acolchoada estava acomodado o dito comandante. Como o vilão de algum filme antigo ele girou em sua cadeira ficando de frente para mim, fumava um charuto com uma mão e com a outra bebia wisky em um copo com gelo.

-Qual seu nome, soldado? -perguntou o comandante, cujo rosto e nome estavam escondidos pelas sombras.

-Senhor, Nuke, senhor -respondi, batendo continência.

-Nuke? Seu nome é Nuke, soldado? -falou, colocando o copo na mesa e soltando uma gargalhada engasgada em wisky. Os que estavam em volta, também protegidos nas sombras, riram em concordância, como se estivessem brincando de siga o mestre.

-Senhor, sim senhor -respondi novamente, segurando minha fanfarronice e minha irritação dentro de mim.

-Estranho... Bom, fui informado de suas habilidades de observação, que resultaram na... hum... -e ficou um instante ponderando as palavras antes de continuar- missão bem sucedida com Comandante Von Ricky. Por isso, creio que seu talento será mais bem aproveitado nos campos de exploração de destroços, em Nova Bermil. Prepare-se, você parte dentro de uma hora.

E afundou-se novamente em sua cadeira, bebeu de seu wisky e fumou de seu charuto.

Enquanto saía ainda pude ver silhuetas voluptuosas de mulheres nuas dançando sobre soldados de sorte, em um mundo completamente fora de minha realidade.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

70. Velhos Conhecidos

Quando dei por mim, ainda caído no chão, um clarão vermelho iluminava os céus além da colina onde avistei o atirador. Von Ricky me observava de cima, assim como outros dois soldados, enquanto um terceiro soldado estava ajoelhado ao meu lado.

-Sortudo desgraçado... -comentava o comandante com seus soldados. -Pelas minhas contas esse moleque já devia ter morrido umas três ou quatro vezes desde que o encontrei.

-Acho que ele vai ficar bem, senhor -disse o soldado que estivera ajoelhado. Apenas quando ele se levantou pude ver a cruz vermelha em seu ombro, indicando sua especialidade médica.

-Ótimo, levante-se, temos que ir.

Eu até tentei, mas uma forte dor nas costelas me impediu. Dois soldados tiveram de me ajudar a ficar de pé. Olhei então para baixo e vi um enorme buraco no uniforme camuflado do exército de Amrak. O atirador tinha tentado me atingir, mas o tiro passou de raspão, dilacerando a roupa e o colete a prova de balas que eu usava. Apenas a pancada resultante do impacto tinha me ferido, mas ainda assim doía profundamente. Olhei em volta e tentei entender o que tinha acontecido nos instantes em que fiquei desorientado. Von Ricky falava pelo rádio, alguns soldados tinham se expalhado pelas redondezas e os dois veículos que a pouco tinham partido em busca de quem quer que estivesse naquelas colinas estavam retornando. Reparei que em um deles havia buracos de bala que não existiam quando saímos da cidade.

-Comandante! Comandante! -chamei, fazendo caretas de dor ao caminhar. -O que houve, afinal?

-Um homem abatido e um veículo levemente danificado, do nosso lado -disse virando-se para mim. E continuou, com a mesma seriedade de sempre. -Dois mortos, dois snowmobiles e um carro destruídos do outro lado. Pra sua sorte. Eu já estava esperando pelo ensopado no jantar

-Tá, beleza, ensopado... Quem eram eles, afinal? -ignorando a piadinha sarcástica.

-Eles tinham isso costurado nos uniformes -e esticou o braço, me passando um brasão.

Eu já havia visto aquele símbolo: um cálice branco com uma hóstia e uma auréola em volta.

69. Rastros

Enquanto avançávamos rapidamente pelo túnel repeti mentalmente várias vezes as palavras de Von Ricky. É bom que você esteja certo, ou não teremos apenas carne de rato no ensopado de hoje. Mas mesmo ele não se arriscaria com seus superiores saindo da cidade sem um bom motivo, e só o faria pois confiava em minhas habilidades de observação depois que encontrei seus melhores homens camuflados na neve. Estávamos ao todo em vinte, divididos em quatro veículos blindados.

Chegamos à colina cerca de 40 minutos depois de eu ter observado ali a sombra. Com o binóculo era possível observar os guardas patrulhando o muro da cidade ao longe, mas em toda a nossa volta nada mais podia ser visto. Von Ricky estava obviamente transtornado, mas antes de explodir, mandou alguns de seus homens em duplas fazerem uma varredura nos arredores. Não demorou muito até que um deles encontrasse algo. Cerca de 100 metros de onde paramos haviam alguns lobos mortos ao lado de um bosque de pinheiros secos. Uma trilha de pegadas e sangue seguia por entre as árvores e terminava em um rastros de snowmobiles.

-Times Alpha e Bravo, peguem os veículos e rastreiem a área, eles não devem estar muito longe -falou Von Ricky, enérgico.

Voltamos para os veículos e dois deles seguiram por entre as árvores mortas. Von Ricky não largava do binóculo, assim como eu. Procurávamos por entre as árvores e pelas colinas por qualquer sinal de movimento, mas além de nós, nada se movia por ali. Logo as duas equipes do Comandante tinham se afastado e sumido além de uma enorme colina. Pelo rádio reportaram que nada havia depois do bosque, e que as marcas seguiam por uma grande planície sem nada à vista.

-Filhos da puta, ratos sarnentos... -rosnou por entre os dentes Von Ricky. -Voltem pelo leste, por detrás das colinas e... -o estampido de um disparo cortou o silêncio e fez o comandante se calar. Um de seus soldados caia inerte ao chão, enquanto os outros erguiam suas armas e procuravam onde atirar. -Nuke, de onde veio esse tiro? -esbravejou comigo, agarrando-me pelo colarinho e quase me tirando do chão.

Olhei desesperado em volta com o binóculo. Varri todas as colinas, do bosque à cidade sem ver, novamente, nada. Refiz a observação, e dessa vez algo me chamou a atenção. Em uma colina do lado oposto ao bosque uma rocha se mexeu e sumiu atrás de outra maior.

-Ali, entre as pedras! -gritei. E voltei a olhar pelo binóculo, bem a tempo de ver o clarão do segundo disparo e ser jogado para trás uma fração de segundo depois.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

68. Sombras nas Colinas

Patrulhar o muro de Amrak com certeza não era bem a concretização de meu desejo de voltar a caminhar. Infelizmente, para um recruta como eu, ou era patrulhar as muralhas, ou limpar as latrinas. Como o soldado que brigou comigo ainda andava desejoso de uma revanche, acharam melhor que eu me mativesse o mais longe e ocupado possível, e um turno duplo na torre de vigia era ideal para isso.

As semanas como vigia foram um tédio total. Mas ao menos eu havia recebido um binóculo militar eletrônico, capaz de um aumento de 100 vezes e visão noturna. E foi com ele que observei, por duas vezes, uma enorme matilha de lobos cruzar as colinas não muito longe da cidade. Pouco antes do anoitecer, quando já quase não havia mais luz a iluminar as ruínas do mundo, um enorme lobo de pelos brancos surgia detrás das colinas e farejava a brisa noturna, então descia lentamente, parando aqui e ali para observar. Apenas quando seu líder chegava ao fundo da colina os outro membros da matilha saiam das sombras e avançavam pela neve fofa às dezenas.

Foi quando achei que veria a matilha pela terceira vez que minha chance de sair dos turnos de vigia apareceu. Quando os últimos raios de sol se expremeram por entre as núvens uma pequena sombra surgiu acima de uma das colinas ao longe. Esperei que o lobo ancião surgisse e em seguida sua matilha, mas ao invés disso a sombra ficou lá parada, como uma mosca em uma toalha branca. Longos minutos se passaram e nem um movimento houve. Chamei um dos guardas que passava pela muralha logo abaixo da guarita e pedi que ele usasse seu binóculo, mas já não havia o que olhar. A mancha tinha sumido. O soldado riu-se de mim, disse que era melhor eu descansar um pouco e saiu. Eu sabia, porém, que havia alguma coisa diferente acontecendo. Aquele era o dia em que os lobos costumavam cruzar aquela região, e se eles não o fizeram deveria haver um motivo.

É claro que nenhum dos oficiais em serviço naquele momento estava disposto a mecher os traseiros gordos para fazerem uma verificação, ainda mais vindo de um recruta com três semanas de serviço. Mas eu sabia a quem recorrer, e se eu estivesse certo meus dias de vigia chegariam ao fim.

-Senhor?

-Ainda é Comandante Von Ricky, para você.

67. Exército de Amrak

-O que quer aqui moleque? Não temos pipa, bola nem peão aqui pra você brincar -esbravejou o soldado, que se esparramava em uma velha cadeira de plástico atrás de uma pequena mesa também de plástico.

-Quero me alistar -falei sem dar ouvidos à ele.

-Ah, sei. E acha que vai ganhar um pirulito, né? Vai fazer o que com o pirulito, enfiar no cuzinho até ele derreter?

A princípio pensei em não dizer nada, e ficar ali parado até que ele fizesse meu cadastro, mas meu corpo tinha sido inundado de adrenalina e minha boca já não era mais controlada por mim.

-Talvez. Mas eu prefiro enfiar no seu e ver o palito sumir.

O soldado arregalou os olhos imediatamente. Quem passava em volta congelou no lugar, esperando a reação. O homem então ficou vermelho, e numa explosão de raiva voou por cima da mesa, jogando ela e a cadeira longe, numa nuvem de folhas de papel rodopiantes.

-VOU TE MATAR, SEU FEDELHO DESGRAÇADO, FILHO DE UMA PUTA DEFORMADA RADIOATIVA.

