Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

115. Novos Jogadores

-Eles usavam uma roupa cinza, meio preteada, acho. Parecia uma peça única de roupa. Tipo aquelas antigas roupas de mergulho, sabe? Usavam também um capacete fechado, com um visor escuro, daqueles que refletem -descrevi o que tinha visto da melhor maneira possível à Lisie. Ainda que, admito, tenha sido uma descrição patética.

-Não tinham identificação ou brasão? -insistiu Lisie. -Nada?

-Agora que você falou... -franzi o cenho, enquanto minha memória varria as imagens já se perdendo em minha mente destreinada-, eles tinham sim identificação. Um número. Na verdade, um número e duas letras, um traço e então outro número de três dígitos. Mas nenhum símbolo ou brasão, não.

-Mas que... merda! -deixou escapar. -Quem são eles, afinal?

-Sabemos que não são os Deuses -constatei o óbvio, enquanto ajeitava as idéias na cabeça para constatar o não tão óbvio. -Por outro lado, os Deuses parecem estar muito mais equipados do que eu sonharia imaginar. O que eram aqueles... aqueles... exoesqueletos ou seja lá que porra era aquilo? E o que eles tanto querem por aqui para investirem tanto equipamento e pessoal  em um só lugar? Como pode?! Um helicóptero e exoesqueletos! Helicóptero... helicóptero... -brinquei com a palavra, como se se referisse a algo de outra dimensão, o que quase era verdade, já que não muitos mais voam por aí hoje em dia.

-Uma coisa eu sei. Aquele avião, ou o que quer que seja, que vi caindo aqui em Bermil... -disse ela apontando para a parede que ficava na direção do rio. -Tem alguma coisa lá... tem que ter... tem gente demais jogando esse jogo... Só pode ter alguma coisa lá!

Lisie andava de um lado para o outro, por entre os restos de mesas e cadeiras, olhando ocasionalmente pelos buracos de tiros que havia no portão do boteco para a rua lá fora.

-Como foi que você disse mesmo que eles soldaram o portão no chão em... segundos e foram embora?

-Exatamente assim... -disse eu, abaixando sobre um dos joelhos para demonstrar o que eu mesmo não tinha entendido ao ver aqueles caras fazendo- em um segundo um deles pegou... uma pistola, sei lá... um pouco mais grosso que uma pistola era aquilo... que seja. Ele pegou a pistola, encostou na base do portão, aqui onde ele encontra o trilho de ferro na lateral, e foi subindo. Voou um monte de faíscas, como quando se solda uma coisa na outra, e pronto. Depois ele foi pro outro lado -andei alguns passos até a outra lateral do portão, ao lado da porta por onde entramos- e fez a mesma coisa aqui. Veja, ainda está quente -tirei a luva e coloquei a mão no metal derretido. Não estava quente, na verdade, só não estava tão gelado quanto o resto todo do planeta. -Tem alguma coisa gosmenta aqui... -disse, esfregando um dedo no outro e depois na parede, para limpar aquela espécie de óleo que havia grudado em minha mão.

-Está silêncio lá fora -disse Lisie, olhando por um dos buracos no portão. -Silêncio demais, até... melhor darmos o fora.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

114. Agulhas

-Temos que sair daqui -sussurrei. -Agora!

-Vamos por ali -disse Lisie, apontando para uma escada atrás do balcão.

 A escada levava ao segundo andar, apesar de não haver muito mais que o chão e uns destroços das antigas paredes lá em cima. O prédio ao lado, porém, havia permanecido praticamente intacto. Com um salto pulei pelo vão entre os prédios e entrei por uma janela quebrada. No fim da rua, o blindado em chamas fazia a curva na esquina em que havíamos nos protegido, e fugia para a segurança dos exoesqueletos, ainda disparando contra os telhados e andares mais altos das construções do outro lado do quarteirão. Ajudei Lisie a entrar pela janela e juntos bloqueamos a porta com os resto de móveis e escombros. Nos encolhemos em um canto onde a corrente de ar gelado da noite era menor e esperamos as horas passarem.

Nossos sacos de dormir tinham ficado pra trás, mas não mais nos passou pela cabeça dormir naquela noite. O som de disparos tinha se afastado lentamente, até sumir à distância, e sequer um uivo dos diabos foi ouvido durante o resto da noite. Mas não foi o silêncio ou o sopro do vento que dominou a escuridão. Podíamos ouvir coisas se mexendo pelo breu, pulando de telhado em telhado, andando pelas ruas, esgueirando-se pelos becos, à espreita. As horas se arrastaram lentamente por nossos ouvidos, a cada rangido ou estalo do lado de fora.

-Está amanhecendo -falei, tossindo um pouco-, finalmente.

-Sua voz está horrível -falou Lisie, com uma careta.

-Acho que eu esqueci de engolir, na última meia hora -de fato, eu tinha passado um bom tempo absorto com os sons que nos cercavam, que por vezes me esqueci até mesmo de respirar por alguns minutos.

Pela manhã arrisquei olhar pela janela em que havíamos entrado. Nada se movia nos telhados além da neve e da poeira. A primeira luz da manhã trouxera um silêncio inquietante. Olhei para o beco que se estendia abaixo de nós, entre os dois prédios, e este também estava vazio. Decidi pular de volta ao segundo andar destruído do boteco, andei rapidamente por entre os escombros, e me escondi na parede oposta, logo acima da rua. Vislumbrei a rua por uma fresta e quase caí com o que vi. Lisie, ainda tomando coragem para pular da janela, percebeu meu susto e se abaixou atrás do parapeito. Na calçada, alguém abria o portão retrátil do boteco. Um estrondo metálico ecoou pelo prédio quando o metal enferrujado se retorceu sobre si mesmo abrindo caminho para quem quer que fosse entrar. Nos minutos que se seguiram outras três figuras se revezaram trazendo duas duzias de corpos de diabos para dentro do boteco. Pela escada eu podia ouvir o som dos corpos caindo na pilha, mas felizmente ninguém se aventurou ao segundo andar.

-O que aconteceu? -perguntou Lisie, pouco depois de as figuras terem ido embora.

-Não sei bem -respondi, puxando-a pelo braço em direção à escada-, mas acho que tenho uma ideia...

Junto à pilha de corpos de diabos havia um corpo bem mais humano, vestindo um antigo colete militar e uniforme com um brasão bastante familiar.

-Um soldado dos Deuses. Eram eles?

-Porque largariam o corpo de um dos seus aqui? Não, não acho que eram os Deuses -falei, me abaixando pera observar o corpo mais de perto com minha lanterna. Em um dos ferimentos do corpo do soldado dos Deuses havia algo brilhante e comprido. Puxei com a ponta dos dedos, limpei na roupa do morto e mostrei à Lisie. -Uma agulha magnética.

-Uma... agulha? -disse ela, incrédula, pegando a pequena e afiadíssima haste de metal.

-Tipo isso. E eles soldaram a porta, também.






segunda-feira, 23 de julho de 2012

113. Boteco

Tão logo foram atingidos, quem -ou o que- quer que estivesse dentro daqueles magníficos trajes mecânicos começou a disparar em resposta, fazendo as metralhadoras giratórias cuspirem sua munição incandescente por toda a rua, iluminando-a com o flash dos disparos e inundando com sua melodia ensurdecedora cada tímpano capaz de ouvir num raio de duas ruas. Nos protegemos novamente atrás da esquina, escondido pela grossa parede do prédio. Não conseguímos encontrar quem havia revidado os primeiros disparos dos trajes, mas também não esperamos que aparecessem e se apresentassem. Corremos. Corremos por nossas vidas. Corremos até os pulmões doerem e a boca começar a se encher com o gosto de bile e sangue. O som dos disparos tinha ficado mais esparso e distante, mas não estávamos mais longe do perigo que antes. Dobrando a esquina vinha um blindado, com seu canhão apontando para trás, à toda velocidade. Olhei em volta, procurando um esconderijo, e dei de cara com a porta lateral de um buteco. A porta de metal parecia bastante fragilizada pela ferrugem, e não pensei uma segunda vez antes de me jogar de ombro contra ela, fazendo a fechadura se espatifar e a janelinha de vidro colorido voar pelos ares com o impacto contra a parede. Lisie veio logo atrás, tropeçando nas cadeiras que eu havia derrubado no chão com a entrada quase triunfal. Fechamos a porta novamente e escoramos com as mesas e uma antiga jukebox que provavelmente já não tocava música alguma muito antes da guerra. Observamos pelos buracos no portão de ferro, daqueles que se desenrolavam do teto, e vimos quando a massa de metal militar passou em alta velocidade. Não podíamos ouvir os disparos através da porta e com o barulho alto das lagartas contra o asfalto, mas faíscas pulavam por toda a lataria do blindado.

-Eles estão fugindo! -exclamei, não contendo uma gargalhada em seguida.

-Shhhhh... -fez Lisie, me dando um soco no braço.

-Eles não podem nos ouvir. E além do mais estão morrendo de medo... -minha voz morreu quando a encarei. Sua lanterna apontava para o fundo do lugar, não mais que sete ou oito metros. Lá, iluminados pela luz da lanterna, jazia um amontoado de corpos de pele vermelho acinzentada, com chumaços de pelos aqui e ali, em avançado estado de putrefação. O bar que escolhemos de esconderijo não estava vazio.

-Diabos mortos... um monte deles...


terça-feira, 17 de julho de 2012

112. Revide

Os faróis, como dois olhos enormes e brilhantes, varreram a rua até o final e ali se focaram por alguns instantes, iluminando o amontoado caótico que restara de uma casa. O único som que se ouvia era o atrito metálico das metralhadoras giratórias cessando o movimento. Nem mesmo meu coração disparado e minha respiração profunda pareciam fazer som algum. Era como se meus hormônios houvessem criado um filtro contra os sons mundanos da noite, focando meus sentidos no que era novo e possivelmente perigoso. Ficamos ali, imóveis, sem sequer mudar o foco do olhar, com medo que mesmo isso fosse suficiente para nos denunciar. Estávamos expostos ali, encostados na parede do prédio, poucas centenas de metros à frente do que quer que espreitasse além da esquina, mas naquele momento, aquela esquina silenciosa e imóvel, parecia o lugar mais seguro de todos. Contanto que nem mesmo um fio de cabelo fosse movido.

-Alguém precisa revidar -arrisquei falar, um longuíssimo minuto depois de o som das metralhadoras terem parado por completo.

