Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

43. Passado, Governo, Presente

Quando Thompson continuou a nos contar sua história, Pedra já havia caído exausto em um sono profundo. A barriga do homem subia e descia com dificuldades, erguendo e baixando lentamente a mão que apoiava sobre as bandagens tingidas de sangue. Anne e eu ajudamos a colocá-lo na única das camas do alojamento que parecia estar limpa e o cobrimos com um cobertor.

-Bem, -continuou Thompson - Pedra e eu éramos amigos desde os tempos da graduação. Ele se formou em Engenharia Computacional e eu em Engenharia Eletro-Robótica. Fazíamos parte de nossas pesquisas de mestrado juntos, já que eu precisava de processadores específicos para os carregadores de células de energia, enquanto ele precisava de um sistema que testasse certos pontos da capacidade dos processadores que ele pesquisava. Com nossas pesquisas estávamos abrindo as portas para obtermos células de energia que se auto-carregavam com quase qualquer coisa, como variações de temperatura, movimento, luz solar e lunar, variações de campo elétrico e até mesmo variações do campo magnético da Terra. Agora imaginem uma arma portátil que não descarrega praticamente nunca, ou um pequeno robô espião que nunca pára. Era isso o que aqueles homens que me abordaram um dia tinham em mente. Eu e Pedra poderíamos ter utilizado nossas pesquisas para fornecer energia ilimitada para a maioria das coisas pequenas e portáteis, como relógios, comunicadores, computadores de baixa energia... Mas eles tinham outros planos. -Fez então uma pausa, como se reavaliasse os anos que haviam se passado, e onde tinha chegado com tudo aquilo. Seu rosto e sua voz transpareciam um misto de amargura e raiva. Anne e eu apenas ouvíamos atentos, pois aquilo explicava muito mais do que apenas a vida de um sobrevivente das Explosões. Explicava quais eram as atitudes governamentais antes de tudo acontecer. Continuou. -Como eu disse, recusei as primeiras ofertas, já que emprego estável e dinheiro eu tinha, mas quando as cifras passaram dos seis zeros ao ano, mudei de idéia. Era a chance de ter tudo o que eu desejava para mim e sonhava para minha família. Logo soube que Pedra também tinha aceitado, e em pouco tempo estávamos pesquisando diretamente para o Governo. No primeiro ano deixaram que nos focássemos nas pesquisas, e todo e qualquer pedido de verbas era prontamente repassado aos nossos projetos, ignorando, de algum modo, toda a burocracia que havia -ou deveria haver- em torno disso. Mas no segundo ano, quando os resultados com as células começavam a aparecer, eles nos colocaram em períodos imensos de treinamentos intensivos de sobrevivência, camuflagem, espionagem e tiro. E quando questionávamos qual a utilidade de cientistas aprenderem a atirar e sobreviver em terreno hostíl, diziam apenas que fazia parte do processo. Mas a verdade era que eles estávam nos preparando para...

Uma série de bips, como os de um alarme, dispararam no bolso do uniforme de Pedra. Thompson puxou um pequeno aparelho, pouco maior que a palma de sua mão, e apertou um botão. Imediatamente a tela, que era praticamente todo o aparelho, se ligou e o alarme parou de apitar. Podíamos ver as rodas de um veículo passando e jogando neve para os lados, mas não conseguíamos identificar quase nada. Com outro aperto de botão o ângulo de visão mudou, agora de uma câmera colocada mais acima, provavelmente do topo do prédio, e pudémos ver três veículos vindo pela mesma estradinha que havíamos tomado algumas horas antes.

-Merda! -Xingou Thompson, quase derrubando o aparelho. -Nossos coleguinhas do Governo estão aqui...

Anne tentou dizer alguma coisa mas as palavras entalaram em sua garganta e ela apenas tossiu, meio atordoada.

-O Governo o que?! Mas esses veículos... -não encontrei palavras para terminar a frase.