Nesse ponto meu pescoço era esmagado pelas duas mãos do soldado, e metade do acampamento tinha se reunido a nossa volta gritando por sangue. Eu tentava me defender como podia, socando e estrebuchando, mas meu agressor era muito mais forte. Num último suspiro antes de sufocar estiquei meus dedos em seu rosto e comprimi seus olhos com toda a força que consegui juntar. Ele então soltou meu pescoço e levou as mãos ao rosto num urro de dor. Contorci-me para trás, coloquei meus pés em seu peito e empurrei-o para longe. Eu ainda tossia, tentando respirar, quando ele finalmente conseguiu abrir os olhos e me encontrar. Ele cambaleou até mim, com o rosto ainda mais vermelho que antes, e chutou-me no estômago. Senti a biqueira da bota militar cutucar meu órgãos antes de cair no chão, encolhido para escapar dos outros chutes que viriam.

-Pare! -falou uma voz grossa, para meu alívio. Eu já estava para me arrepender da bravata quando um homem, vestindo um uniforme diferente dos demais, cheio de medalhas e brasões, encerrou a briga. Todos os soldados bateram continência e se puseram em posição, aguardando ordens. -Estão todos dispensados. Tratem de voltarem a seus afazeres.

-Senhor, eu... -começou a falar o soldado com quem eu brigara.

-Cale-se!

-Senhor, sim senhor -falou o soldado, colocando-se em posição de sentido.

-Ele queria se alistar, soldado?

-Senhor, sim senhor.

-Se já apanhou o suficiente, garoto -disse ele a mim- recomponha-se e apresente-se ao comandante em serviço. Você acaba de assinar seu atestado de óbito. Seja bem-vindo ao exército.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

66. Amrak

Os dias passavam lentamente para mim. Thompson tinha se acostumado na primeira semana, arrumado um emprego junto aos pesquisadores da cidade, e encontrado uma pequena casa para morar. Anne tinha reencontrado sua família, e agora desfrutava a companhia de seus tios. Enquanto isso, eu me esforçava para fazer milagres no conserto dos veículos da oficina onde eu conseguira emprego. Quase não havia veículos na cidade, já que a maioria era usada pelo exército, e quando havia, não se encontravam peças que lhes servissem, então quase não pude desenferrujar meus conhecimentos de mecânica.

Passava a maior parte de meu tempo livre lendo qualquer coisa que encontrava, desde livros à revistas e quadrinhos. Era minha forma de aprender, já que não havia escolas, e de me distrair, dando as peças para que minha imaginação montasse o quebra-cabeças daquele mundo passado, do qual restavam apenas fragmentos. As visitas semanais de Anne e Thompson me ajudavam a conhecer um pouco do universo próprio em que a cidade estava mergulhada, mas uma rápida olhada nas ruas me desanimavam um passeio. Anne sempre me convidava a visitar seus familiares, mas eu não tinha vontade de vê-los, pois sabia que isso me faria sentir falta de meu pai. E já haviam se passado mais de três anos desde a última vez em que nos vimos.

Haviam muitas pessoas pelas ruas, a maioria cuidando de seus próprios assuntos, o que as deixava sem tempo de sequer olharem para aqueles que lhe cruzavam o caminho. Emprego é o que não faltava pela cidade. Em todo o canto era preciso de gente especializada para isso ou aquilo, e em nenhum canto se encontrava quem trabalhasse. O salário, que servia para a compra de comida e aluguel de moradia, era quase sempre o mesmo: 200 créditos Amraks, pagos diretamente nas pulseiras eletrônicas. Haviam empregos mais bem remunerados, mas normalmente em serviços que demandavam alto conhecimento específico, como o de pesquisas tecnológicas de Thompson, oferecidos pelo governo de Amrak. A comida -que eu não suportei desde o primeiro dia, me fazendo ter saudades da carne seca de iguana e da ração militar- era composta por uma dezena de cápsulas e uma massaroca de fibras. As cápsulas continham todos os nutrientes e minerais necessários para suprirem as necessidades diárias de cada pessoa, enquanto a massa, que alguns diziam lembrar macarrão, era necessária para evitar o atrofiamento do sistema digestivo pela falta de ingestão de alimentos sólidos. Tudo era fabricado em uma indústria, cuja chaminé soltava constantemente uma espeça fumaça negra, de aparência bastante duvidosa.

Mas a comida, os empregos, as pessoas e solidão não me incomodavam tanto quanto ficar parado. O fato era que eu não suportava ficar preso àquela cidade, dentro de seus limites murados. E apenas três meses se passaram antes que eu decidisse retomar minhas andanças em busca de coisa alguma, pelos escombros e amontoados de neve daquele mundo arrasado.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

65. Pôr-do-Sol

-Alto! Quem vem lá?

E com o grito do soldado saímos de nossos devaneios -eu já tinha me acostumado com devaneios, mas sempre me assustava ao sair deles, percebendo que o mundo não parava para me acompanhar em minhas viagens mentais. Dois homens vestindo uniformes camuflados para neve saíra das guaritas ao lado do portão de grade e se aproximaram de nós. Outros homens permaneciam nas torres e além das grades, de armas em punho e feições nada amigáveis.

-Identifiquem-se -falou um deles, puxando a mascar que protegia seu rosto do frio, deixando ver cicatrizes e marcas de feridas e queimaduras por toda a face e pescoço. -Vêm a negócios ou como cidadãos?

-Ambos. Sou Thompson, este é Nuke, e aquela é Anne. Viemos de Tradeport.

-Hum, sei. Vocês poderão ficar por até uma semana, depois disso terão de trabalhar para poderem permanecer aqui. Existem empregos na cidade e fora dela, todos eles são pagos diretamente pelo governador de Amrak -ia falando o soldado, enquanto fazia anotações em uma prancheta. Um terceiro soldado se aproximou trazendo três pulseiras e um aparelho estranho, que mais parecia uma pistola com uma tela e um teclado. -A comida é distribuída todos os dias antes do por-do-sol, portanto não percam a hora. Apresentem-se à Imigração para que lhes arranjem moradias.

Nos explicaram que as pulseiras serviriam para nossa identificação dentro da cidade, e que sua retirada era expressamente proibida, sujeito a graves punições -limitando-se a repetir enfaticamente "graves", completando com um olhar fulminante, quando perguntamos quais seriam essas punições. Em seguida prenderam com a pistola as bordas das pulseiras em nossos braços, que apitaram levemente ao serem ativadas. Retiraram também nossas armas, garantindo que elas seriam armazenadas no arsenal, devidamente identificadas segundo nossas pulseiras. Relutantes, Thompson e eu nos entre olhamos, mas não tínhamos opções, então nos desfizemos das armas.

-Sigam pela avenida até a praça central. Do lado direito encontraram o prédio da Imigração. Sigam diretamente para lá, entenderam? Se não nós saberemos -e apontou para as pulseiras.

Ao primeiro passo além do portão, o primeiro dentro de Amrak, lembrei-me dos veículos que tínhamos abandonado junto ao acampamento militar. Com um tapa na testa, vire-me para Thompson, mas ele se adiantou enquanto eu ainda abria a boca:

-Sim, o caminhão e o carro ficaram. Eu volto pra pegar depois, mas primeiro... -aproximou-se de mim e girou-me nos calcanhares- observe.

Amrak se erguia por toda a volta de uma grande bahia. Grandes blocos de gelo dançavam sobre as ondas do mar, como as estrelas no céu de antigamente. Casas, prédios e grandes galpões se amontoavam, dos sopés das colinas sobre a qual estávamos até o quebra-mar, como se preparassem para mergulhar nas águas escuras do oceano. A noite ia arrastando suas sombras sobre a cidade, e apenas sua silhueta podia ser vista contra os últimos raios de sol que pulavam de debaixo das ondas no horizonte.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

64. Adeus, Branca de Neve

Von Ricky virou-se e puxou um de seus homens, que ainda olhava para o rosto pálido de Lyriel, pelo ombro, afastando-se. Nesta hora lembrei-me de uma história, um conto de fadas, como se dizia antigamente, em que uma senhorita de pele tão branca quanto a neve havia sido envenenada e dormia profundamente, sem que nada pudesse acordá-la, até que um príncipe surgiu e, com um beijo, a fez despertar. Desejei que houvessem príncipes, e que um deles pudesse vencer a dama da morte que, invejosa da beleza alheia, levava Lyriel de seus entes queridos.

Mas não apareceu nenhum príncipe, e logo os médicos levavam-na embora, coberta com um lençol branco esfarrapado. Outro militar, de alta patente, assumiu o comando da situação agora que Von Ricky se fora. Seus homens nos empurraram com violência, mandando que fossemos embora, mas Yoseph e Anne não queriam deixar Lyriel sozinha. Yoseph, aos gritos, e mesmo com fuzis apontados para sua cara, convenceu-os a deixarem que ele acompanhasse a irmã morta. Mas Anne, que xingava os soldados de nomes que fariam até o inferno pequeno, nada conseguiu. Thompson e eu tivemos de arrastá-la pelos braços para longe, e só depois de muita conversa é que conseguimos explicar que nada mais podia ser feito, e agora precisávamos cuidar de nós mesmos.

Um soldado nos apontou um caminho por entre as barracas e mandou que nos dirigíssemos aos portões de Amrak. A princípio não entendemos, mas como já virara as costas e ia embora, não pudemos questionar. Se li não era ainda a cidade, onde ela estaria? Não precisamos de muito tempo para encontrar a resposta. Além das tendas havia um muro, tão alto que nem mesmo quatro pessoas uma em cima da outra poderia atingir seu topo, um grande portão de ferro fazia a passagem para o outro lado. Caminhamos pelo portão sem que nenhum soldado nos questionasse -se é que algum deu pela nossa presença- e seguimos pela estrada de asfalto que descia a colina e se afastava cada vez mais da escarpa.