-Não ouse! -arregalou os olhos e exclamou Lisie, por entre os dentes.

-Não eu! -respondi irritado. -Eles atiraram em alguma coisa. E essa coisa ainda não revidou.

-Atiraram na gente! -respondeu ela, incrédula.

-Duvido muito -balancei a cabeça negativamente. -Não valíamos a pena que gastassem nem um punhado daquela munição. Essa merda ainda nem começou a feder...

Comecei a recolher as coisas. Lisie ainda não tinha se decidido se acreditava na possibilidade de meu argumento ou se eu tinha ficado louco de vez, mas arrumou a mochila nas costas e pegou sua Ak-47 do chão. Olhei uma vez mais pela esquina. Os olhos continuavam olhando em nossa direção, enquanto outro par deles se aproximava de uma rua lateral e se juntava aos primeiros. Pude ver, no segundo ou dois em que foi iluminado, o que havia disparado contra nós.

-Puta merda... são exoesqueletos!

-O que? -Lisie, obviamente, não entendeu o que eu tinha dito. -São quem? Como assim exoesqueletos?

-Uma espécie de armadura, sei lá. Coisa de ficção científica!

Lisie se abaixou e também olhou pela esquina, logo abaixo de mim. Ouvi sua respiração mudar quando se preparava para dizer alguma coisa, mas não houve chance de comentários. Uma série de zumbidos quase inaudíveis, como morcegos passando rasante, encheu a noite e nos fez encolher novamente. Ao longe, o som de metal sendo atingido e faíscas voando deixou claro que o revide tinha começado.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

111. Chuva de Fogo

Pensei ter ouvido os diabos se levantando para roerem os ossos do que sobrou do dia anterior. Eu podia apostar que a grande maioria deles estaria escondida em buracos imundos ali por perto, só esperando a noite chegar para mais uma refeição fácil. Mas eu estava errado. Não eram aqueles cachorros asquerosos do nono inferno que estavam fazendo o barulho. Era algo maior. Bem maior. Algo mecânico, pesado, que parecia ecoar de todos os cantos. Se olhasse com atenção, veria a poeira do chão pular a cada pancada surda que se seguia. Lisie também tinha ouvido, mas nada disse, fitando a escuridão de olhos arregalados, como se os sons fossem aparecer escritos no véu da noite como legendas para que não perdêssemos nada do que acontecia.

Um minuto depois o céu despencou uma chuva de metal incandescente e fogo. Estilhaços de tijolo e concreto voaram de todas as direções. O ar foi tomado pela poeira que se erguia de todos os cantos, engrossando a cada segundo. A noite tinha se iluminado em tons de vermelho e branco, e sua trilha sonora agora retumbava explosões, estampidos e assovios inconfundíveis. Estavam disparando incessantemente sobre nós.

Não levou mais que dois segundos para decidirmos pular pelo buraco na lateral da casa, rumo à escuridão da rua. Pouco me importei em torcer o pé e espatifar por cima da lama e da sujeira, minha vida continuava agarrada á meu corpo, e isso bastava para afastar a dor. Lisie pousara com muito mais delicadeza, e não parara de correr mesmo quando a bandoleira de sua arma escorregou do ombro e ficou pendurada em sua mão, arrastando o cabo no chão. Os disparos continuavam varrendo o ar, espalhando metal e buracos pelas  casas, prédios, carros e ruas. Um dos projéteis passou fervendo ar debaixo de meu braço direito e atravessou as duas portas do utilitário parado do outro lado da rua. Os buracos que se formaram na lataria eram do tamanho da cabeça de uma criança, pelo menos. Um terceiro buraco tinha se formado na fachada do prédio, e eu era capaz de apostar que haveriam outros adiante na trilha de destroços. Tentei não imaginar o que aconteceria se uma daquelas merdas me atingissem, mas não pude deixar de pensar em carne moída e uma chuva de entranhas. O mínimo que se podia ganhar atingido por um daqueles disparos era ter um membro decepado e morrer agonizando com os órgãos rompidos pela onda de choque.

Viramos a esquina derrapando na poeira. Pulmões na garganta, mochilas e armas despencando pelos braços. Os flashes dos disparos davam uma visão em câmera lenta da realidade, como se estivéssemos em uma das antigas casas noturnas de Vale Vermelho ou Gran Valência. Os diabos de Bermil corriam de buraco em buraco, ganindo de dor com os rabos entre as pernas, tão assustados quanto nós. Por um segundo, quase senti pena deles. Mas o mundo tinha se silenciado de repente. E minha respiração junto, enterrando a pena enquanto me trazia de volta à realidade. Arrisquei olhar pela quina do prédio. Lá no fundo da escuridão, pouco antes do sobrado onde estivemos, dois olhos brilhantes, acima dos dois metros de altura, vasculhavam a rua. As metralhadoras giratórias, como as atingas gatling, ainda fumegavam, com os canos incandescentes girando lentamente.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

110. 24 Horas

Queria ter tido maior noção do perigo naquele tempo...

Lisie acordou quando ouvíamos a mensagem pela terceira ou quarta vez. Seus olhos se arregalaram de imediato e encheram-se de lágrimas. Era um de seus companheiros do RR, conseguiu nos dizer por entre os soluços. Ainda tentávamos tirar mais informações dela quando o scanner do rádio nos alertou para uma comunicação em andamento.

-Lobo Cinzento. Lobo Cinzento, na escuta?

Não ouvimos a resposta -o que provavelmente indicara que o receptor da mensagem estava além do alcance, segundo Pasan- mas a mensagem que veio a seguir era bastante auto explicativa.

-Siga para o ponto de impacto, imediatamente. Permissão para ataque concedida. Vinte e quatro horas. Cambio final.

Quem quer que tivesse dado as ordens tinha sido bastante claro. Inclusive para mim. E assim, repito, queria ter tido maior noção do perigo naquele tempo. Pois restava menos de 24h para que um novo grupo dos Deuses embarcasse nos escombros daquela metrópoles em busca de sabe-se lá o que, tendo de enfrentar sabe-se lá quem. E isso me dava menos de 24h para encontrar qualquer sobrevivente ou pista do RR que houvesse. É claro que Lisie e Passan tentaram me impedir, mas eu não era conhecido -nem nunca seria até hoje- por fazer as coisas pensadas e planejadas, e ninguém ia me impedir de ao menos saciar minha curiosidade de saber o que -diabos!- tinha se espatifado naquela merda de rio que todo mundo queria saber. Então simplesmente peguei minha arma, algumas barras de cereal, duas latas de sopa, um vidro de anti-séptico e parti. Passan sorriu incrédulo, Lisie deixou uma lágrima escapar de seus olhos de lagoa azul, mas nenhum deles tentou de fato dobrar minha determinação. Uns podem dizer que foi por amor. Outros que por pura falta de experiência e bom senso. Mas eu digo que foi aquela sensação de formigamento que dá na gente quando sabemos que é a cagada certa a se fazer. 

O vento do lado de fora tinha voltado a se mostrar implacável. Meus ossos congelavam por dentro da carne, mas o conforto de saber que um tiro de longa distância era quase impossível fazia valer a tremedeira. Caminhei por cada minuto que havia de luz, o mais rápido e escondido que pude. Não avistei nenhuma viva alma no caminho, e esperava não ter sido avistado por nenhuma. Quando as sombras começaram a se apoderar da cidade apenas um filete de fumaça negra se erguia sobre os escombros poucas centenas de metros adiante, mostrando onde tinham sido sepultados os "bravos" Deuses. Procurei abrigo em um sobrado, escorei a porta com todos os móveis e escombros que havia disponível e me aninhei dentro da segurança do saco-de-dormir.

-Nuke! -me acordou uma voz feminina, no instante em que o sono chegara.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

109. Mensagem Codificada

De fato, nem um único diabo espreitava quando voltei ao esconderijo. Nem mesmo um uivo podia ser ouvido vindo de outro lugar, que não às margens do rio, poucos quilômetros ao sul. Mesmo por entre os prédios pude ver as chamas iluminando a escuridão, fazendo sombras dançarem nas paredes pintadas de vermelho e laranja. Pensei ter ouvido um grito ou outro, mas não senti remorso algum quando pisei na segurança do abrigo e senti o calor reconfortante lá de dentro. Lisie ainda tentava contato com alguém do RR, mas o silêncio era completo em todas as frequências, inclusive as dos Deuses e de Amrak. Provavelmente todos já sabiam -e provavelmente podiam ver as luzes iluminando o céu- do que acontecera aos soldados dos Deuses. E era como se os que restaram tivessem  se encolhido em suas camas e estivessem esperando a tempestade passar, torcendo para que o telhado aguentasse e pela manhã tudo voltasse a ser colorido, com o sol ardendo no céu azul a esquentá-los.

Por Lisie, continuaríamos tentando contato até que houvesse resposta, mas Passan e eu a aconselhamos a descansar um pouco e tentar novamente depois. Havia sido um longo dia e não foi preciso muito para convencê-la. Ajudei-a a se deitar e percebi como também estava cansado. Voltei à sala de Passan para dizer alguma coisa mas não conseguia lembrar o que era. Chacoalhei de lado a cabeça e voltei ao dormitório, adormecendo assim que encostei no travesseiro macio. Acordei o que me pareceram dias depois, assustado com um monte de sonhos e pesadelos encavalados. Lembro-me de um homem cego, animais deformados, um por do sol à beira mar, robôs inteligentes, piquenique em um gramado verde e misseis nucleares cruzando o espaço. Passan continuava mexendo em seus arquivos, e pelo que me contou, passou as dez horas que estive dormindo retransmitindo através da antena uma gravação codificada. Caso alguém do RR interceptasse a mensagem, saberia como decifrá-la, segundo Lisie havia lhe dito. Lá fora a cidade estaria acordando e os diabos se retirando após o banquete, pensei, mas não havia nada que eu pudesse fazer para ajudar Lisie. Tudo o mais estava fora de nosso alcance.

Tentando descansar a cabeça de infinitos pensamentos comecei a ouvir algumas músicas da vasta coleção de Passan. Tudo o que ele conseguiu reunir do gigantesco passado musical da humanidade estava ali, naquele pequeno music-player. Um trabalho de duas décadas, completamente desprovido de uso prático, mas ainda assim de valor inestimável para qualquer um que pudesse perceber a grandiosidade daquela coletânea. Viajava ouvindo um rock clássico centenário quando Passan tirou seu head-fone e me chamou.