-Sim, são os Deuses.

terça-feira, 19 de maio de 2009

42. Pedra

A sala para a qual levamos o homem ferido parecia saída de um filme de terror, daqueles que eram produzidos antes da Explosão. Ela costumava ser um pequeno pronto-socorro, feita para realizar procedimentos médicos simples e emergenciais, nada muito complicado. Mas agora, com os instrumentos enferrujados, equipamentos quebrados e sem conservação, sem medicamentos e médicos treinados, o lugar servia, no máximo, para torturar algum desafortunado. E, ainda assim, Anne insistiu para que a deixássemos olhar o ferimento.

-Pior não pode ficar -brigou ela, quando tentamos dissuadi-la a tentar ajudar - portanto ou param de me atrapalhar, ou saem daqui!

Ela limpou uma pinça e uma agulha usando o conteúdo de uma garrafa que estava por lá, e que, como cheirava a álcool, provavelmente não infeccionaria ainda mais o ferimento. Logo descobrimos que Anne sabia o que fazia. Afinal tinha sido uma ótima idéia deixá-la no comando. Ela limpou o sangue que se esparramava para fora da ferida e colocou lentamente a pinça pelo buraco da bala. O pobre homem estava praticamente inconsciente, mas ainda torceu o rosto e grunhiu quando Anne finalmente tirou o estilhaço que havia se alojado em sua barriga.

-Não dá pra ver se algum órgão foi atingido, mas, de qualquer forma, eu não poderia fazer muita coisa mais por ele.

Anne não parecia muito segura se conseguiria salvar seu paciente, mas fez o melhor que pode. Suturou o ferimento com o único pacote de linha ainda lacrada e enfaixou-o com o resto de gaze e bandagens que encontramos. Quando terminamos,a pobrezinha suava frio e estava exausta, mas parecia contente com o resultado. Deixou escapar um leve sorriso de satisfação, antes de escondê-lo novamente.

-Você fez um ótimo trabalho, Anne -disse com sinceridade e surpresa, ignorando a vergonha de falar com ela. -Mas antes de você nos contar onde aprendeu essas habilidades, acho que Thompson precisa nos esclarecer algumas coisas, não é?

Thompson já empurrava a maca onde colocamos o homem ferido para o corredor. Mesmo sem dizer nada, sabíamos que ele se preparava para nos contar mais sobre seu passado. Com uma cara meio de dor e meio de insegurança começou:

-Ok. Vocês venceram, e já era mais que hora de eu contar-lhes quem eu sou de verdade -Thompson despejou as palavras sem titubear, sempre olhando adiante, enquanto continuava empurrando a maca pelos corredores daquela enorme construção. - Quando tudo começou, ou acabou, pra ser mais exato, eu tinha um pouco mais que a idade de vocês. Estava no último ano do meu mestrado, bem aqui nesse prédio. Tinha uma linda mulher, uma filha que mais parecia uma princesa -seus olhos brilhavam enquanto falava, lutando contra as lágrimas que tentavam escapar de sua máscara de seriedade - de tão maravilhosa que era. Eu tinha emprego aqui, mas queria mais pra minha vida e pra minha família, queria garantir-lhes um futuro digno. E quando a oportunidade surgiu, não a desperdicei. Foi numa noite, quando saia da sala do meu orientador, que eles aparecerem. Dois homens bem vestidos, cabelos arrumados e barbas perfeitamente feitas. Começaram com um papo sobre minhas boas notas e minhas pesquisas com recarregadores de células de energia. Disseram que precisavam de gente inteligente e decidida como eu ao lado deles. Claro que a princípio, além de obviamente assustado e desconfiado, neguei participar de qualquer coisa, mas quando começaram a falar de números, mudei de idéia imediatamente.

Entramos em um salão principal, cheio de grandes colunas e chão de mármore. De um lado havia uma grande porta de madeira, que parecia ser a entrada principal do prédio. No meio havia uma recepção toda de madeira trabalhada, com papéis e canetas ainda dispostos sobre o balcão, tudo coberto com uma generosa camada de poeira. Pelas placas que pendiam no teto deduzi que Thompson nos guiava para a ala dos dormitórios. Ele ficou em silêncio ao cruzar o saguão, admirando cada detalhe, provavelmente tentando lembrar-se das muitas coisas que lhe aconteceram naquele lugar.