Era a maior estrada asfaltada que eu me lembrava de ter visto que não estivesse coberta de neve. Havia uma camada de quase um metro de altura de neve nas laterais, mas sobre o tapete negro praticamente não haviam pontos brancos. Parcialmente soterrados, e por todo o caminho, uma infinidade de veículos enferrujava e desaparecia lentamente, desde carros de passeio até antigos caminhões de bombeiro, carros de polícia, motos e bicicletas. Os motores e quaisquer peças úteis haviam sido retirados dos veículos, mas as carcaças formavam um imenso cemitério de ferro retorcido, lembrando-nos constantemente de tudo o que os homens haviam aberto mão ao decidirem matar uns aos outros, e de tudo o que perdemos nessa jornada.

Lyriel não seria mais do que aquelas carcaças para um mundo que apodrece lentamente rumo ao esquecimento. Mas, para nós, mesmo em nossas poucas lembranças junto a ela, sempre haveria um príncipe que a fizesse acordar e se juntar a nós uma vez mais.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

63. Parada Cardíaca!

Avançamos de frente à muralha de pedra a toda velocidade. Nenhum dos soldados se mexia, mas não pude deixar de por meus braços à frente do rosto e me encolher, protegendo-me do impacto. Thompson fez o mesmo, nem meio segundo depois. Mas a colisão não veio, ao invés disso tive a sensação de que caímos em queda livre por um ou dois segundos, e quando os soldados e o Von Ricky começaram a gargalhar, olhamos em volta pelas frestas do caminhão. Estávamos em um túnel cavado na rocha escura, atrás de nós, na entrada do túnel, subia uma rampa íngreme de gelo. Do lado de fora, a não ser que se estivesse acima das colinas -ou seja, voando- era impossível de se avistar a entrada do túnel. Era um método simples e muito eficaz de camuflagem.

Logo os outros três caminhões, incluindo o nosso, estavam avançando velozmente pelo túnel, que era capaz de comportar dois veículos lado a lado e tinha altura para mais de cinco homens. Ao final dos quase 3 quilómetros um grande portão de ferro utilizado para selar o túnel se abria, permitindo nossa passagem. Depois de alguns minutos na escuridão a luz que se venceu as nuvens no céu e se espremeu pelas frestas na blindagem foi suficiente para nos ofuscar por alguns instantes. Mesmo o Comandante freou bem a tempo de não derrubar uma tenda militar, depois de seus olhos se acostumarem com a luminosidade. Descemos do veículo e diversos soldados se aproximaram, Von Ricky imediatamente deu ordens para que retirassem os equipamentos dos caminhões e reparassem os danos de um deles.

Por toda a volta, sobre os restos de um pátio asfaltado, haviam tendas militares, veículos blindados, equipamentos e armas de todos os tipos. Soldados se apinhavam pelo o pouco espaço que restava, tentando realizar suas tarefas antes que algum superior os culpasse pela demora. Do lado oposto à escarpa e a entrada do túnel um grande muro de tijolos podia ser visto se erguendo acima das tendas. Fios de arame farpado cobriam toda a extensão do muro, enquanto guaritas podiam ser vistas até se perder de vista. Eu estava absorto observando todo aquele movimento, toda aquela enorme quantidade de pessoas. A última vez em que eu havia visto tantas pessoas reunidas fora durante meus anos de trabalho para os Escravizadores, e a maioria era de escravos. Mas eu não tinha tempo para pensar no passado, e Anne me lembrou disso quando desceu aos prantos do caminhão carregando, com a ajuda de Yoseph, o corpo de Lyriel. Me apressei em ajudá-los e Thompson chegou em seguida.

-Ei, você, soldado! -esbravejou Von Ricky acima do barulho que dominava o acampamento a um coitado que passava. -Mande o pessoal do hospital para cá, imediatamente.

-Senhor. Sim, senhor -tremeu o pobre soldado, e saiu apressado em busca de ajuda.

-Ela perdeu muito sangue... m-muito sangue... -Anne fazia força para que palavras saírem, mas os soluços impediam.

Quando os médicos chegaram, todos militares fardados, trazendo equipamentos e uma maca, agiram depressa. Um dos homens examinou os batimentos cardíacos, enquanto outros dois tiravam as bandagens do ferimento para examiná-lo. O buraco deixado pela bala era enorme, estava vermelho escuro e tinha uma aparência apodrecida. Eles se preparavam para colocá-la na maca quando um dos médicos gritou:

-Parada cardíaca! Parada cardíaca! Carreguem o desfibrilador e afastem-se todos! -e imediatamente os médicos colocaram Lyriel novamente no chão.

Cinco descargas depois e o coração havia finalmente desistido. A guerra fazia mais uma vítima, em sua colheita sem fim pelo mundo.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

62. Escarpa de pedra e Gelo

A viagem foi longa. Muito longa. Durou pouco menos de duas horas, mas a nós pareceu ter levado um dia inteiro.

Thompson e eu fomos em um dos veículos comandados pelo Comandante Von Ricky, enquanto Anne e Yoseph, depois de insistirem até o fim, foram permitidos de irem com Lyriel em nosso veículo, acompanhados de dois outros soldados. Um dos soldados, um homem de no máximo 30 anos, disse conhecer primeiros-socorros, mas não fez muita coisa - ou talvez não houvesse mesmo muito mais o que fazer por Ly. Desejei muito que não nos tivessem separado. Mesmo a pouco tempo juntos, sentia falta de tê-los por perto, mas Thompson me confortou quando busquei em vão, por entre as frestas da blindagem, uma visão de nossos companheiros.

Viajamos sempre por entre os vales, já que nosso veículo não era camuflado, mas a toda velocidade. Paramos bruscamente, deslizando pela camada de neve, em frente a uma encosta de pedras e neve, no final de uma garganta entre as colinas altas. Minutos se passaram sem que ninguém dissesse nada, e também não nos movíamos mais. Finalmente o rádio do veículo chiou alto e Von Ricky atendeu:

-Aqui fala a unidade Fan 01, aguardando para entrada pelo túnel. Comandante Von Ricky. Câmbio. -Mais alguns instantes se passaram, até que o veículo começou a vibrar levemente. Nenhum dos soldados parecia se preocupar, enquanto o Comandante se limitou a reclamar. -Já não era sem tempo. Aposto que estavam dormindo outra vez.

Com tudo ainda vibrando uma enorme porção da neve acumulada na encosta a frente deslizou em nossa direção. As toneladas de água congelada pararam a poucos metros de nós, mas novamente ninguém se abalou. E então avançamos, de frente àquela imensidão branca.

-Thompson? -indaguei, meio confuso.

-Não sei, mas algo me diz que eles vão tentar empurrar uma montanha com um veículo adaptado para andar pela neve. Mas é só uma suposição -falou Thompson, tentando parecer menos preocupado do que realmente estava com o que aqueles soldados fariam.

O veículo avançou ainda mais depressa, mas para nossa surpresa não colidiu com a parede de neve. Ao contrário, usou-a para subir a alguns metros acima do fundo do vale, e seguiu em direção à escarpa de pedra.

-Senhor? Hã... nós... vamos bater naquelas pedras -felei irônica e calmamente, tentando ignorar o medo que crescia dentro de mim. -E pedras são conhecidas por serem bastante duras.

-Cale-se, estamos chegando.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

60. Os Fantasmas

-PARE! -gritou Anne, em desespero. -Pare agora! -e se jogou aos pés de Yoseph, empurrando a arma para longe do amigo. Imediatamente os soldados apontaram as armas diretamente para mim e Thompson, refreando nossos impulsos de nos juntarmos a Anne.

-Oh! Mas que coisinha tocante... - falou o soldado, abaixando-se para ficar na mesma altura que eles. Esticou a mão livre e segurou o queixo de Anne, virando seu rosto de frente para o dele. -Que tal se eu fizer você tocar outra coisa também?

-Senhor? -chamou Thompson, antes que Anne pudesse responder. O rosto dela se contorcia em fúria, suas bochechas estavam vermelhas e seus maxilares travados, pronta para explodir. Foi bem a tempo.

-Meu nome é Ricky. Comandante Von Ricky, pra vocês -e levantou-se, imponente. -Agora, antes que eu perca a paciência, será que você vai me dizer de onde vocês vêm?

-Senhor, nós viemos de... -começou Thompson.

-Hã-hã! Comandante Von Ricky... -interrompeu o soldado.

-Senhor, Comandante Von Ricky -corrigiu-se Thompson, tentando não demonstrar sua raiva -nós viemos de Tradeport e estamos tentando chegar a Amrak.

-Tradport... Tradeport... -falou, e pareceu pensar em alguma coisa por alguns instantes. -O que faziam lá, e porque resolveram vir para tão longe?

-Estávamos simplesmente de passagem, mas o sherife Mark nos pediu ajuda, e então nos enviou para cá -explicou Thompson, claramente em dúvida se deveria ter dito tanto.

-MARK? MARK OS ENVIOU? -alterou-se Von Ricky. -Caralho, abaixem as armas. Agora! Mandei abaixarem as armas!

Relutantes e sem entender os outros três soldados obedeceram. Ainda receosos e também sem entender nada, abaixamos os braços. Anne voltou-se novamente para Yoseph, que cuspia bastante sangue da boca, e tentou ajudá-lo.

-Desculpem o mal jeito. Eu não podia imaginar. Vocês já eram dados como mortos. Eu sou Ricky, e esses são os Fantasmas, soldados de elite de Amrak.

61. Frieza

-Thompson, não estou entendendo... -e fiz uma careta de dúvida.

-Não pergunte a mim... -respondeu Thomspon, dando de ombros.

-Estamos esperando por vocês já faz alguns dias -explicou o Comandante. -A mensagem de Mark dizia que vocês chegariam em um ou dois dias, mas já faz muito mais tempo que vocês saíram de lá, não é? E, com esse mundo aí fora, não se pode ter muitas esperanças, então já os dávamos como mortos.

-E PRECISAVAM TER FEITO ISSO COM A GENTE? E COM ELE? -e apontou para Yoseph.