-Ouça isso! -falou, visivelmente entusiasmado. -Vem sendo transmitido já faz uma hora, talvez mais. Não tinha percebido até agora, estava muito baixo e parecia apenas chiado. Resolvi passar uns filtros de áudio antigos e... bum!

O começo e o fim da mensagem eram inaudíveis, com um barulho de estática agudo e longo, mas o meio continha algumas partes inteligíveis. Um homem falava baixinho, com a respiração ofegante e a voz trêmula:

..."eles marcham à noite, sem se importar com os... os cachorros...", "...são incansáveis, passam o dia de um lado para o outro, e não param para dormir...", "...aquela coisa... continua soltando fumaça... cada vez menos, mas nunca para...", "...se alguém estiver ouvindo, não venha pelo...", e então recomeçava.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

108. Águia à Passarinho

Quando percebi o perigo já era tarde demais. O helicóptero passou rasante pela cobertura do prédio, erguendo grandes nuvens de neve e poeira. Lisie deu um gritinho assustado e se agachou atrás do parapeito. Vi quando, pouco antes de o helicóptero mergulhar por entre os prédios, o atirador pendurado na lateral nos observou com a luneta de seu rifle. Peguei o rádio e só então ouvi Passan gritando para que nos escondêssemos. Lisie ainda me olhava de olhos arregalados enquanto descíamos correndo as escadas, corações tentando pular fora do peito. Entramos pela passagem do esconderijo sem saber o que fazer a seguir. Mas sequer teríamos chance de pensar em algo. Passan tinha mais más noticias.

-É o segundo que passa nos últimos cinco minutos -falou, apontando para a imagem de uma das câmeras de vigilância que ele tinha instalado do lado de fora. Ali, naquela divisória quadrada da tela, um blindado usado para transporte de tropas acabara de passar, deixando redemoinhos de flocos de gelo pelo ar. -O outro era o mesmo de ontem, pelo que pude perceber...

-Pelo menos a antena funciona? -consegui dizer, sem tentar esconder a decepção na voz.

-Sim! Assim que vocês terminaram eu reiniciei o sistema e imediatamente captei as comunicações dos Deuses. Tentei avisá-los, mas vocês não respondiam. Já esperava pelo pior... pensei que fosse tarde demais.

Pude sentir meu rosto esquentar e corar com as palavras de Passan. Lisie gaguejou alguma coisa inaudível.  Passan, aparentemente sem perceber nosso embaraço, começou a explicar sobre o alcance fenomenal da antena e sua capacidade de captar mesmo as mais fracas transmissões. Olhei de canto de olho pra Lisie, esperando um olhar de cumplicidade, mas ela estava concentrada nas palavras de Passan, provavelmente imaginando as possibilidades que agora teríamos de encontrar alguém do Rosa Radioativa. Forcei meus devaneios de lado e foquei minha mente. Tentávamos captar palavras em meio a um amontoado de chiados, conforme o scanner automático da antena circulava pelas centenas de frequências possíveis. Checamos cada uma delas três vezes, mas conseguíamos captar apenas as transmissões de Amrak e dos Deuses. Os primeiros pareciam focados em patrulhar as fronteiras do que restara de sua cidade e proteger os catadores de etulhos. Já os Deuses estavam metidos em alguma coisa.

-Vamos sobrevoar outra vez -dizia o piloto do Águia. -Onde está a equipe em...-chiado- ...manter distância de combate em duzentos met...dois subindo o rio, dois a norte... aproximem-se pelo nor... pela ponte! Pela ponte! Caralho, agora, agor...

Seguiu-se um chiado forte e então silêncio completo.

-Águia, na escuta? -chamou um dos blindados, minutos depois. -Águia, na escuta? Cambio.

Quando cheguei novamente à cobertura do prédio, com o telescópio na mão, o último raio de sol sumia atrás dos esqueletos dos prédios. Ao longe, os uivos dos diabos começavam a surgir. Mas eu não temia ficar preso ali em cima. Não dessa vez. Não enquanto estivesse rolando o churrasco às margens do rio.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

107. Por do Sol


O gincho agudo e ameaçador do novo rato, quase o dobro do tamanho do outro, ecoou pelos cantos do estacionamento, retornando instantes depois, como se centenas de outros roedores estivessem respondendo ao chamado. Sem esperar para descobrir, enfiei uma bala na criatura asquerosa e pulei alguns degraus subindo a escada, sem nem ver o estrago causado. O primeiro roedor, assustado com o barulho e minha correria, fugiu escada acima, saiu pelo corredor e sumiu no saguão do prédio. Ignorando-o, torci para que os diabos o encontrassem na rua. A escada para o esconderijo de Passan estava a poucos passos dali. Peguei o rádio e chamei por Lisie. O aparelho chiou em resposta um pouco depois mas não houve resposta. Um instante mais e a voz suave de Lisie respondeu atrás de mim, fazendo-me pular de susto.

-Ê assustado! -brincou, com um risinho. Ela então se aproximou um pouco mais e pude sentir um cheiro suave de perfume que me arrepiou mais que o susto. -Venha, vamos descer, achei algumas peças e acho que podemos consertar a antena! -me puxando pelo braço seguimos ao alçapão. Agradeci à penumbra por esconder meu rosto vermelho de vergonha.

Passan rapidamente nos explicou como retirar as partes danificadas sem acabar de vez com o equipamento e como soldar as novas usando um antigo aparelho elétrico. Eu ainda atacava uma lata de carne em conservas quando partimos uma vez mais à cobertura do prédio. Lá, o vento continuava implacável, e parecia estar se esforçando para nos jogar fora do prédio. Sem Lisie para bloquear o vento, provavelmente não teria conseguido evitar que as minúsculas peças eletrônicas fossem levadas embora pelas rajadas geladas, quando minhas mãos trêmulas de frio as derrubaram incontáveis vezes. Levamos cerca de cinco horas para trocar todas as peças, parando de tempos em tempos para aqueçer os dedos congelados e comer alguma coisa. Já começava a anoitecer quando finalmente terminamos, e não houve sinal algum dos Deuses ou qualquer outra movimentação estranha por Bermil. Comecei a guardar minhas coisas, já imaginando-me tomando um banho quente e comendo uma comida gostosa, mas percebi o olhar triste de Lisie. Ela ainda pensava nos amigos, e aquela antena voltar a ser funcional era a oportunidade para que pudesse reencontrar parte deles. Abracei-a quando uma lágrima começou a escorrer de seus profundos olhos azuis. Ela me abraçou ainda mais forte, deitando seu rosto em meu peito. Respirávamos lentamente, em silêncio. O vento parara de soprar e o frio dera lugar a uma mormaço gostoso. No horizonte, por debaixo da infinitamente longa cama de nuvens, um sol tímido surgiu e pintou a cidade de vermelho com sua luz rubra.

Em uma fração de segundo Lisie colara seus lábios nos meus, o rádio gritava a voz de Passan, e um ponto negro surgia bem no meio do sol poente.

segunda-feira, 28 de março de 2011

106. Roedor

Mantive-me imóvel por um segundo. O som ecoou baixinho pelos confins do estacionamento e morreu na imensidão vazia. De olhar fixo na escuridão e coração acelerado, como se esperasse que um monstro pulasse das sombras e me arrancasse a cabeça, coloquei a lanterna sobre uma caixa e me afastei. Em completo silêncio me escondi atrás de outras caixas, mais ao fundo do depósito, onde apoiei meu fuzil AK-47 e preparei a mira. Esperei quase sem piscar que algo passasse pelo facho de luz. Vez em quando um ruído quase inaudível rompia  o silêncio tangível do estacionamento, mas nada aparecia. Depois de alguns minutos a impaciência já começava a lutar com a adrenalina e o medo, a agonia aumentava a cada instante transformando o depósito em uma arapuca. Queria sair do esconderijo, pegar as peças que faltavam e retornar à companhia de Lisie e Passan, mas podia sentir que algo se movia na escuridão, sorrateiro. Com minha sorte, assim que deixasse o esconderijo daria de cara com o que quer que fosse.

O som abafado, como se algo pesado fosse largado ao chão, se repetiu ainda duas ou três vezes, mas nada cruzou ou entrou pela porta do depósito. Esperei ainda mais 10 ou 15 minutos, lutando com meus receios, mas já estava mais bravo e impaciente com a situação que temeroso. Mandei à merda a prevenção, deixei o abrigo das caixas e avancei rumo à entrada do lugar. Peguei minha lanterna e iluminei o exterior, em busca de algo diferente. Ao redor havia apenas os mesmos carros abandonados e suas manchas de sangue seco pelo estacionamento. A porta do elevador de serviço parecia intacta, com seu aço inoxidável corta-fogo resistindo à ação do tempo. Satisfeito, dei uma última vasculhada com o facho de luz e voltei para pegar as peças. Ajoelhei-me ao lado da pequena caixa de papelão que estava usando para colocar os componentes e recomecei a busca. Levei ainda cerca de 20 minutos até recolher tudo o que podia, mas ainda faltavam uma ou duas que não fui capaz de encontrar.

Minha cabeça latejava, meu pulmão reclamava da podridão do ar e meu cérebro parecia estar derretendo dentro do crânio. Quando pus o pé fora do depósito da rádio já conseguia me imaginar descendo a escada para o esconderijo de Passan. Infelizmente, como minha má sorte predizia, uma massa de pelos cinzento do tamanho de um gato acabou com o pensamento de descanso. Por pouco não deixei cair a caixa, e estivesse com a arma em punho provavelmente teria disparado por puro reflexo na hora do susto. Apoiado nas duas patas traseiras estava um dos maiores roedores que provavelmente já existiu. A criatura meio pelada meio peluda me encarava com seus olhinhos escuros enquanto roía um pedaço de papelão seguro pelas mãozinhas esqueléticas. Como se me analisasse, a  pequena figura dentuça terminou sua refeição calmamente e pôs-se me circular, seguido pelo rabo magrelo quase tão grande quanto o corpanzil. Precedendo um ataque traiçoeiro acompanhei seus movimentos girando no lugar, mantendo-me sempre de frente. Depois de um círculo completo e meio, o roedor soltou um guincho assustado e correu desembestado pela escuridão do estacionamento. Confuso, dei um risinho para mim mesmo e balancei a cabeça. Contive minha curiosidade de segui-lo e desejei apenas que o que quer que rondasse por aquela escuridão, encontrasse de frente com esse rato.