-Vamos, Thompson. Conte a eles logo quem somos... -sussurrou o homem na maca.

-Contarei, Pedra, contarei.

terça-feira, 5 de maio de 2009

41. Feridas e Cicatrizes

Ficamos estáticos, mal respirando. Os segundos seguintes demoraram a passar. Era como se o mundo tivesse parado de girar, preso àquele momento, em silêncio. Mas eu ainda podia ouvir o estrondo ecoando em meus ouvidos, minhas pernas lutavam para pararem de tremer e meu coração tentava abrir um buraco em meu peito e fugir. Thompson olhava da porta para o corredor, tentando não ser pego de surpresa. Seu coração batia tão forte que se podia ouví-lo naquele silêncio, e mesmo assim, à luz fraca que deslizava pela fresta da porta, ele não demonstrava medo algum. E quando a sombra voltou adiante da porta, ele apenas segurou firme a arma e se preparou.

Com um barulho metálico a tranca foi aberta. Lentamente a porta se abriu, deixando jorrar luz escada abaixo. Uma cortina brilhante se formou na poeira que flutuava e rodopiava no ar praticamente parado. Thompson ergueu rapidamente a arma e disparou apenas uma vez. O lampejo refletiu em seus olhos, apenas fúria saía deles. E antes mesmo que eu pudesse entender, ele se projetou escada acima, pulando os poucos degraus que faltavam e se jogou contra a porta. Com um baque surdo quem estava do outro lado foi arremessado. Quando corri escada acima Thompson já tinha um dos pés no peito da pessoa e sua AK-47 apontada para seu rosto. Havia um corte na testa do homem caído e um filete de sangue escorria-lhe pela orelha. Ele não era velho, mas duas décadas de um mundo podre tinham levado sua juventude embora.

O rosto do pobre homem era cheio de cicatrizes, seus braços tinham marcas horrendas e pedaços faltando ou sobressaindo, dois dedos da mão esquerda tinham sumido e havia um curativo mal-feito em sua perna esquerda. Na mão direita segurava uma pistola, saindo debaixo de suas costas se podia ver o cabo de uma metralhadora, e em sua bota havia uma faca. Uma mancha vermelha de sangue crescia em seu uniforme azul e se espalhava por toda a região da cintura.

-Sua mira e seus reflexos continuam muito bons, mesmo depois de tantos anos - tossiu o homem, cuspindo parte do sangue que escorria do corte em seu lábio. Então sorriu maliciosamente e continuou. -Achei que nunca mais veria o garotinho mirrado, com medo do escuro, que vivia fugindo das aulas de primeiros-socorros.

-Tinha medo de lembrar de sua mãe gritando de prazer, nas noites em que passei com ela. -Faltou Thompson, comprimindo o cano da arma no ferimento aberto na barriga do sujeito, com expressão de poucos amigos. -Talvez devesse ter suturado sua boca e cortado fora seu pau quando tive chance.

-Thompson, seu puto! -Gargalhou o homem, com os dentes pintados de sangue. -Minha mãe tinha quase sessenta anos!

-Eu sei, por isso tinha medo. -E tirou o pé do peito do inimigo caído, ajudando-o a se levantar. E sem alterar sua expressão, falou. -E da próxima vez não vou errar o tiro.

-Mas você acertou, oras... Esse sangue todo que o diga! Meu coração não para de bombeá-lo para fora, e minha boca já tomou quase um litro dele!

-Se tivesse acertado, a porta não teria absorvido o impacto e você estaria perguntando a sua mãezinha se ela sente saudades de mim neste exato momento.

-Desgraçado... continua igualzinho!

E eu e Anne não dissemos palavra, boquiabertos.