-Olhe, senhorita... -e esperou que Anne se apresentasse, mas não se apresentou. E, sem se abalar ou mover um músculo da face, continuou. -Bem, escute, estávamos atrás daqueles caras ali já fazia algum tempo -disse, apontando para os corpos na colina -e quando finalmente chegamos até eles, vocês apareceram junto. Existem centenas de milhares de quilômetros de puro nada coberto de neve suja por aí, e bem no momento em que estávamos para dar cabo deles, vocês surfam encosta abaixo e começam a se matar.

-Eeee? Vocês são loucos? -retrucou Yoseph, irritado.

-Não. -Disse Von Ricky friamente. -Supomos que vocês e eles estivessem juntos, e que por algum desentendimento tivessem resolvido se matar. Já descobrimos que foi um erro.

-Vocês estão escondidos nessas colinas desde que chegamos?! -perguntei abismado, até me esquecendo de que eles ainda eram considerados inimigos e tinham ferido um amigo.

-Não, claro que não -ainda friamente -estamos escondidos há dois dias neste local. É até engraçado você perguntar isso. Foi capaz de encontrar meus Fantasmas camuflados, mas não achar aqueles amadores cobertos com cobertores rasgados e pedaços de plástico branco.

-Eu... eu não estava prestando atenção -defendi-me, bastante embaraçado e irritado comigo mesmo pela falha. Eu não tinha visto por esse lado, e então entendi que a culpa de Lyriel ter ficado naquele estado era culpa minha. Estava prestando mais atenção na companhia que agora tinha do que na minha segurança e na deles. Deixei minha habilidade de ver os detalhes no horizonte branco de lado e agora uma amiga pagava pela falha.

-E se os tivéssemos visto e também tivéssemos atirado em vocês? -perguntou Yoseph, ainda com sangue na boca. -Aposto que essa camuflagem toda de vocês não é feita de titânio!

-Entenda que morrer, para mim, não é problema. Pelo contrário, seria uma favor. -Explicou o Comandante Von Ricky, desencaixando a mira telescópica de seu rifle de longo alcance H&K, sempre sem demonstrar emoções. -Desejo a morte de toda a humanidade. E, se possível, gostaria que fosse com minhas próprias mãos.

-Vai nos matar então? É isso que está dizendo? -falou Thompson irritado com a fala mansa do comandante.

-Não, minhas ordens são de levá-los a Amrak, e é o que farei...

-Ly! -exclamou Anne, correndo para o caminhão, enquanto um filete de sangue pingava lentamente do assoalho, tingindo a neve do lado de fora.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

59. Camuflagem

Hoje pouca coisa pode me surpreender, mas naquela época havia ainda muitas coisas a se ver, e aquele dia foi um dos que me lembro com clareza de ter tomado um susto. Jogamos nossas armas no chão e nos viramos lentamente para o lado de fora, assim como pedia a voz. Pulamos para fora, mas além do vento que cortava o vale entre as colinas não havia mais nada. Alguma coisa estava errada, e eu podia sentir.

-Mas que merda fedida, estão brincando com a gente! -vociferou Thompson, e se virou para o veículo novamente. Mas então meus dias de caminhada pela imensidão vazia se mostraram úteis, quando um tom de branco manchado na neve me chamou a atenção.

-Espere Thompson, não se mecha. Veja ali, acima daquelas rochas, uns 30 passos daqui -e fiz um sinal com a cabeça. -Eles estão nos observando antes de agir.

Neste momento dois soldados se levantaram da neve e caminharam até nós, de armas em punho. Eles usavam máscaras de gás e capacetes com viseira, roupas térmicas e botas com aquecimento, tudo disfarçado no mesmo tom de branco da neve fofa que recobria as colinas, inclusive suas armas. Eram como fantasmas deslizando. Mantivemos os braços erguidos o tempo todo, mas tenho certeza que Thompson falou alguma coisa por entre os dentes que apenas Yoseph entendeu, pouco antes dos soldados chegarem até nós. Pensei em me virar e dizer que não fizessem nada, mas provavelmente teria sido uma má ideia. Ao invés disso encarei o inimigo e simplesmente esperei. Sem que percebêssemos outros dois soldados chegaram pelas laterais do caminhão. Tinham se escondido com ângulos de visão diferente dos demais, de modo que sequer imaginei que estivessem ali. Temi por Anne quando a vi tremer da cabeça aos pés, constantemente lançando olhares temerosos a pobre Lyriel, que já não mais se movia no chão do caminhão. E nada podíamos fazer.

-Me surpreendeu, garoto. Mesmo um homem treinado teria levado muito mais tempo para encontrar meus homens camuflados nessa neve fofa. -Falou um dos homens, desafivelando a máscara de gás e a viseira. Devia ter pelo menos 40 anos, cabelos esbranquiçados, olhos castanhos, feições duras. Caminhou em volta de nós quatro analisando-nos. Então finalmente falou outra vez. -Quem, diabos, são vocês, afinal?

Ninguém respondeu.

-Eu perguntei: quem, diabos, são vocês, afinal? -aumentando o tom de voz.

E novamente não houve resposta.

-Talvez... se eu ajudar a abrir a boca, alguém resolva falar... -e agarrou Yoseph pelo pescoço, abaixando sua cabeça e forçando o cano de uma pistola por entre seus dentes. Yoseph tossiu e cuspiu sangue, ainda com a arma na boca, mas o soldado não parecia se importar. -Vamos, moleque, fale alguma coisa! FALE!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

58. Sutura

Olhei por cima do ombro e não vi ninguém. Thompson sequer tinha se importado em olhar e simplesmente se jogou atrás do caminhão. Antes mesmo que eu pudesse chegar ao caminhão e me juntar a Anne e Thompson, que se protegeram junto a Lyriel, Yoseph já disparava sua espingarda.

-Proteja-se, Yoseph! Proteja-se! -berrava Thompson, enquanto abria a porta do caminhão em busca de sua metralhadora. Mas Yoseph estava tomado pela fúria, e só ouviu quando sua arma parou de atirar, sem cartuchos. Ainda assim ele chacoalhou-a e tentou disparar novamente, antes de se esconder para recarregá-la. Já com sua Ak-47 em punho, Thompson xingou-o e deu-lhe um safanão muito mais forte do que o que tinha dado em mim. -Seu imbecil! Se estiver morto não vai servir para nada além de alimentar os ratos!

Yoseph estava vermelho, fumegante. Não tenho certeza se ouviu o que Thompson lhe disse, enquanto enfiava furiosamente os cartuchos em sua arma, mas pareceu concordar com a cabeça.

-Onde eles estão? ONDE? -Perguntou Thompson, que espremia-se na lateral do caminhão para enxergar.

-À esquerda do topo, procure pela mancha vermelha na neve -explicou Yoseph, que subia na lateral do caminhão e procurava um ponto de apoio para disparar por cima do caminhão.

Ajudei Anne a por Lyriel para dentro do caminhão pela porta da cabine. Seu ombro esquerdo tinha um enorme buraco, e grande parte de seu sangue tinha se perdido na neve. Eu queria ajudar, mas Anne tinha entrado em um estado de extrema concentração, e, por mais que eu gritasse para que ela dissesse do que precisava para salvar Lyriel, não recebia resposta. Com um kit de primeiros-socorros militar começou a limpar o ferimento e preparar agulha e linha para fazer a sutura. Lembro de ter pego minha pistola e fazer menção de sair e ajudar Yoseph e Thompson, mas ao espiar por uma das frestas entre a blindagem da janela vi que não havia mais no que ajudar. Ainda pude ver quando um homem teve seu corpo semi-dilacerado, por um dos disparos de espingarda, e outro teve seus miolos espalhados na neve pela arma de Thompson.

-Ly! Como você está? -entrou gritando Yoseph pela porta traseira e se agarrando ao braço ileso de Lyriel, que permanecia estirada no chão do caminhão.

Os lábios de Lyriel estavam roxos, sua pele ainda mais branca, e sua respiração diminuía a cada instante. Anne se esforçava para terminar de suturar o ferimento e fazer o curativo. E assim que o fez, cobriu-a com diversos cobertores, tentando mantê-la aquecida.

-Ela perdeu muito sangue -explicava Anne, aflita e com lágrima nos olhos -muito sangue, não sei se...

-TODOS OS QUE ESTIVEREM NO INTERIOR DO VEÍCULO, LARGUEM SUAS ARMAS E SAIAM LENTAMENTE -ecoou uma voz grave e eletrônica, interrompendo Anne e fazendo todos enrijecerem. -NÃO SE PRECIPITEM, OU NÃO HAVERÁ MISERICÓRDIA.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

57. Felicidade e Sangue

-Vamos Nuke, ajude-nos com o caminhão. A lataria do carro tá presa debaixo das placas do caminhão, precisamos erguê-lo para soltar -explicou Yoseph, fazendo o máximo de força que conseguia para tentar erguer o veículo.

-Já vou, preciso fazer uma coisa antes -e caminhei até a traseira do carro que Mark nos fornecera em Tradeport.

O engate na traseira do carro tinha sido suficiente para amortecer o impacto do caminhão contra a lateral do outro carro, felizmente. Abri o porta-malas e procurei por algumas das tranqueiras que Mark tinha mandado colocar lá, para casos de emergência. Não faço idéia de qual a utilidade da maioria daquelas coisas, nem de onde elas tinham saído - mas quem era eu pra questionar a sabedoria de um homem que é padre e sherife de uma cidade. Fiquei feliz quando encontrei uma placa de plástico e um tubo de cola plástica siliconada. Em poucos minutos a janela do carro tinha sido vedada e a úmidade demoraria um pouco em ajudar o tempo a desfazer a cena no interior do carro.

-Terminou sua obra, Da Vince?! -exclamou Thompson, jogando-me um pano imundo para limpar a cola das mãos. -Agora, será que o senhor, por favor -enfatizando as duas últimas palavras - pode nos dar a honra de sua ajuda? -e completou com uma reverência, como as que se faziam aos reis. Resolvi deixar de lado o clima triste e entrei na brincadeira.