Confiante do caminho a seguir, retornei à entrada do estacionamento rapidamente. Estava feliz em deixar para trás aquela catacumba de concreto e seus habitantes asquerosos. Pelo caminho ainda ouvi os ruídos e guinchos quase inaudíveis, mas agora sabia sua origem e não me incomodei em parar para olhar. Subia os primeiros degraus da escada que levava ao térreo quando levei outro susto. No topo do primeiro lance da escada estava novamente o monstruoso rato, que apoiado nas patas traseiras tinha a altura de meus joelhos. Fiquei a imaginar qual altura ele seria capaz de atingir em um único salto, e sem paciência para descobrir a resposta saquei minha pistola e apontei para o maldito. Mirei entre seus olhos, mas me detive por um instante, vendo sua curiosidade ser aguçada por meus movimentos. E nesse momento de indecisão ouvi o som que originou todos os temores da última hora se repetir agourento atrás de mim.

segunda-feira, 21 de março de 2011

105. Estacionamento

Eu tentava colocar corretamente o telescópio em sua base, descontando minha frustração em grandes colheradas de sopa, quando Passan veio com a notícia: outro passeio no frio assassino. Dei uma risada meio irônica, aceitando o fardo, e pus-me a arrumar a mochila às costas. Lisie também pegou a sua e deixamos a segurança e o calor do abrigo. Dessa vez, ao menos, sabíamos o que procurar. A emissora de rádio que um dia operara através daquela antena provavelmente tinha peças de reposição em algum lugar, bastava encontrá-las. E depois de Passan vasculhar em alguns arquivos antigos conseguimos ter uma idéia melhor de quais andares poderiam contê-las.

Nos despedimos com um longo abraço e desejos de sorte. Lisie seguiu rumo aos andares superiores, em busca das peças diretamente na antiga rádio. Já eu me aventurei por quatro ou cinco andares de estacionamentos subterrâneos, em busca de algum depósito, armazém ou coisa parecida. Levávamos um rádio cada, mas o meu deixou de funcionar pouco depois de descer a escada para o primeiro subsolo. Não me importei na hora, já que estava acostumado a estar sozinho e em lugares escuros, mas em pouco tempo comecei a me sentir desconfortável lá em baixo. Apenas minha lanterna cortava a escuridão e meus passos quebravam o silêncio sepulcral. E apesar de haver pouca ou nenhuma circulação de ar, o lugar era tão ou mais frio que o lado de fora do prédio. O ambiente era extremamente pesado e sombrio, enquanto o ar parecia já ter sido respirado completamente incontáveis vezes. Pra finalizar, um cheiro de podridão e mofo impregnava o nariz e fazia doer minha cabeça. 

Acelerei o passo, decidido a encontrar logo onde as empresas e lojas do prédio mantinham seus depósitos. Andava próximo à parede, em busca de alguma indicação que me dissesse para onde seguir, mas todas as placas e pinturas estavam arruinadas pela água que escorria lentamente pelas paredes, tornando o lugar um enorme labirinto de colunas e veículos abandonados. Destes últimos havia muitos, de todos os tipos e tamanhos.  Alguns estavam batidos contra paredes e postes, outros tinham sua lataria e para brisas alvejados, com marcas escuras de sangue salpicadas no vidro e no chão, vários haviam ardido em chamas até restar apenas a carcaça, enquanto uns poucos pareciam intocados, a não ser pela umidade e pelo tempo. Em nenhum dos que me desviei pelo caminho havia corpo ou vestígio humano além de sangue seco e objetos abandonados. Se alguém havia morrido ali, e estava muito claro de ter ocorrido, estranhamente não havia mais nada para contar a história.

Finalmente, depois de andar a esmo na imensidão escura por quase meia hora, encontrei a porta do elevador de serviço. Perto dali, grandes portas de grade se espalhavam igualmente pela parede. A maioria ainda tinha o símbolo da empresa dona do depósito pintado no metal, o que facilitou muito a busca pela rádio Digital Global, com seu logotipo de uma antena parabólica com desenhos de continentes. Houve, anos antes, cadeados enormes mantendo trancadas as portas, mas todos haviam sido arrombados e os interiores dos depósitos saqueados. O da rádio tinha sua porta aberta apenas parcialmente, e seu interior estava quase tão arrasado quanto as ruas de Bermil. Peças eletrônicas, cabos e equipamentos estavam espalhados pelo chão num caos completo. Pela quantidade de coisas, eu sabia que provavelmente todas as peças de que precisávamos estariam ali, mas encontrá-las já seria trabalhoso o bastante se tudo estivesse organizado, naquele estado então seria praticamente impossível. Provavelmente teria resistido a sair do abrigo se soubesse com antecedência do que me aguardava, mas estando ali, só conseguia pensar em encontrar as peças logo e deixar aquele lugar asqueroso e fétido. 

Ainda faltava pouco mais da metade das peças a ser encontrada quando, como se meus sentidos já estivessem acostumados a coisas estranhas acontecendo perto de mim, olhei para trás, para a escuridão que me cercava. Um barulho súbito e abafado ecoou pela imensidão vazia do estacionamento um instante depois.

quinta-feira, 10 de março de 2011

104. Peças Sobressalentes

Voltar lá para cima não foi agradável. Eu não estava completamente recuperado, e o vento parecia ainda mais gélido e cortante que antes, como se soubesse que quase me vencera na noite anterior e quisesse terminar o serviço. Eu tinha roupas mais adequadas dessa vez, e um estoque de barras de cereais -vencidas fazia dez ou quinze anos, mas intactas no sabor- para não haver surpresas. Minha mochila também estava às costas, com meus pertences de viagem, por garantia. Levava ainda o rádio e uma mini-câmera, para filmar o painel avariado.

Não foi difícil encontrar onde estava o problema. Logo de cara, a tampa de ferro que deveria proteger o painel do mundo exterior estava aberta, batendo com o vento. O painel de transmissão estava bastante danificado, com neve e ferrugem em praticamente todos os componentes eletrônicos. Mas não parecia estar faltando nada. Filmei minuciosamente cada detalhe com a câmera e parti de volta para o abrigo. Antes de descer o primeiro lance de escadas, porém, dei uma última olhada ao redor. No fundo, tinha esperanças de ver o helicóptero dos Deuses partindo ao longe para não mais voltar, mas sabia que minha sorte não era tão boa assim.

Durante a descida encontrei com Lisie, que havia tirado uma folga de cuidar de mim e do filhote de Diabo, e estava explorando um dos andares do prédio, seguindo recomendações de Passan. Ela voltava com uma caixa abarrotada de inúmeras peças e componentes eletrônicos dos mais variados tipos e tamanhos, e pendurado às costas estava um tubo revestido de couro preto de mais de um palmo de grossura e um metro e meio de comprimento. Pensei em lhe perguntar do que se tratava o curioso objeto, mas sua animação em narrar sobre como éramos afortunados de encontrar tantas peças assim tão facilmente me fez esquecer o assunto.

No interior do abrigo, enquanto me servia de mais um tanto de sopa quente, Lisie e Passan analisavam cuidadosamente cada segundo das imagens que eu havia feito. Procuravam por quais peças poderiam estar quebradas, e dentre elas quais poderiam ser trocadas pelas que Lisie encontrara. Mas a animação dos dois foi diminuindo rapidamente, enquanto praticamente nada do que tínhamos seria de serventia. Tentei me distrair olhando o Diabinho choramingar dentro da caixa, balançando o corpinho de um lado para o outro sem sair do lugar, mas não conseguia deixar de pensar em um meio de consertar a antena. Foi então que percebi, no chão ao lado da caixa, o tubo que Lisie trouxera.

-Lis, o que é esse tubo que você trouxe? -perguntei, tentando fazê-los parar de resmungar e praguejar a cada peça não encontrada.

-O que? -demorou ela a processar minha perguntar. -Ah, isso? Um telescópio, eu acho.

sábado, 5 de março de 2011

103. Opções

-Três meses.

-Mesmo com todos os recursos que os Deuses dispõem, eles levaram três meses para encontrar o local da queda? -me surpreendi. -Tem algo errado aí, só pode!

-Queria poder fazer algo a respeito... -choramingou Lisie, inspirando fundo -pelos meus companheiros do RR.

-Vocês não tentaram contatar outras unidades do RR? Talvez eles possam ajudar.

-Eu queria ter tentado, mas a antena no topo do prédio foi avariada alguns anos atrás, segundo Passan.

-Infelizmente é isso mesmo -completou Passan, entrando no dormitório com outro prato de caldo fumegante. -Desde o fim da guerra eu vinha transmitindo, para quem pudesse e quisesse ouvir, as músicas que encontrei no music-player em meu passeio pela cidade, mas alguns anos atrás uma tempestade destruiu a caixa de transmissão na base da antena.

-Ao meu ver, temos algumas opções. Podemos consertar a antena, pedir ajuda ao exército de Amrak, investigar por nós mesmos ou simplesmente ignorarmos tudo isso e deixarmos que eles sem matem.

Pouco depois me arrependi de ter dado as opções e continuado com aquela história. Eu sabia que o exército de Amrak não faria o menor esforço em nos ajudar. Pelo contrário, dar essa informação a eles seria adicionar mais uma variável à equação já bastante complicada. Até minha saída das forças armadas da cidade de Amrak eles aparentemente nada sabiam sobre a queda de tal aeronave, e não seria eu a lhes contar. Deixar a história de lado também parecia fora de cogitação, segundo o olhar triste de Lisie. E como eu não estava para missões suicidas, apesar das inúmeras besteiras e situações de riscos que já me colocara antes, investigarmos por nós mesmos estava fora da minha lista. Restava apenas dar um jeito na antena, e torcer para que ela nos colocasse em contato com o resto dos rebeldes do Rosa Radioativa. Mas obviamente não seria assim tão simples:

-Passan, você sabe exatamente o que há de errado com o transmissor e onde conseguimos peças de troca?

-Nem um nem outro. Depois que a passagem pelas escadas foram fechadas nunca mais subi lá. Quando a antena parou de funcionar, tentei fazer o possível remotamente, mas não houve meio. Parei de fazer as transmissões, e desde então só consigo recebê-las. Lisie foi lá em cima olhar para mim, uns tempos atrás, mas não conseguiu identificar o problema.

-Sei... -e respirei fundo, sabendo que outro passeio ao terraço me aguardava.

-Talvez haja peças para troca aqui mesmo no prédio! -tentou ser otimista, enxugando as lágrimas do rosto e sorrindo para mim.