-É claro, dar-lhes-ei tal honra. Afinal, faço questão -e também enfatizei a palavra -de tratar bem minha criadagem - o safanão que se seguiu deixou claro que a piada tinha sido entendida, de modo que minha gargalhada foi inevitável.

Thompson, Yoseph e eu passamos bons minutos tentando erguer o caminhão enquanto Anne e Lyriel tentavam romper os pedaços enroscados da lataria. Afinal, cansados e sem conseguir resultado, Yoseph teve uma ideia e, sem dizer nada, engatou a ré no caminhão e acelerou. Com um ranger metálico de rachar os ossos os veículos se soltaram. O eixo traseiro do carro estava destruído completamente, enquanto um risco azul em uma das placas de limpar neve era o maior dano sofrido pelo caminhão.

-Bom, é isso ae! Problema resolvido! -e pulou do caminhão, sorridente e orgulhoso.

Estávamos animados, mesmo depois do acidente e da descoberta do carro soterrado. Mas isso me dava um comichão por dentro, como se aquela alegria me arranhasse o estômago. Estarmos animados significava que as coisas, apesar dos pesares, corriam bem. E quando as coisas correm bem... dão errado.

-Tooodos a bordo! -chamou Lyriel, pendurada na porta do caminhão, balançando de um lado para o outro.

Caminhávamos todos para o caminhão quando meus temores se concretizaram. Uma rajada de tiros passou logo acima de nossas cabeças e ricocheteou na blindagem do caminhão, em meio a faíscas e fumaça. Mal tive tempo de amaldiçoar a mim mesmo pelos pensamentos agourentos de antes quando olhei para Lyriel, caída sobre a neve.

-Ly! -gritou Yoseph.

-Sangue! -gemeu Anne.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

54. Esquiando

O sono foi leve para todos aquela noite. A fogueira, cuja música nos embalou durante toda a madrugada, revigorou-nos mais que muitas horas sono poderiam fazer. Ainda estava escuro quando nos pusemos de pé e recolhemos nossas coisas. Olhei em volta, tentando avistar algo além do que o resto da fogueira iluminava: um vasto negrume de nada. Deixei vagar pelos pensamentos como era estranho que, por falta de uns raios de luz, toda aquela neve branca ficava escura como piche. A natureza é magnífica, pensei alto, ainda olhando o nada. De um lado, porém, um borrão de luz deixava transparecer a silhueta de algumas colinas. Entreabri a boca, mas quando pensei em falar, Anne se adiantou:

-Olhem que lindo, o sol já vai nascer... -e apontou para o horizonte.

-O sol deveria nascer daquele lado, não pode ser que seja ele -argumentou Thompson. -Mas, posso estar errado, vai saber.

-Você está certo, senhor Thompson -disse Lyriel, com respeito, olhando para uma bússola que trazia pendurada à mochila. -O sol nasce ali, daquele lado. Essa luz que vemos é a cidade de Amrak. Estamos a menos de um dia de viajem de lá.

-É estranho. Quando deixamos Tradeport, Mark, o sherife e sacerdote daquela pequena cidade mercante, nos disse que Amrak estaria a cerca de trezentos quilómetros. Distância que, obviamente, deveria ser superada em algumas horas de viajem, descendo o rio -indagou Thompson. Abrindo os braços, continuou. -Mas agora, depois de muitos dias de viajem que fazemos desde Tradeport, você nos diz que ainda falta um dia todo para chegarmos lá? Como é possível?

-O senhor está certo outra vez. Bom, quase certo. Amrak, na verdade, está a cerca de quinhentos quilómetros de Tradeport. Mas a antiga highway, que passava por essas cidades antes da Explosão, está destruída em noventa porcento de seu percurso, e como vocês puderam perceber, tentar seguir seus destroços ao longo do rio é extremamente perigoso. E a estrada alternativa que vocês pegaram aumenta o caminho em outros duzentos ou trezentos quilómetros. Sem contar as paradas e os desvios adicionais para evitar as rotas bloqueadas, imagino que esses dias nem foram tantos assim -concluiu Lyriel.

-Maldição... Vamos embora daqui logo, não vou suportar mais um dia todo com essa ração militar que vocês dois chamam de comida -e dizendo isso cuspiu uma pelota deformada de fibras que compunham a ração fornecida pelos Deuses a seus soldados. Yoseph e Lyriel riram, enquanto mastigavam as suas. Eu e Anne também não gostávamos muito, mas não que fosse ruim aquela ração, e mesmo sendo muito mais nutritiva, não tinha gosto de carne de rato ou lagarto seca. Ainda rindo subimos no veículo blindado e em pouco tempo estávamos nos movendo, no que, esperávamos, fosse o último dia de viajem a Amrak.

Nos mantivemos a meia altura nas colinas, evitando o fundo, onde detritos dificultariam que os esquis do veículo deslizassem com eficiência, e o topo, onde poderíamos ser vistos por olhares não amigáveis. Depois de algumas longas horas de viajem, procuramos um lugar decente para uma pausa. O sol, bem no alto do céu, forçava alguns de seus raios por entre as nuvens espessas e raivosas. Estávamos com fome, e mesmo não gostando, Thompson melhorava muito de humor após as refeições, por isso não deixávamos de fazê-las. Eu sempre me perguntei se não deveríamos simplesmente comer dentro do veículo, sem pararmos, mas sempre que eu descia e esticava as pernas, esses pensamentos se esvaíam.

Paramos o veículo logo abaixo de uma grande pedra, de modo que ela nos protegesse parcialmente do vento forte que fazia. Papeamos alguns minutos, deixando clara a ansiedade de todos em voltar à civilização. Eu não estava, porém, particularmente animado. Chegar em uma cidade grande significava deixar para trás minha rotina, e o simples pensamento de ficar parado por muito tempo me deixava nervoso. Tentando pensar em outra coisa, mirei o horizonte, e percebi algo que nunca tinha visto.

-Vejam, lá embaixo, um riacho! -gritei animado.

-Vejam o caminhão, isso sim! Ele está esquiando encosta abaixo! -gemeu Yoseph.

55. Vidro, Neve, Gás

Descemos colina o mais rápido que pudemos. Lyriel rolou os últimos metros, afundando da cabeça à cintura na neve fofa. O caminhão levou tudo em seu caminho, rochas, árvores secas e neve, muita neve. Parou apenas quando chegou ao fundo, depois de bater em uma montanha de neve acumulada. Yoseph e Thompson tiveram trabalho para desenterrar Lyriel, que apesar de ter engolido um pouco de neve, apenas perdeu o fôlego. Anne ainda terminava a descida, descabelada, com o rosto vermelho e a respiração ofegante, quando me aproximei do veículo.

-Ei, venham ver só isso! -e comecei a tirar a neve acumulada. Escondido por uma grossa camada de neve estava um outro veículo. As placas limpa-neve da frente de nosso caminhão haviam feito um enorme estrago na lateral traseira daquele carro soterrado. Ele provavelmente estava ali a muitos anos, pois, quanto mais fundo se cavava na camada de neve, mais sujeira havia. Sem que eu percebesse uma súbita curiosidade havia tomado conta de meu cérebro e transbordava pelas orelhas. Começei a cavar com afinco.

-Deixe isso pra lá, Nuke. Não deve ter nada que valha a pena aí -tentou Thompson a me fazer parar de cavar. -Já devem ter saqueado tudo.

Mas eu não dei ouvidos e continuei a retirar a neve. Quando consegui liberar a janela do passageiro corri até o caminhão e peguei uma lanterna. Aquela provavelmente era a primeira vez que o interior daquele carro via luz por muitos anos. Mas não pude ver nada, e minha decepção ao perceber que o vidro estava embaçado e sujo demais foi visível.

-Larga mão disso e vem ajudar a gente a desatolar o caminhão, vai -tentou Lyriel, já recuperada do tombo, enquanto os outros riam do meu esforço inútil com o carro. -Do contrário não sairemos daqui hoje -continuou, segurando a risada.

E novamente fingi não ouvir. Apanhei uma pá no porta-malas do veículo blindado e comecei a retirar a neve que bloqueava o resto da porta. Mas quando tentei abrir-la o trinco saiu na minha mão, e novamente todos riram. Dessa vez não aguentei, e também caí na risada.

-Porra...! Esse carro conspira contra mim! -sorri.

-Ok, Nuke. Vou resolver isso pra você, se prometer ajudar a gente depois -barganhou Thompson, com aquele tom de voz que usamos com crianças levadas. Então se aproximou do carro, pegou a pá de minha mão e bateu-a com força no vidro. Mal os estilhaços terminaram de cair um cheiro de morte se espalhou pelo ar.

-Pelos deuses! -Anne se abaixou, vomitando o almoço. Thompson e eu, também assustados, cobrimos o nariz ao mesmo tempo.

-Rápido Ly, máscaras de gás! -gritou Yoseph preocupado, puxando sua máscara sobre o nariz.

56. Passado e Presente

Quando o cheiro diminuiu me aproximei novamente, empunhando a lanterna. No banco do motorista havia o corpo de um homem, debruçado sobre o volante. Sua pele estava escura e repuxada, completamente colada aos ossos, enquanto suas roupas não passavam de farrapos. Em seu colo, enrolada nos restos de um cobertor, estava aconchegada uma menininha, ainda abraçada a seu ursinho de pelúcia.

-Eles deviam estar fugindo da guerra -murmurei atônito.

Anne chorava em silêncio. Lyriel se aconchegou nos braços do irmão, que abraçou-a com força. Thompson permaneceu em silêncio, olhos vidrados em lugar nenhum. E eu continuei a desenterrar o carro. Primeiro a parte de trás, onde pude ver malas, cobertores, garrafas de água e comida enlatada, depois as portas do lado esquerdo, e por fim a frente.

-Dispararam contra eles, vejam -anunciei, ao terminar de limpar a neve sobre o capô e encontrar diversas perfurações.