-Sei... -repeti, e comecei a me preparar mentalmente.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

102. Ataque ao RR

Estávamos com sorte, pensamos. Uma de nossas patrulhas levou apenas três dias para encontrar o local da queda, em uma das barreiras de contenção de um dos rios que corta Nova Bermil. Ao fim da tarde estávamos a cerca de dez quadras do impacto, e até ali nenhum sinal dos Deuses ou de qualquer gangue. Mas então a coisa toda aconteceu. Mal o primeiro carro chegou ao topo da ladeira que nos levaria à parte baixa da cidade a rua inteira explodiu. Os dois primeiros veículos sumiram na bola de fogo. O terceiro foi arremessado sobre o que eu estava. Me encolhi no banco traseiro o máximo que pude para escapar, mas os outros não tiveram a mesma sorte. Mal tive tempo de pensar no que fazer a seguir. Senti o veículo que vinha logo atrás atingir o meu e, em meio ao cheiro de combustível que vazava, uma chuva de disparos atingiu-nos de todos os lados. Abri a porta da caminhonete aos chutes e corri para dentro de uma casa. Um segundo depois o veículo irrompeu em chamas, e enquanto eu começava minha fuga por entre entre os escombros ele finalmente explodiu.

Nos primeiros quarteirões ainda podia ouvir os zumbidos e estampidos dos disparos com clareza, mas logo eles ficaram distantes e cessaram. Não sei por quanto tempo corri, mas parei apenas quando a noite caiu. Ainda tinha minha arma, pendurada na bandoleira, mas a mochila tinha se perdido junto com a caminhonete. Tinha apenas dois carregadores de munição, uma ração de viagem e uma pequena lanterna comigo, presos ao cinto. Subi ao segundo andar de um antigo sobrado e derrubei as escoras que mantinham a escada de pé. Passei ali aquela primeira noite em Bermil, assistindo de longe o fogo que consumia os veículos do Rosa Radioativa e atraia os Diabos como moscas. Chorando em silêncio passei a noite acordada, e aos primeiros sinais de claridade pulei para a rua e comecei a vagar pela cidade. Fazia muito tempo desde a última vez em que tinha ficado sozinha por minha própria conta. Já estava acostumada a ter outras pessoas por perto, para me ajudar e apoiar, e então, de uma hora para outra, estava completamente sozinha outra vez.

Por duas vezes tentei abater um Diabo durante a noite para que tivesse algo para comer, mas assim que um caia morto, os outros se amontoavam com ferocidade para devorar a carne magra. E então, três dias depois do ataque, com fome, cansada e sofrendo de hipotermia, cheguei a uma rua comprida tomada por prédios dos dois lados. De tão fraca, mal conseguia pensar, quanto mais andar, e tão logo entrei em uma casa a procura de abrigo para a noite, minhas forças me abandonaram e tudo ficou escuro. Quando acordei estava deitada em uma cama quente e confortável, podia sentir novamente os dedos dos pés e das mãos, e no ar havia um delicioso cheiro de cozido. Sabia que estava segura, mas também sabia que as coisas não seriam mais as mesmas a partir dali.

-Passan te salvou, assim como salvou a mim -concluí a história, enxugando uma lágrima que lhe escorria pelo rosto.

-Eu queria apenas esquecer essa história toda, Nuke. Sua chegada veio me trazer forças para esquecer a perda e deixar o que houve de lado -confessou Lisie, entre soluços. -Mas agora essa coisa toda volta à tona. Se não foram os Deuses que nos atacaram aquele dia... não sei quem pode ter sido.

-Ou o porquê.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

101. Caldo Quente

A noite foi longa. Dentre as mais longas que já tinha vivido até então. A fome apertava o estômago e me fazia desejar os pedaços de carne de rato seca que muitas vezes comi. Sem vestimentas adequadas, o frio entrava pela roupa e congelava meu corpo pouco a pouco. As horas se arrastaram agoniantes, e às primeiras luzes do amanhecer meu corpo tremia incontrolavelmente. Ouvi os soldados saírem para a rua e retomarem os reparos no blindado assim que o último uivo dos Diabos cessou. Tentei levantar, mas meus braços pareciam grudados em volta dos joelhos, que por sua vez congelaram um ao outro. Controlando os músculos e contendo a tremedeira me forcei a levantar e caminhar ao corredor. Com ainda mais esforço retirei a barricada de mesas e cadeiras do caminho e arrastei os pés até a escada.

Sem sequer lembrar de me preocupar com a presença de algum soldado, desci as escadas. Tamanho frio sentia, mal reparei nas marcas dos ganchos que haviam usado para acessar o primeiro andar. Me espremi pelo vão no topo de destroços que bloqueavam o acesso da escada e me estatelei no chão abaixo. Depois, literalmente, engatinhei rumo ao alçapão. Pensava em como fazer meu corpo sobreviver à queda pelo buraco do esconderijo, já que meus braços não aguentariam me descer pelos degraus da escada, quando o alçapão se abriu e um par de mãos me puxou para dentro. Quando me dei conta estava deitado em uma das camas do dormitório, coberto da cabeça aos pés com cobertores, enquanto Lisie me servia um caldo quente ralo, porém revigorante. Me lembro de ter apagado e acordado algumas vezes ao longo do dia, e em todas elas Lisie estava sentada ao lado da cama, massageando minhas mãos e pés.

Não me lembro quanto tempo levei para me recuperar completamente. Por dias ainda teria tremeliques esporádicos e calafrios, mas assim que recobrei de vez a consciência imediatamente comecei a falar, narrando o que havia visto. Lisie esboçou um sorriso, e colocando o indicador em meus lábios, me fez calar.

-Nós sabemos, Nuke. Vimos pelas câmeras. Tentamos te avisar, mas... -seus olhos se encheram de lágrimas e sua respiração pessou. -Eu devia ter contado antes, mas... achei que eles tinham desistido, que tinham ido embora. E eu só queria esquecer.

-Eles quem? Desistido do que? Esquecer o que? -perguntei, surpreso. Mas novamente Lisie me fez calar.

-Esses homens são os Deuses. Um exército que age, segundo eles, sob as ordens do Governo. Ou do que restou dele. Mas na verdade são gafanhotos, roubando e matando aqueles quem se metem em seu caminho.

-Eu sei, conheço eles. Eles... -comecei, mas uma lágrima caiu de seus olhos azuis e escorreu pelo rosto alvo como a neve, e minhas palavras se perderam em sua tristeza.

-Minha unidade do Rosa estava pela região -começou, com a voz engasgada e os lábios trêmulos -quando uma luz iluminou as nuvens, cruzou os céus e caiu sobre Bermil. A princípio achamos que fosse apenas a queda de algum avião que alguém havia tentado fazer voar, mas logo percebemos que o rastro deixado não era de um motor normal. Corremos para a cidade o mais rápido possível, em busca do ponto de impacto. Aeronaves são raríssimas hoje em dia, ainda mais voando, e por isso não podíamos ignorar o acontecimento.

-Mas então alguma coisa deu errada... -concluí.

Outra lágrima escorreu quando Lisie confirmou com a cabeça.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

100. Dormente

Uma descarga de adrenalina percorreu todo meu corpo, arrepiando os pelos do braço. Meu braço estremeceu e meus dedos se contraíram. Num esforço em conter o impulso, estiquei o polegar para a frente e evitei bem a tempo o disparo. Os soldados invadiram a sala segundos depois. Mal podia contá-los enquanto entravam pela porta, gritando ordens uns aos outros. O líder, um homem enorme e truculento, com o lado esquerdo do peito repleto de medalhas e insígnias, se aproximou do soldado imóvel. Eu ainda o mirava, mas sequer respirava, com medo de ser encontrado a poucos metros dali.

-SOLDADO! PELO AMOR DA PUTA QUE TE PARIU, MAS QUE BUCETA CANCEROSA QUE VOCÊ ACHA QUE ESTÁ FAZENDO? -gritou o homem, já sem a máscara, a plenos pulmões.

-Des-desculpe, senhor! E-eu... -gaguejou o soldado amedrontado.

-SENHOR. DESCULPE, SENHOR! -corrigiu o líder, fazendo as medalhas chacoalharem no uniforme.

-Sen-senhor. Des-desculpe senhor! E-eu...

-DESCULPA O CARALHO! SAIA DA MINHA FRENTE AGORA -e berrou ainda mais a última palavra- OU O PRÓXIMO DISPARO DESSA ARMA VAI SER NA SUA CABEÇA! VAMOS, SUMA!

-Senhor. Sim, senhor -concluiu o soldado, arrasado.

Cabisbaixo e ainda tremendo, o soldado saiu apressado. Os demais permaneceram imóveis, de armas em punho, voltados ao seu líder. Ele encarou cada um dos seus por alguns instantes, com raiva transbordando do rosto vermelho, colocou de volta a máscara e saiu sem dizer palavra. Sem jeito, os soldados o seguiram, sumindo na escuridão do corredor. Pensei em levantar, mas preferi aguentar as cãibras nas pernas e nos braços por mais algum tempo e esperei. Apenas quando os ouvi montando uma barricada com mesas e cadeiras para barrar o vento é que deixei o abrigo e saí de perto das janelas. Procurei um canto protegido e comecei a massagear meus pés, dormentes por causa do frio e do vento.

Demorou quase meia hora até que voltasse a sentir a ponta dos dedos dos pés. Com fome e frio, até meu cérebro começava a diminuir o ritmo. Eu podia ouvir as vozes abafadas dos soldados em salas do outro lado do andar, mas entender o que diziam era impossível. Tentei me manter focado, para que o sono não viesse. Se dormisse ali, sem uma fonte de calor ou proteção contra o vento, morreria congelado durante o sono sem ao menos perceber. Lembrei-me então da transmissão que o helicóptero havia feito e que o rádio do soldado tinha captado. Aumentei o volume do meu aparelho e comecei a ouvir, atento. Mas hoje, o que lembro de ter ouvido aquele dia, é apenas:

-Repito. Local da queda encontrado. Local da queda encontrado.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

99. Na Mira

Mal dava para ver o caminho, tão escuro estava. Acendi a lanterna, mas mantive sua luz apontada para baixo, para que seu facho não me traísse. Pouco me importei com os chutes e tropeções nas coisas que estavam quase invisíveis nos corredores escuros, queria apenas chegar ao alçapão no andar de baixo. Os soldados só poderiam ter se escondido na entrada do esconderijo, e ajudar Lisie e Passan era tudo que conseguia pensar. Corri o mais rápido que pude até a porta de emergência e já pensava no que fazer depois quando vi outros fachos de luz.