Eu não entendia. As portas estavam trancadas e os vidros inteiros. Nada fora roubado. Olhei, então, uma vez mais para o interior do carro. Os cabelos loiros da menininha brilhavam à luz da lanterna, e seu rosto, ainda que maltratado pelo tempo, continuava a guardar toda a calma e serenidade que faltava ao resto do mundo. Talvez, se todos tivéssemos um ursinho para abraçar e um colo para se aconchegar, pudéssemos dormir naquela mesma paz.

Provavelmente eu nunca saberia o que realmente aconteceu àquele pai e sua filha, mas sabia que nunca os esqueceria.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

53. Noite de Silêncio

Naquela noite ninguém falou, preferindo observar o fogo estalar e sibilar. Nos abrigamos na reentrância de um barranco coberto de neve e utilizamos os veículos para esconder o brilho das chamas de olhos curiosos. A brisa uivava do lado de fora, enquanto uns poucos flocos de neve rodopiavam para dentro e faziam malabarismos, até se derreterem em um chiado baixinho. Todos olhávamos fixamente as chamas, estávamos, cada um, sozinhos com nossos pensamentos. Era como se nossos corpos tivessem sido abandonados e nossas mentes estivessem em seus próprios mundos, viajando livres.

Yoseph foi o primeiro a quebrar o silêncio. Colocou a mão sobre o brasão dos Deuses e arrancou-o do braço direito da jaqueta. Lyriel o acompanhou, e ambos jogaram os brasões no fogo. Nem Thompson, Anne ou eu dissemos palavra, apenas observamos o cálice branco, com a hóstia e auréola, brilharem por entre as chamas, impotentes. Os irmãos então se abraçaram. Eram jovens, assim como Anne e eu, e também estavam aprendendo com os erros e decisões. Com Thompson era diferente. Ele ainda sentia-se preso ao passado, tentando encontrar seu mundo em meio aos escombros que formavam o novo. Suas lembranças não se encaixavam com o que seus olhos viam, e cada vez mais ele sofria em silêncio. Eu sabia, percebia, mas ele continuava firme com sua carapaça de coragem e determinação. E, por mais que desejássemos, continuávamos todos naquele mesmo mundo esquecido, coberto de pó e neve.

E foi naquela noite, pela primeira vez desde que consigo me lembrar, em que vislumbrei, em meio a tantos pensamentos, uma resposta à uma das tantas perguntas que me fiz todos os dias de minha vida. Vi ali, em meio àquelas pessoas até a pouco desconhecidas, uma família: almas unidas pelo acaso -ou destino, como alguns costumam chamar- que em qualquer outro momento ou lugar seriam apenas desconhecidas. Percebi, então, que tinha que adicionar um novo item à minha lista. Felicidade talvez fosse ter um abrigo do vento, uma fogueira e o acaso de uma noite de silêncio.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

52. Esconde-esconde

Era uma noite qualquer. Fria, como sempre. Jantávamos em silêncio, como nos havia sido ensinado, honrando os que já não podiam mais desfrutar de algum alimento e aqueles que ainda passavam fome. Meu pai, como de costume, jantava rapidamente e volta a seu escritório, onde passava horas em seu notebook. Mesmo deixando a porta aberta, ele jamais permitiu que entrássemos lá, mesmo em sua presença. Nunca soubemos no que ele trabalhava, mas por vezes o ouvíamos pronunciar maldições e dar um soco de raiva na mesa. Minha mãe logo nos acalmava, dizendo que papai sabia o que fazia, que não precisávamos nos preocupar. E assim passaram-se muitos anos.

Costumávamos brincar do lado de fora do abrigo. Mas meu pai permitia apenas nos dias em que nevava e, ainda assim, apenas pouco antes do anoitecer. Hoje, sei que ele tentava nos proteger, impedindo que fossemos vistos facilmente, caso alguém estivesse observando. E por coisas assim, sinto falta dele. Sinto que, na tentativa de nos manter vivos, ele deixou de viver e aproveitar o que ainda podia e lhe restava no mundo: sua mulher e seus filhos.

E então, em uma de suas longas noites de trabalho, finalmente o que ele tanto temia aconteceu. Nós percebíamos quando meu pai cochichava com minha mãe, sabíamos que eram problemas que estavam por vir, mas ainda assim eles mentiam dizendo que tudo estava bem. Nos dias que se antecederam àquele os cochichos aumentaram, de modo que mamãe já não conseguia mais disfarçar, e para que não a víssemos chorar, corria para o quarto e trancava a porta. Papai estava preparado, tinha nos feito brincar de esconde-esconde o dia todo, e quando aconteceu, estávamos escondidos no armário de um dos quartos. Só pudemos ouvir os disparos. O confronto durou poucos instantes, e em seguida veio a gritaria. Vozes perguntavam sobre muitas coisas, mas meu pai apenas xingava de volta. Ameaças. Mais xingamentos. Um grito -ainda o ouço ecoar, algumas noites, em meu sono. Um disparo. E então um longo silêncio. As vozes perguntaram novamente. Sem resposta. Outro disparo. Outro longo silêncio.

Lembro de Lyriel ter dito que iria lá ver. Mas consegui convencê-la a ficar. Tremíamos de medo. Éramos crianças, mal sabíamos nos vestir sozinhos, quanto mais nos defender direito. Esperamos não haver mais sons pela casa, e quando tudo silenciou, esperamos muito mais. Finalmente, com as pernas doendo por ficarem encolhidas por tanto tempo, juntamos coragem e deixamos o esconderijo. Caminhamos pelo corredor sem fazer barulho, mal respirando. Sentíamos um vento gelado percorrer a casa. Entramos na sala e a encontramos toda destruída e revirada. No chão havia poças de sangue, rastros e pegadas por todos os lados. No sofá uma espingarda ainda mantinha uma mão decepada presa ao gatilho, enquanto em meio ao vidro espatifado da mesa de centro haviam duas pistolas abandonadas.

Nossos olhos não paravam de chorar. A porta da sala batia com o vento, que também fazia voar os papéis jogoados por todos os lados. Nos abraçamos longamente, sentados no chão, indefesos. Não sabíamos o que fazer, apenas chamávamos baixinho por nossos pais. Não sabemos quanto tempo se passou, mas ainda havia gente na casa, e quando nos encontraram, não foi muito divertido... pra eles.

-Olhem só. Os anõezinhos estão aqui! -falou por detrás da máscara o soldado que nos encontrou. E logo ouvimos o som de passos no porão, onde ficava o escritório de meu pai. Levantamos num pulo, com o coração saltando pela garganta. Corremos para trás do sofá, tentando nos esconder. -Rá! Eles acham que vão se esconder de nós! Querem brincar de esconde-esconde, pirralhos? Vamos brincar então. -O soldado deitou no chão e olhou por debaixo do sofá, rindo de nossa infantilidade ao ver nossos pés. Mas seu sorriso sumiu logo. Lyriel tinha pego uma das pistolas e enfiado debaixo do sofá. Um único disparo e a sala estava novamente em silêncio.

Dois outros soldados subiram correndo pela escada ao ouvirem o barulho do tiro, mas eu já os estava esperando. Tirei a mão decepada da espingarda, sentei na borda do sofá e apoiei a arma, que tinha meu tamanho. Mal as duas cabeças eram visíveis na porta do porão, disparei. Com o tranco da arma voei para trás numa cambalhota, caindo de costas no chão. Senti os cacos de vidro cortarem minha carne. Depois, lembro apenas de ter ouvido Lyriel gritar ao ser erguida no ar, pra em seguida um soldado me encarar através do visor de sua máscara.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

51. Ex-Divindades

Lyriel não era a mulher mais bonita do mundo, definitivamente. Seus olhos negros, pele branca, nariz pontudo e cabelos escuros não eram uma combinação que a maioria dos homens diria como perfeita. Mas havia algo nela, uma espécie de magia ou poder oculto, que a fazia mais do que apenas mais uma mulher. Mesmo por detrás do uniforme militar era impossível olha-la, encarar seu olhar sereno e ao mesmo tempo penetrante, e simplesmente desviar o rosto. Ao admirá-la era preciso fazê-lo sem pressa e, ainda assim, era difícil não tentar um último vislumbre antes de deixar os olhos observarem o resto do mundo.

-E aquele é meu irmão, Yoseph -apontou Lyriel. E todos nos demoramos um instante para desviar o olhar e virarmos para observar o que ela apontava. Em cima da cabine do veículo que Thompson havia trazido para a lateral do prédio estava um homem, também vestindo o uniforme preto dos Deuses.

-Olá, amigos -apresentou-se o jovem, de cabelos abaixo das orelhas, morenos, sebosos e revoltos. Segurava uma espingarda automática nas mãos, na cintura usava um cinto com diversas ferramentas, e cruzados por cima dos ombros estavam outros dois cintos com munições. Um farolete de grande potência pendia de um lado, e do outro uma espingarda de cano cerrado ficava sempre à mão. -Eu dispenso as apresentações, por enquanto. Acho melhor saírmos daqui antes da festa de boas-vindas.

-Yoseph, seu imbecil, já falei pra limpar essa graxa nojenta do rosto -falou Lyriel, indo juntar-se ao irmão, que pulava de cima do veículo já entrava na cabine. -O que eles vão pensar de nós? -e balançou a cabeça negativamente, repreendendo-o.

A verdade era que eu, Anne e Thompson estávamos boquiabertos e nada pensávamos no momento. Dois soldados dos Deuses aparentemente estava deserdando e queriam nossa companhia para sair dali, ainda que isso não fizesse lá muito sentido. Afinal, eles poderiam simplesmente ter nos matado quando focamos nossas atenções em Anne e sua sequestradora e estávamos despreparados. Mas, ao invés disso, pediam para ir conosco. E, ainda sem dizermos nada, Yoseph ligou o limpa-neve e parou-o em frente a nosso carro, enquanto Lyriel já engatava o gancho do reboque ao pára-choques.