Subindo do térreo, pela escada externa, luzes de lanternas cortavam a escuridão e se projetavam para cima. Parei de correr de imediato, deslizando alguns centímetros na poeira e na neve. Abri os braços procurando equilíbrio, e assim como parei, voltei a correr no sentido oposto. Já não me importava esconder a luz, apenas fugir o mais rápido possível. Podia ouvir a voz dos soldados conversando entre si enquanto avançavam pelos degraus. E mal tive tempo de chegar à sala na fachada do prédio quando na outra ponta do corredor suas silhuetas apareceram à porta.

Um facho de luz iluminou todo o corredor e parte da sala onde eu estava. Alguém gritou uma pergunta, mas não houve resposta, e depois a luz se apagou. Voltei à janela de onde a pouco os tinha observado e esperei. Tinha esperanças de que continuassem subindo, a procura de um lugar para ficarem, mas não confiava em minha sorte. Conferi minha arma, deitei entre algumas mesas jogadas e mirei a porta. Meu pé direito estava para fora do prédio, pelo vão onde a janela que ia do chão ao teto estivera. Dali, eram pelo menos cinco metros de queda até a escadaria de entrada.

Como eu temia, a movimentação dos soldados continuou pelo andar. Os focos de luz iam e vinham, cruzando a porta de entrada. Não demorou mais que dois ou três minutos até que um deles entrasse para revistar a ampla sala onde eu estava. Acompanhei-o com a mira. Sabia que se dependesse deles atirariam primeiro e perguntariam depois. Então seria eu a atiraria sem hesitar. O homem havia tirado o capuz branco que cobria a cabeça, mas mantinha a máscara ocultando-lhe  a face. Sua respiração era ruidosa através do filtro de ar, seu ritmo lento e compassado dava calafrios ainda maiores que o vento gelado que entrava da rua. Mas mantive-me focado, expulsando da mente todos os pensamentos. E quando os passos puderam ser ouvidos logo adiante, coloquei o dedo no gatilho e prendi a respiração.

-Águia para Raposa, na escuta? -gritou o rádio, acompanhando o disparo.

domingo, 30 de janeiro de 2011

98. Escondidos

Desci até o primeiro andar do prédio o mais rápido que pude. Caminhei em completo silêncio corredores de escritórios arruinados até a fachada do prédio, de onde podia observar o blindado parado na rua, cinco ou seis metros abaixo. Os soldados que tentavam colocá-lo em funcionamento haviam interrompido o serviço e agora terminavam de recolher suas ferramentas. Os outros não podiam ser vistos, mas pelas vozes que ecoavam do hall de entrada pude perceber que haviam outros ali, esperando no topo da escadaria que subia da rua. Alguém gritava ordens, mas o vento forte e meu coração disparado abafavam as vozes e me impediam de entender com clareza o que planejavam. Estava óbvio, infelizmente, que não passariam a noite no blindado.

Os uivos e grunhidos dos diabos aumentavam rapidamente, a medida que todos deixavam suas tocas em busca de presas desavisadas pela cidade. Os soldados, por sua vez, pararam de falar subitamente. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar o desespero crescente naqueles homens com a aproximação de tais criaturas. Fiquei esperando, torcendo para que corressem ao blindado assim que os primeiros diabos entrassem pela porta e avançassem por sua carne, mas duvidava que fossem tão inexperientes a ponto de não conhecerem os perigos de se passar uma noite desprotegido nem Bermil. Aqueles não eram soldados de Amrak, com certeza, mas tampouco eram burros.

Logo os diabos vieram, às centenas, com seus dentes pontudos e sua pele esticada sobre os ossos. Saltavam e rosnavam, mordendo uns aos outros em um frenesi sanguinário. Muitos entraram no prédio desembestados, provavelmente procurando novos corpos para um banquete fácil, mas em poucos minutos todos tinham saido sem sucesso. Nem um único disparo foi dado, ou ao menos não pode ser ouvido, e isso só poderia significar que os diabos não haviam encontrado os soldados. Tentei me lembrar de um lugar onde aqueles homens pudessem ter se escondido, mas todas as portas do térreo haviam sido arrancadas muito tempo atrás, e não havia material nem tempo suficiente para que uma barreira fosse construída de modo a isolá-los em algum cômodo.

Ou eles haviam sumido, ou ainda estavam por ali em algum lugar. E quando esse lugar me veio à mente...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

97. Angústia

Recostado no parapeito, podia sentir meu coração bater forte no peito. Não fosse pelos óculos, meus olhos congelariam, tão abertos estavam, enquanto minha mente pensava em milhares de possibilidades ao mesmo tempo.

-Lobo para Águia -chiou o rádio, com uma voz desconhecida e diferente das anteriores. Para meu alívio. -Estamos retornando. Câmbio e desligo.

Tentei me tranquilizar, convencendo a mim mesmo de que Passan tinha suas câmeras espalhadas, e que provavelmente sabia antes mesmo de mim da presença dos soldados. Mas ainda me preocupava que pudessem empreender uma busca mais detalhada ao encontrar os vestígios dos dias anteriores no interior do prédio. Os Diabos tinham se refestelado com os corpos dos caçadores, mas em troca haviam deixado sangue espalhado por todo o andar térreo do lugar. Senti uma vontade súbita de descer as escadas e ajudar meus companheiros, mas algo dentro de mim dizia para esperar.

Ainda meio assustado levantei-me e olhei para baixo. Os dois soldados tinham voltado a caminhar pela rua, checando cada construção nos arredores, mas os que haviam entrado no prédio continuavam fora de vista. Corri então para o outro lado da cobertura e olhei para o antigo jardim que fazia fundos para outros prédios. Temia que pudessem subir pelas escadas de emergência e vasculhar o prédio todo. E apesar de o primeiro lance de escadas ter sido bloqueado com entulhos quase duas décadas atrás, ainda havia no topo uma pequena passagem entre os blocos de concreto e tijolo, pela qual eu me espremia para subir aos outros andares. Duvidava que eles subissem, mesmo que não houvesse a pilha de escombros, mas não saber onde estavam era angustiante.

Com o passar das horas a angústia apenas aumentou. Os soldados tinham se concentrado, aparentemente, na entrada do prédio, deixando apenas dois dos seus na rua a cuidar dos reparos do blindado. Não vi comoção entre eles, e deduzi que felizmente não haviam encontrado Passan e Lisie. Em compensação o frio tinha aumentado muito durante a tarde, o vento parecia cortar minhas bochechas desprotegidas, e o pequeno lanche que eu havia levado há muito acabara. A noite se aproximou lentamente, escurecendo as nuvens e enchendo as ruínas de Bermil com sombras ameaçadoras. E então, quando a noite chegou e os uivos dos Diabos começaram, o medo espantou a angústia e se alojou em mim com unhas e dentes.

Ou os soldados deixavam o prédio, ou a noite seria longa. Muito longa.

domingo, 9 de janeiro de 2011

96. Raposa Enguiçada

O som do blindado vinha da frente do prédio. Levantei e já começava a correr em direção ao parapeito quando o barulho de um segundo motor se sobressaiu ao vento. Em um susto me joguei de volta ao esconderijo e observei o helicóptero passar rasante, quase ensurdecedor. Torci para que não tivessem me visto e me encolhi de medo apenas de pensar na possibilidade.

-Águia para Raposa. Estamos na escuta. Temos autonomia para apenas mais uma passagem, e então retornaremos. Câmbio -gritou o rádio, ainda no volume máximo, fazendo-me arregalar os olhos e disparar o coração.

Com o coração martelando no peito, girei o botão do volume até quase deixá-lo no mudo. Era impossível que alguém ouvisse o som do rádio, mesmo em um dia sem vento, mas eu não estava para me arriscar. Esperei pacientemente, enquanto tentava relaxar e por as idéias em ordem, que o helicóptero fizesse a volta e passasse por ali novamente. Mas logo perceberia que o helicóptero seria o menor dos problemas. Tão logo a aeronave passou em rasante pela região, o rádio captou nova transmissão.

-Raposa para Águia. Não temos condições de retornar, precisamos parar e reparar o veículo. Câmbio e desligo.

Silêncio no rádio. Esperei alguns segundos mais e deixei o esconderijo. Consegui ver o ponto branco se afastar ao longe, seguindo para o sul pelo rumo do rio. Me aproximei então do parapeito e olhei para baixo. O blindado estava parado, com uma das lagartas sobre a calçada, bem a frente da escadaria de entrada do prédio.  Dois soldados vestindo roupas camufladas brancas andavam pela rua, de armas em punho, enquanto outros dois subiam os degraus. Meu sangue congelou, e o coração quase parou de bater. Lisie e Passan estavam para serem descobertos! Peguei o rádio, coloquei na frequência de Passan e apertei o botão para falar. De súbito percebi a enorme burrada. Soltei o botão e de olhos fechados desejei ardentemente que os dois não tivessem ouvido a tentativa de chamada.

Mas instantes depois o rádio chiou quando uma nova conexão foi estabelecida. Imediatamente os soldados que estavam na rua estacaram, olhando ao redor.

domingo, 2 de janeiro de 2011

95. Raposa Blindada

Subi os lances de escada até o último andar o mais rápido que pude. Mesmo tendo um preparo físico invejável, sugava o ar gelado em grandes golfadas ao atingir a cobertura do prédio, exausto. Quando finalmente consegui me recompor e olhar em volta já não havia nada a se ver. O helicóptero tinha desaparecido de vista, camuflado nos infinitos tons de cinza e branco que cobriam a cidade e nublavam o céu. Me concentrei, tentando ouvir o barulho do motor, mas o vento era forte demais ali em cima.

A aparição misteriosa daquele helicóptero deixou rapidamente meus pensamentos ao contemplar Bermil. Daquele lugar privilegiado praticamente toda a antiga metrópole podia ser avistada. Colinas delimitavam o que foi a área urbana a leste, ao sul podia-se divisar os restos agonizantes de um rio assoreado pelos escombros da cidade, ao norte e oeste uma planície começava pouco antes do horizonte, indicando onde a área rural da região um dia estivera. Nada se movia na paisagem. Nada era colorido até onde a vista podia alcançar. E ainda assim a visão era maravilhosa. Levei muitos minutos admirando cada detalhe, tentando imaginar como seria morar em um lugar junto a milhares de outras pessoas. Aquilo tudo era desconhecido para mim, e para sempre continuaria a ser.

Deixei os sonhos de lado e voltei a me preocupar com o helicóptero. Aquela era a primeira aeronave que eu via efetivamente voando. Todas as que eu já havia visto estavam destroçadas, reduzidas a pilhas de metal enferrujado, ou sem combustível suficiente para fazê-las funcionar. Ver em funcionamento, e sobrevoando uma área urbana completamente arrasada por bombardeiros duas décadas atrás, era algo altamente incomum -até mesmo para um mundo como esse. Desejei que o helicóptero estivesse apenas de passagem, mas no fundo sabia que não estava. Eu podia senti-lo fazendo a volta ao longe, para novamente sobrevoar a cidade. Peguei o rádio, pensando em alertar Passan e Lisie, mas temi que, do mesmo modo como pude ouvir a chamada, quem quer que fosse também poderia me ouvir. Então me escondi o melhor que pude sob uma cobertura no telhado e esperei.

Poucos minutos se passaram até o barulho de motor pudesse ser novamente ouvido por entre as rajadas de vento. Mas dessa vez vinha de baixo, da rua.

-Raposa para Águia, Raposa para Águia. Na escuta?

O som das lagartas de um blindado se arrastando pelo asfalto logo se tornou inconfundível.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

94. Águia de Ferro

Joguei-me para o lado com uma cambalhota, ficando de joelhos, agora de costas para onde eu olhava e de frente para o corredor por onde entrei. Alguém apontando uma arma teria disparado no vazio, e antes que pudesse mirar novamente estaria alvejado. Poucas coisas boas me lembro de Amrak e seu exército, e esse movimento é uma delas. Mas felizmente não havia ninguém, e o susto não passou de imaginação. Ainda assim, decidi deixar aquele lugar sombrio e abandonado, vigiado pelos fantasmas do passado. Peguei o rádio e avisei Passan e Lisie que não havia problema e que ira explorar os próximos andares.

Eu já havia explorado até o 10o andar, mesmo que apenas rapidamente, ao procurar pelo leite do diabinho. Mas ainda havia outros 30 ou 35 andares a explorar. Milhares de pessoas trabalhavam naquele prédio antes da Explosão, e as coisas deixadas para trás na pressa de salvarem suas vidas são como ouro para sobreviventes como eu. Ainda que Passan dispusesse de praticamente tudo o que eu poderia querer, meu instinto de sobrevivente me forçava a explorar cada canto por onde eu passava em busca de qualquer coisa útil. E aquele prédio, um dos poucos a não ter sido saqueado -provavelmente em todo o mundo-, era mais que uma mina de ouro, era um paraíso.

Segui pelo corredor, rumo à saída de emergência. Com alguns chutes e encontrões consegui desemperrar a porta, aumentando consideravelmente a corrente de ar que circulava pelo andar. Cruzei os braços e apertei o casaco no pescoço ao sentir o frio assassino que soprava em Bermil. Mesmo acostumado e com óculos especiais, semi-cerrei os olhos à claridade de toda aquela neve do lado de fora. Subi pelas escadas externas até o próximo andar e parei diante da porta fechada. Senti uma enorme preguiça em forçar mais uma porta a abrir, e a julgar pelo que pude ver através da janela ao lado da porta, o interior estava intacto às intempéries. Quebrar o vidro seria expor o interior ao vento e à neve depois de tantos anos ileso.

Tomei alguns instantes para ponderar sobre como agir. Pensei em disparar contra a trava da porta, ou usar um pé-de-cabra, mas ambas as alternativas arruinariam o mecanismo, que não mais manteria a porta fechada depois que eu saísse. Sem ter outras idéias, decidi perguntar a Passan por novas, e peguei novamente o rádio. Antes de apertar o botão para chamá-lo percebi um aviso piscando na tela, indicando que o scan do aparelho tinha detectado a presença de outra freqüência ativa em seu alcance. Reconfigurei o receptor para aquela faixa de freqüência, mas não havia nada. Aumentei o volume, mas sequer a estática podia ser ouvida. O sinal estava limpo, perfeito, mas não transmitia nada. Cerrei o cenho, pensativo.

Foi então que comecei a ouvir um barulho ao longe, aumentando gradualmente. Parecia um motor, mas vinha de cima. Subitamente o rádio berrou:

-Águia em sobrevôo no setor leste. Raposa, na escuta? Câmbio.

O helicóptero passou rasante na cobertura do prédio, jogando uma tempestade de neve para baixo.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

93. Décimo Primeiro Andar

Subi pela escada de incêndio. Olhei pela janela e vi o corpanzil de um dos enormes ratos que eu havia chutado no dia anterior, cuja barrigada havia sido parcialmente devorada e espalhada pelo corredor. Logo todo ele teria sido comido pelos de sua espécie. Um vento forte cortava Bermil naquela manhã, fazendo meus ossos congelarem, depois de me acostumar com o calor aconchegante do esconderijo de Passan. Decidi deixar que os ratos se acabassem e subi outro lance de escada. A porta estava emperrada, enferrujada com os anos, mas a janela do corredor tinha tido seu vidro quebrado. Com um pouco de cuidado consegui entrar. 

A enorme sala para a qual o corredor de emergência se abriu ocupava quase toda a extensão daquele andar. A área estava dividida em incontáveis micro-salas, separadas por paredes de madeira prensada de um metro e meio de altura. Os computadores que não haviam sido saqueados estavam arruinados pelo chão, junto a um mar de folhas de papel e outros materiais de escritório. Algumas das janelas, que iam do chão ao teto, estavam quebradas, fazendo uma corrente de vento constante cortar os corredores e erguer redemoinhos de papel e neve pelo ar. De arma em punho, entrei esperando que algo ou alguém pulasse sobre mim, mas quando senti o vento frio cortar meu rosto relaxei um pouco. Ali não era um bom lugar para um ser vivo comum se abrigar, e a julgar pela força do vento e pela bagunça espalhada pelo chão, bem como pelas quantidades enormes de neve acumuladas em cada lugar possível, nada nem ninguém vivia ali por muitos anos. Ainda assim não abaixei a arma. 

Comecei a circular pelos corredores que separavam as baias onde antigamente pessoas trabalharam. Me senti como se andando pelas lápides de um cemitério, onde as memórias daqueles que um dia estiveram ali  pairavam pelo ar, intocadas pelo vento que soprava feroz e parecia lhes dar voz, como fantasmas atormentados. Eu quase podia ver as pessoas andando apressadas, de um lado para o outro, em seu último dia naquele lugar, completamente alheias ao que lhes estaria reservado para o dia seguinte. Imaginei os olhos inchados de quem chora sem parar, as mãos sujas de sangue e poeira, e o sentimento de desespero e medo, não da morte, mas da solidão. Quando o véu da realidade finalmente ruiu, duvido que alguém estivesse preparado.

Agachei e peguei um porta-retratos no chão. Uma moça bonita de cabelos castanhos segurava uma menininha nos braços, sorrindo alegres em uma praia ensolarada.

-Estaria eu preparado? -e na hora não soube se disse num sussurro, ou se alguém mais dissera.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

92. Conservantes

Recostei-me na parede em frente à porta da antiga creche. Fiquei alguns instantes pensando, enquanto recuperava o fôlego, no começo daquele covil de roedores. Pouco depois de todas as pessoas abandonarem o prédio -ou antes, provavelmente - os ratos começaram a se alimentar dos alimentos armazenados na despensa. Sem mulheres histéricas dando chiliques ao vê-los, eles se reproduziram livremente, provavelmente devorando uns aos outros na falta de alimento melhor, até atingirem tamanhos assustadores e números inimagináveis. Então me surgiu um pensamento que me fez ter calafrios e arregalar um pouco os olhos, tirando completamente de minha mente o som que viera do andar de cima. Se os cachorros e ratos daquela cidade haviam crescido e se tornado máquinas de matar, o que seria das baratas?

Antes que as suspeitas aparecessem se arrastando em minha frente em forma de insetos cascudos do tamanho de bolas de futebol, segui minha busca. Se antes eu havia levado vinte minutos subindo pelas escadas de incêndio até o 10o andar, e outros cinco dentro da colônia de ratos, levei quase duas horas explorando cada salinha de café e copa em busca de algo que já não houvesse virado fezes de algum roedor. Finalmente, no 3o andar, encontrei dentro de um armarinho de inóx o objetivo de tanto trabalho. A lata de leite-em-pó estava intacta, protegida dos dentes afiados dos ratos pelo inóx e pelo aço inoxidável, e de microorganismos pelos inúmeros conservantes criados pelas indústrias alimentícias -e se tem algo que eu agradeço até hoje por terem inventado são os conservantes de alimento, que mantém a comida boa... isto é, comestível, indefinidamente!

Levei a lata de volta a Lisie junto de uma mamadeira que encontrei pelo chão. Fiquei observando-a alimentar o pequeno diabo, tentando ignorar o aviso que sentia dentro de mim dizendo que aquilo não era boa idéia. Tentei mudar de pensamentos repassando pela mente o surgimento daquela colônia de ratos, imaginando se eles utilizavam os encanamentos para se locomover e de onde conseguiam àgua para tantos indivíduos, até que subitamente me lembrei do barulho que tinha ouvido vindo do 11o andar. Levantei num pulo, com os pêlos arrepiando na nuca. Lisie e Passan me olharam interrogativamente. Não queria alarmá-los, mas não conseguia pensar em nenhuma desculpa decente para me entupir de armas e subir novamente os andares do prédio. Então disse a verdade:

-Acho que ouvi alguma coisa vindo do 11o andar enquanto procurava pelo leite. Vou voltar lá.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

91. Leite-em-pó

O primeiro que apareceu na minha frente cruzou a pequena sala de entrada voando e por pouco não saiu pela janela. Os ratos que haviam tomado aquele lugar eram maiores do que qualquer outro que eu já tivesse visto. A cada chute dois ou três roedores voavam de encontro às paredes. Eram centenas, talvez milhares deles. Corriam e pulavam por entre os brinquedos empoeirados, como se brincassem com eles. Havia fezes em toda parte e o ar estava impregnado com um cheiro medonho de carniça e mofo. Carcaças de ratos e outros restos mortais se espalhavam pelos cantos em amontoados de quase meio metro de altura, de onde eles entravam e saiam sem parar.