-Vamos? Cabe todo mundo aqui -convidou Yoseph, que já manobrara o veículo em direção à estrada. -Sem frescura galera, não precisam se envergonhar. Além do mais, o pessoal lá dentro não vai demorar muito mais até perceber as mentirinhas que eu lhes disse pelo rádio. Principalmente depois que nosso amigo aqui, com a metralhadora na mão -e apontou para a AK-47 na mão de Thompson -deu aquele grito meio alto com a Ly.

Thompson e eu estávamos receosos, obviamente. Mas Anne segurou-nos pelo braço, tentando nos tranquilizar, e nos puxou para dentro do veículo limpa-neve.

-Não confio neles -declarou Thompson.

-Nem eu -concordei.

-Não se preocupem. Eu confio neles. Sinto algo diferente vindo deles.

Mas mal começamos a subida que nos levaria para fora do vale onde os prédios daquele complexo fora construído, paramos.

-Antes de irmos, temos que dar um jeito naqueles outros veículos -comunicou-nos Lyriel. Então Yoseph pulou do veículo, apoiou sua espingarnada no capô e fez mira em direção aos outros veículos parados em frente à entrada do complexo.

-A carga está acima ou abaixo do tanque, Ly?

-Abaixo, claro -e pela segunda vez uma explosão ecoou pelos corredores do complexo.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

50. Refém

A próxima coisa de que me lembro é de sentir os tapões que Thompson desferia contra minhas costas. Ele esperava que eu desengasgasse, e de fato isso aconteceu, mas o fato é que metade da neve foi ao chão, e a outra metade desceu congelando minha garganta. Tossi loucamente, em vão. Pude sentir quando aquele volume gelado caiu como uma bomba em meu estômago.

-Va-valeu, Thompson. Eu acho...

-Certo, agora cadê a Anne? Temos que sair daqui, eles logo vão sacar que não estamos mais lá dentro. -E olhou em volta, conferindo se Anne não estava, também, soterrada na neve.

-Anne! -E, num impulso, puxei Thompson pelo braço e comecei a correr de volta ao buraco. Mal fizemos a curva na lateral do prédio, paramos. Anne ajudava alguém a sair do buraco, e tão logo pôs-se de pé, reconhecemos o símbolo dos Deuses no uniforme preto daquela pessoa.

-Afaste-se dela, imediatamente! -Falou Thompson, quase gritando. Alto demais. Percebeu tarde, fazendo careta quando as colinas cantaram de volta sua voz. Depois continuou, um pouco mais baixo, mas ainda decidido. -Afaste-se agora. Não hesitarei em atirar!

Mas hesitou. Imediatamente o homem se abrigou atrás de Anne e colocou o cano de sua pistola na têmpora de Anne. Ela era agora refém, e era a vez do soldado dos Deuses fazer exigências. Mas foi Anne quem falou primeiro:

-Thompson, isso não é necessário. Ele não quer nos machucar.

-Cale-se Anne, ou ele vai matá-la. Essa gente não tem piedade. Nunca tiveram!

-Cale-se você e ouça o que a garota diz, seu falastrão. Eu não quero mesmo machucá-los. -E apertou-se ainda mais em Anne, garantindo que Thompson não pudesse mirar em suas pernas ou braços com facilidade sem atingir a companheira. -Não quero mais ser membro dessa organização. Não quero nadar em mentiras e corpos até que a morte me encontre.

-Rá! E, em que mundo doentio da sua cabeça, você achou que confiaríamos em você? -desafiou Thompson. -Solte a garota, diga-nos seu nome e mostre seu rosto, e então pensamos em conversar.

-Thompson, pare com isso e abaixe a arma, eu acredito nele! -defendeu Anne. Em vão. Thompson fazia que não com a cabeça e mantinha a arma em riste.

-Ok. Farei isso -e largou a pistola, que afundou na neve fofa. Continuou atrás de Anne, evitando a mira de Thompson, e começou a tirar a máscara de gás. Depois puxou para trás o gorro do casaco, e finalmente tirou o capuz branco que envolvia toda a cabeça. Seus longos cabelos negros escorreram até a metade das costas. -Meu nome é Lyriel.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

49. Thomps...

-Anne? Anne? -Chamei nervoso. Mas Anne não respondeu. Me aproximei da pequena abertura na parede, tentando avistá-la na escuridão. Saquei minha arma e apontei para o vazio. Juntei o que me restava de coragem, me esforçando para minhas mãos pararem de tremer, e me aproximei ainda mais. Minha cabeça estava a meio palmo da abertura quando uma voz me fez cair para trás na neve fofa.

-Nuke, largue a arma e faste-se. Agora. -Era a voz de Anne, calma e quase sem emoção, vinda da escuridão. Eu tremia como se estivesse deitado nu naquela neve, mas forcei minhas mãos obedecerem e largarem a arma. Levantei, fazendo força para me apoiar em minhas pernas bambas, e me afastei rápido para o outro lado do pátio que havia entre os prédios, em direção ao carro.

Havia um silêncio profundo entre os prédios naquele momento. O vento que soprava colina abaixo tinha cessado, deixando apenas o eco de seus gritos por entre as dunas de neve. Eu meio corria e meio andava em direção ao carro, rezando para que Thompson estivesse ali e pudesse ajudar. Ele sabe o que fazer, ele sabe o que fazer, repetia em minha mente. E, enquanto me apressava, arrisquei olhar por cima do ombro, antes mesmo de raciocinar que aquilo podia não ser uma boa idéia. Mas não havia nada atrás de mim, e ninguém saia pela abertura.

Fiz a curva pela lateral do prédio e parei ao lado do carro. Olhei para dentro do veículo, tirando parte da neve havia se acumulado nos vidros no tempo em que permanecemos lá dentro, mas Thompson não estava lá. Então um misto de frustração, medo e desespero tomou conta de mim. Corri para a outra borda do prédio, lutando contra a neve acumulada no chão, e olhei para a entrada do prédio, que agora se resumia a um rombo na parede, destroços pelo chão e marcas de uma explosão. Também não havia ninguém na colina em frente, de onde o míssil havia sido disparado, apenas o lançador abandonado na neve. Os veículos dos Deuses tinham as portas abertas e pareciam vazios. Pensei em gritar, chamando Thompson, mas essa era outra idéia ruim, e me contive antes de colocá-la em prática. Eu estava sozinho, e precisava agir. Abandonar Anne não estava em meus planos. Corri novamente para o pátio de trás, tentando não deixar o desespero tomar conta de mim. Olhei pela lateral do prédio e vi Anne se arrastando para fora da escuridão.

-Anne! Anne! -Chamei baixinho, enquanto gesticulava para que ela corresse até mim. Mas ela não ouviu, e continuou agachada próxima à abertura.

Foi então que um barulho de motor ecoou pelas colinas silenciosas. Alguém havia ligado um dos veículos da frente do prédio. E antes que eu pudesse desejar ter minha arma em mãos, um enorme limpador de neves virou pela lateral do prédio e avançou pelo espaço que havia entre o carro e a parede, empurrando uma parede de neve em minha direção.

-Thomps...-tentei gritar, antes de minha garganta se encher de neve e minha visão se turvar.

sábado, 11 de julho de 2009

48. Vigiados

-Eles vão entrar... -falou Thompson, mais pensando consigo mesmo que afirmando. -E nós vamos sair por onde entramos. Andem logo, continuamos sem tempo a perder.

-O que vamos fazer? -Perguntei, tentando permanecer calmo, enquanto afastava dos pensamentos a morte de Pedra e suas consequência em minha mente.

-Vou programar este aparelho que pegamos de Pedra para que ele tranque todas as portas do prédio, assim, quando estivermos fora daqui, eles terão alguma dificuldade em sair. Para isso preciso ter acesso à rede interna, portanto vamos voltar àquele porão onde entramos. De lá trancarei as portas e sairemos pela janela daquela sala. -Em instantes Thompson tinha terminado de programar o computador e o aparelho. Correu então até uma estante próxima e pegou uma pequena caixa de papelão. De dentro dela tirou uma pequena câmera, como as antigas webcans, e instalou-a num dos computadores, transmitindo o sinal diretamente para o aparelho em suas mãos. -Agora podemos ir. Nuke, ajude Anne e vamos dar o fora daqui.

Eu já estava me acostumando a correr pelos corredores escuros daquele lugar. Seguíamos Thompson de perto, parando ocasionalmente para escutar algum barulho. Por três vezes mudamos nossa rota para evitar um corredor ou salão de onde pensamos ouvir barulho. Nossas mentes fazia parecer que eles estavam em todos os cantos. -Não que eu ache que eles se dividiram e estão vasculhando o prédio todo, mas acho melhor não arriscarmos. -Foram minutos que se estenderam como horas, mas finalmente chegamos à porta onde Thompson feriu Pedra. Descemos as escadas, tomando cuidado para não escorregarmos na grossa camada de poeira, e seguimos até o final do corredor. A pequena lanterna que Thompson tinha mal servia para iluminar o caminho, e ele sequer a apontava para o chão, para que pudéssemos ver onde estávamos andando. Ele apenas a apontava de uma parede a outra, frenéticamente.

-Thompson, ilumine aqui para podermos ver onde estamos indo -arrisquei falar, com a voz mais amistosa possível.

-Estou procurando... achei! -Então ele se aproximou de um painel na parede e abriu sua pequena porta de ferro, que rangeu alto. Dentro havia um emaranhado sem fim de cabos e fios de todas as cores e calibres. -Segure a lanterna para mim, Nuke. Preciso ser rápido, eles com cereza já estão chegando.

-Chegando onde? Aqui?! -Perguntei, deixando escapar um pouco de medo junto com a voz. Mas Thompson não pareceu perceber, estava concentrado olhando a pequena tela do aparelho. Ele havia feito isso o caminho todo, mas agora parecia estar contando em silêncio os segundos. -Thompson...?