Comecei a cruzar a enorme sala, onde provavelmente as crianças passavam boa parte de seu tempo brincando com as monitoras enquanto seus pais trabalhavam em algum escritório pelo prédio, mas havia um exército de roedores no caminho. Na parede oposta havia uma porta de onde se podia ver algumas mesas, e imaginei que a cozinha e a despensa deveriam ser naquela direção. Com sorte encontraria uma lata ou duas de leite-em-pó, que serviriam de alimento ao diabinho. Mas infelizmente não fui muito longe. Antes de chegar à metade da sala os pequenos soldados dentados, que até então tinham ignorado minhas investidas violentas contra alguns de seus familiares, pareceram acordar para o perigo. Como se fossem um, mostraram os dentes e se ergueram nas patas traseiras, guinchando em desafio. Me imobilizei de imediato, tentando não demonstrar ameaça, mas não houve sequer tempo de pensar em como agir. Do tamanho de um gato, vindo do banheiro, surgiu o que provavelmente era o rei daqueles ratos. Com dentes tortos e amarelos ele avançou com o corpanzil pelo meio de suas fileiras de guerreiros roedores, guinchando estridente.

Tive tempo apenas de tapar as orelhas e me encolher enquanto corria para o corredor, em meio à uma chuva de ratos kamikazes, que se atiravam ao ar das prateleiras de brinquedo tentando me atingir. Fechei a porta atrás de mim com um chute, e com outros dois dei cabo dos roedores que tinham conseguido sair da creche, jogando-os para longe e fazendo-os correr.

Com a respiração ofegante já estava pensando em uma desculpa para dar a Lisie quando um barulho soou sobre minha cabeça. Abaixei-me por reflexo, e de olhos semi-cerrados olhei para cima. Só então percebi que o som viera do andar de cima. Havia alguém lá.

sábado, 30 de outubro de 2010

90. Diabinho

Dormi muito. Muito e muito bem. Pela primeira vez em anos eu tinha uma cama só minha, com lençóis limpos, travesseiros e cobertores. A preocupação constante que havia em dormir em um buraco na neve ou em uma casa abandonada não existia, e isso era quase tão reconfortante - se não mais - do que uma boa cama. Quando finalmente acordei minha barriga roncava tão alto que talvez ela mesma tenha me acordado. Deixei um dos muitos quartos com beliches que havia no abrigo e fui a procura de Lisie e Passan. Esperava encontrá-los na cozinha, com alguma coisa gostosa pronta para eu comer, mas os encontrei no hall de entrada.

-Bom... dia? - arrisquei, apesar de não fazia idéia de que horas eram.

-Boa noite! - corrigiu Passan, sentado à pequena mesa de centro.

-Dormiu, hein! - falou Lisie sorrindo, e então se aproximou de mim trazendo nas mãos uma caixa de sapatos. -Veja! Saí essa manhã para explorar o prédio e encontrei isto!

Uma pequena bolota vermelho-acinzentada coberta de minúsculos pelos brancos inchava e murchava ritimadamente em meio a um amontoado de roupas velhas. Demorei um tempo para reconhecer do que se tratava, e as exclamações de "mas não é uma graça?!" e "é tão fofinho!" de Lisie não ajudavam muito. Por fim, depois que um focinho vermelho apareceu, seguido de um ganido agudo, percebi que aquilo era um filhote de Diabo de Bermil - ou um Diabinho, como foi apelidado pela ala feminina do abrigo. Fiquei surpreso, claro, mas fiquei ainda mais ao ver a animação de Passan e Lisie com o pequeno animal.


-Alguém aí lembra que essa coisinha, daqui não muito tempo, vai virar uma moedor de carne ambulante?

-Ah, Nuke, pára com isso! Olha pra ele!

Desisti de argumentar, dei um sorriso para eles e fui pra cozinha encher a pança. Duas latas de feijão e uma de legumes depois eles ainda estavam lá, admirando o choro baixinho da criatura. Mas antes tivesse continuado a comer. Mal cheguei e fui obrigado a fazer algo que não gostaria de fazer por um bom tempo: sair do abrigo.

-Ele deve estar com fome, não para de chorar e se chacoalhar pra cá e pra lá. Deve estar procurando a mamãe - falou Lisie, com voz melosa.

-Porque não o deixaram com a mãe? - mas já imaginava a resposta.

-Ela não resistiu. Era aquela que os caçadores seguiam. Deu a luz à três filhotinhos, mas só esse ainda estava vivo quando os encontrei.

-Você saiu lá fora sem saber se o Diabo estava vivo ou não? - ergui as sobrancelhas, meio surpreso meio preocupado.

-Relaxa, Nuke. Eu sei me cuidar, lembra? - e ela sabia mesmo, mas era uma coisa que eu viria a me esquecer com facilidade daquele tempo em diante. -De qualquer forma, é sua vez de se arriscar um tiquinho por nós. Passan me disse que no décimo andar ficava a creche do prédio. Será que você não poderia...

-Lá vem...! - interrompi.

-... buscar uma lata de leite em pó? - continuou ela, fingindo não me ouvir. -Assim podemos dar de comer ao pobrezinho.

-No meio da noite?!

Eu não podia negar. Não àquele olhar pidão que só as mulheres sabem fazer.

E mesmo que soubesse que o décimo andar ainda estava em uso como creche, não teria negado.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

89. Ganido

Primeiro desejei com todas as minhas forças ter uma lanterna. Depois me amaldiçoei por ter deixado a segurança do abrigo sem o mínimo de equipamentos para tal - está certo que eu não imaginava correr atrás de um homem de mais de 40 anos pelas ruas de uma cidade em ruínas pouco antes do anoitecer, mas foi uma tremenda burrice que não cometi muitas vezes mais em minha vida. A cada segundo que se passava o corredor escurecia mais e mais, e mesmo meus olhos treinados logo tornaram-se tão inúteis quanto os de um cego. Fiquei imóvel, tentando ouvir qualquer sinal de que o perigo avançasse. Mas no fundo sabia que, se ele viesse, não haveria tempo de reação.

Aquele Diabo já tinha se mostrado capaz de atacar em uma fração de segundo com uma ferocidade aparentemente incompatível com seu corpo franzino, e isso obviamente não saía de minha cabeça. Ainda assim não tinha perdido toda a esperança de sobreviver. O animal ainda não tinha atacado, e fora o movimento e o ganido iniciais, não houve outro sinal de vida por segundos que pareceram horas. Se ele não havia atacado ainda, então talvez não atacasse. E, torcendo para que eu estivesse certo, dei um passo atrás. Não houve reação. Outro passo. Nada novamente. Três passos seguidos, e finalmente um som em resposta. Meus sentidos se aguçaram, meus músculos se retesaram, mas não foi o Diabo que se mostrou.

Um ponto brilhante surgiu no final do corredor. Um facho de luz cortou a escuridão densa, fazendo-me apertar os olhos com a claridade repentina. Eu continuava praticamente cego, mas tinha certeza de quem segurava aquela lanterna e respirei profundamente aliviado. Sorri envergonhado quando ela se aproximou e seus olhos azuis se iluminaram saindo da escuridão. Tentei disfarçar, mas meu embaraço era mais que evidente. Lisie ainda disse alguma coisa tranquilizadora enquanto seguíamos para o alçapão, mas não cheguei a prestar atenção, a adrenalina deixava meu corpo e um alívio extremo dominava minha mente.

-Onde está o Diabo? -perguntei quando passamos pelos corpos dos caçadores.

-Está bem ali - falou Lisie, apontando o facho de luz para os escombros na escada. Uma massa avermelhada de sangue e poeira estava amontoada entre grandes blocos de concreto. -Vimos pelas câmeras quando ele se arrastou para aquele canto. Mal se moveu desde então. Deve estar pra morrer.

Eu já descia a escada do alçapão quando um ganido muito baixo e agudo veio dos escombros. Não era o Diabo.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

88. Necessário

Eu não era um matador. Menos ainda um assassino. Mas assim eu me senti minutos depois de deixar o esconderijo de Passan. O homem ainda estrebuchava no chão, sua barriga aberta sorvendo sangue no meio da rua, quando virei as costas e comecei a correr de volta ao esconderijo. 

Demorei longas noites para esquecer aqueles olhos. Quando gritei para que parasse, o homem virou em minha direção com olhos de fúria, arma em punho e dedo no gatilho. Um segundo - e três tiros na barriga - depois, seus olhos transbordaram medo e desespero, enquanto sua vida se esvaia pela poeira da rua. Fiquei aturdido, preso por aquele olhar. Era incrível, e até fascinante, ver quanto medo um homem podia sentir, e o quanto esse medo se tornava visível à beira da morte. Mas o fascínio, naquele momento, durou apenas isso, um momento. E então, enquanto corria de volta, tentei me convencer de que a morte daquele homem não tinha sido apenas um assassinato, mas uma morte necessária - se é que existem, realmente, mortes necessárias.

Corri o mais rápido que podia. A caçada tinha acabado e a noite avançava rápido pelo céu nublado. Não tinha percebido, mas corri por muito mais quadras do que esperava quando persegui o homem. E agora temia não voltar ao esconderijo antes que a noite estendesse seus reinos pela cidade e os Diabos dominassem as ruas com seus dentes mortíferos. Saltei por pilhas de escombros e carcaças de carros sem raciocinar, usando apenas o instinto. E, quando as sombras dos prédios começaram a se fundir em uma escuridão crescente, uivos e latidos distantes ecoaram pelas ruas. Subi a escadaria na entrada do prédio com as pernas bambas e a garganta ardendo. 

Eu só carregava minha arma naquele dia, mas mesmo ela parecia pesar muitos quilos mais que o normal depois daquela corrida. Levei alguns segundos para me recompor, estatelado no meio do saguão de entrada, mas a escuridão e os sons da noite me ajudaram na decisão de levantar. Praticamente me arrastei até o corredor, imaginando Lisie e Passan me olhando pelas câmeras de segurança. Queria apenas entrar pelo alçapão e me deitar no chão do esconderijo até que meus músculos se recuperassem um pouco. Mas então eles se retesaram de novo. Ainda que estivesse muito escuro e eu muito cansado, meus olhos não tinham perdido sua sensibilidade para o perigo, e vi quando alguma coisa se moveu no final do corredor.

Respiração presa na garganta. Um ganido baixinho, quase inaudível. E eu já sabia qual era meu inimigo.