-Vejam! -Disse ele, junto com uma risada de triunfo, virando a tela para que eu e Anne pudéssemos olhar. Nela só se podia ver uma porta, vista do ângulo da pequena câmera que Thompson instalara atrás do teclado de um dos computadores. Nada parecia acontecer na sala, mas então percebemos uma movimentação no corredor escuro além da porta. -Eles estão aí faz alguns minutos, por isso eu estava procurando com tanta pressa este painel. Depois que viram o corpo de pedra, resolveram checar se havia mais alguém dentro da sala, e para isso devem ter usado sensores de calor, movimento, ou qualquer baboseira assim.

Mal Thompson terminou de falar, os quatro homens vestidos com uniformes pretos entraram na sala. Três deles continuaram a revista, enquanto um quarto se aproximou do computador onde a câmera estava e começou a digitar no teclado projetado sobre a mesa. Instantes depois ele chamou os outros e apontou para a câmera. Um princípio de briga se seguiu, mas logo eles tinham um motivo maior pra se ocuparem: Thompson já tinha conectado o pequeno aparelho na rede interna do prédio e ativado a tranca automática das portas eletrônicas. Por alguns segundos assistimos a todos eles se revezarem em socar a porta e procurar uma fresta, até que alguém se aproximou da câmera outra vez e a destruiu.

-Vamos embora, eles logo vão dar um jeito de sair. -Advertiu Thompson, desligando o aparelho da rede. Nos apressamos pelo corredor e pela sala mofada atulhada de coisas, e finalmente estávamos nos expremendo para fora daquele prédio, de volta ao frio e à neve.

-Me dê sua mão, Anne -ofereci a ela, quando reparei que ela não se mexia para sair daquele buraco fedorento. Thompson já se adiantara e verificava se havia mais alguém dos Deuses próximo aos veículos.

-Não posso. Tem alguém aqui.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

47. Colina Branca, Rastro Cinza

Eu podia sentir aquela gota de sangue escorrendo em minha bochecha. Podia sentir o cheiro de pólvora no ar que inundava meus pulmões. Sentia o impacto daquele corpo sem vida no chão. Sentia o medo se esvair daqueles olhos surpresos. Tudo em câmera lenta.

E quando finalmente meu cérebro desacelerou, Thompson tentava aos gritos tirar a pistola de minhas mãos. Ao fundo um alarme tinha disparado e em algum lugar uma luz vermelha piscava. No teto todos os monitores tinham mudado sua imagem e agora mostravam as entradas dos prédios. Anne tinha se encolhido junto à parede e soluçava, lágrimas escorrendo de seus lindos olhos.

-Nuke! Nuke...! - Insistia Thompson, quase quebrando minha mão de tanta força que fazia. -Largue a arma. Agora!

-Tá... tá... -falei, ainda atordoado. Simplesmente abri as mãos e deixei a arma cair. Não sei quanto tempo se passou, mas em algum lugar em minha memória ainda ouço Thompson gritar várias vezes que eu já podia abaixar a arma.

Eu tinha ficado atordoado. Não de medo ou arrependimento, mas de prazer. E a partir daquele dia passei a entender porque algumas pessoas gostam de matar. O que as fascina não é a morte em si, mas o poder que emana da capacidade de fazê-la. E eu me senti assim, poderoso. Minhas mãos tremiam, minhas pernas bambearam, meus braços amoleceram, e tudo o que eu sentia era êxtase. Infinitas sensações e pensamentos percorreram meu corpo e minha mente naqueles instantes, mas hoje já não sinto nem me lembro de nenhum.

-Um dos veículos chegou até aqui, Nuke. -Continuava Thompson, tentando me tirar de meus devaneios. -Precisamos agir, e infelizmente você não terá tempo para se acostumar com o fato de ter matado alguém, pois terá que fazê-lo de novo, se não quiser se encontrar com Pedra tão cedo no inferno.

-Tá... tá... -repeti, olhando em volta enquanto recuperava minha arma.

-Temos que correr, vamos nos preparar para quando eles arrombarem alguma das portas.

-Thompson, espere! -Gritei, fazendo Thompson derrapar no chão liso. Apontei para um dos monitores. -Acho que eles estão tramando alguma coisa.

A câmera daquele monitor estava apontada de cima de um dos prédios para uma colina próxima. No meio da tela um borrão preto se mechia no topo da colina coberta de neve.

-O que é aquilo que ele está segurando? -Perguntei. E no mesmo instante um rastro de fumaça cinza deixou o borrão e cortou o ar velozmente em direção ao prédio.

-LANÇA-MÍSSEIS! -E a explosão ecoou pelos corredores.

terça-feira, 23 de junho de 2009

46. Caminho

À beira da morte, muitos se despreocupam e a aceitam. Talvez isso devesse ser tomado como um ato de coragem e sabedoria, já que a morte é apenas mais uma onda no oceano da existência. Mas isso é para os romancistas Antigos, e na realidade não passa de covardia e conformismo. Não passa de medo do que virá a seguir. Ou do que não virá. É claro que é esse medo que nos impede de chegar à beira da morte. Afinal, não fosse o medo da morte ou do que não virá, já teríamos sido extintos, muito antes de começarmos a nos extinguir. Mas temer a morte não é o único meio de sobreviver e, certamente, não é o melhor.

Dizem que a morte é inesquecível. Não apenas porque vamos todos, eventualmente, morrer um dia. Mas porque quando ela chega para alguém que gostamos muito, não conseguimos superar facilmente. E, na verdade, assim deve ser, ou não daríamos o merecido valor àqueles que ainda estão conosco. Ou, ainda, não daríamos valor a nós mesmos, e logo não nos importaríamos em partir e deixar para trás aqueles a quem realmente fazemos falta. Mas, quando a morte vem por nossas próprias mãos, ela não apenas torna-se inesquecível, como também parte de nós. E então, assim como àqueles que enfrentam a morte, resta-nos duas opções: medo e coragem. Para os que escolhem o medo, nada lhes resta além de enfrentá-lo até que sua vez chegue. Mas para os que escolhem ser corajosos, um longo caminho ainda virá, e nele mais mortes serão entregues por suas mãos.

Quando damos a morte a alguém, brincamos de ser deus. Nos damos conta de que somos capazes de interferir diretamente em algo que não entendemos completamente. E, de fato, nunca compreenderemos a vida em si, ainda que possamos tirá-la dos outros. Nos sentimos poderosos, imponentes, invencíveis. Provamos o gosto da vitória definitiva, derrotamos um inimigo para sempre. Desejamos mais e mais, e quando nos damos conta, estamos apenas fugindo, tentando evitar a morte, esquecê-la e despistá-la, enquanto a levamos a outros.

Talvez eu nunca descubra qual caminho segui. Se tentei esquecê-la ou se a deixei fazer parte de mim, se a temi ou se a enfrentei. Um filósofo - se ainda existir algum - dirá que escolhi um caminho diferente a cada vez, mas eu digo que apenas segui meu próprio caminho. E, ainda que eu me esqueça daquela morte, ela não me esquecerá.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

45. Traição

Apertando uma única tecla Thompson fez com que uma enorme carga de explosivos fosse detonada nas laterais da estrada de entrada, bem a tempo de acertar o último veículo que passava. O chão tremeu e os prédios balançaram. Na escuridão distante janelas se partiram e seus estilhaços tilintaram pelo chão. Um dos monitores, pendurado ao teto, perdeu a recepção do sinal que recebia de uma das câmeras externas, quando esta foi consumida pela explosão.

-Há! Por essa vocês não esperavam, não é mesmo?! -Comemorou Thompson, saltando da cadeira e dando socos no ar.

-E por essa, você, não esperava, não é, Thomspon? -A voz, que ecoou do corredor escuro do lado de fora da sala, era de Pedra. O homem mancou com dificuldade para dentro, segurando uma pistola com uma das mãos e com a outra apertando o ferimento na barriga, que parecia ter voltado a sangrar. -Vamos, os três, larguem as armas e as chutem para cá.

Obedecemos.

-Agora, senhor Thompson, afaste-se desse terminal. Já atrapalhou bastante os Deuses por hoje.

-Seu... desgraçado, filho-de-uma-puta! -Berrou Thomspon com todas as forças, quase cuspindo em Pedra. -Você está do lado deles o tempo todo! Filho-da-puta desgraçado!

-Acalme-se Thompson, se você morrer do coração, que graça vai ter? E, não, eu não estive do lado deles o tempo todo. Quando desertamos, logo após a Explosão, eu realmente lutei contra eles. Mas a radiação mexe com a mente das pessoas, e quando abri meus olhos e vi que apenas ao lado deles eu teria chance de sobreviver em um mundo desses, eles me deram outra chance.

-Filho-da-put... -não conseguiu terminar o que estava dizendo, Pedra já lhe acertava uma coronhada no rosto, fazendo-o cambalear. Thompson já se aprumava para revidar o golpe quando viu o cano da arma apontado entre seus olhos.

-O que você quer afinal, seu desgraçado ingrato? -Perguntei.

-O mesmo que você, ele e ela. O mesmo que todos aqueles condenados a viver nesse mundo querem! Quero dinheiro, riquezas, mulheres, poder. Quero sair desse fundo-de-poço antes que alguém resolva tacar terra nele até a borda.

-Devíamos tê-lo deixado morrer! -gritou Anne. -Traidor!

-Não fique assim, meu raio-de-sol, eu posso levá-la comigo, e então você será mais feliz do que jamais sonhou.

Mas Anne não estava pensando em felicidade e, assim que Pedra terminou de falar, deu-lhe um tapa no rosto, fazendo o som ecoar pela sala e corredores. Pedra devolveu a ela um soco, fazendo-a cair. Ele então continuou a golpeá-la, mesmo com dificuldades por causa do ferimento, com chutes e pontapés, enquanto ela se encolhia para se proteger. Thompson percebeu o momento de distração e fúria de Pedra e já se preparava para atacá-lo quando o som de um disparo encheu a sala e paralisou a todos.

-Não! -soluçou Anne baixinho.