Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 21 de março de 2011

105. Estacionamento

Eu tentava colocar corretamente o telescópio em sua base, descontando minha frustração em grandes colheradas de sopa, quando Passan veio com a notícia: outro passeio no frio assassino. Dei uma risada meio irônica, aceitando o fardo, e pus-me a arrumar a mochila às costas. Lisie também pegou a sua e deixamos a segurança e o calor do abrigo. Dessa vez, ao menos, sabíamos o que procurar. A emissora de rádio que um dia operara através daquela antena provavelmente tinha peças de reposição em algum lugar, bastava encontrá-las. E depois de Passan vasculhar em alguns arquivos antigos conseguimos ter uma idéia melhor de quais andares poderiam contê-las.

Nos despedimos com um longo abraço e desejos de sorte. Lisie seguiu rumo aos andares superiores, em busca das peças diretamente na antiga rádio. Já eu me aventurei por quatro ou cinco andares de estacionamentos subterrâneos, em busca de algum depósito, armazém ou coisa parecida. Levávamos um rádio cada, mas o meu deixou de funcionar pouco depois de descer a escada para o primeiro subsolo. Não me importei na hora, já que estava acostumado a estar sozinho e em lugares escuros, mas em pouco tempo comecei a me sentir desconfortável lá em baixo. Apenas minha lanterna cortava a escuridão e meus passos quebravam o silêncio sepulcral. E apesar de haver pouca ou nenhuma circulação de ar, o lugar era tão ou mais frio que o lado de fora do prédio. O ambiente era extremamente pesado e sombrio, enquanto o ar parecia já ter sido respirado completamente incontáveis vezes. Pra finalizar, um cheiro de podridão e mofo impregnava o nariz e fazia doer minha cabeça. 

Acelerei o passo, decidido a encontrar logo onde as empresas e lojas do prédio mantinham seus depósitos. Andava próximo à parede, em busca de alguma indicação que me dissesse para onde seguir, mas todas as placas e pinturas estavam arruinadas pela água que escorria lentamente pelas paredes, tornando o lugar um enorme labirinto de colunas e veículos abandonados. Destes últimos havia muitos, de todos os tipos e tamanhos.  Alguns estavam batidos contra paredes e postes, outros tinham sua lataria e para brisas alvejados, com marcas escuras de sangue salpicadas no vidro e no chão, vários haviam ardido em chamas até restar apenas a carcaça, enquanto uns poucos pareciam intocados, a não ser pela umidade e pelo tempo. Em nenhum dos que me desviei pelo caminho havia corpo ou vestígio humano além de sangue seco e objetos abandonados. Se alguém havia morrido ali, e estava muito claro de ter ocorrido, estranhamente não havia mais nada para contar a história.

Finalmente, depois de andar a esmo na imensidão escura por quase meia hora, encontrei a porta do elevador de serviço. Perto dali, grandes portas de grade se espalhavam igualmente pela parede. A maioria ainda tinha o símbolo da empresa dona do depósito pintado no metal, o que facilitou muito a busca pela rádio Digital Global, com seu logotipo de uma antena parabólica com desenhos de continentes. Houve, anos antes, cadeados enormes mantendo trancadas as portas, mas todos haviam sido arrombados e os interiores dos depósitos saqueados. O da rádio tinha sua porta aberta apenas parcialmente, e seu interior estava quase tão arrasado quanto as ruas de Bermil. Peças eletrônicas, cabos e equipamentos estavam espalhados pelo chão num caos completo. Pela quantidade de coisas, eu sabia que provavelmente todas as peças de que precisávamos estariam ali, mas encontrá-las já seria trabalhoso o bastante se tudo estivesse organizado, naquele estado então seria praticamente impossível. Provavelmente teria resistido a sair do abrigo se soubesse com antecedência do que me aguardava, mas estando ali, só conseguia pensar em encontrar as peças logo e deixar aquele lugar asqueroso e fétido. 

Ainda faltava pouco mais da metade das peças a ser encontrada quando, como se meus sentidos já estivessem acostumados a coisas estranhas acontecendo perto de mim, olhei para trás, para a escuridão que me cercava. Um barulho súbito e abafado ecoou pela imensidão vazia do estacionamento um instante depois.

Um comentário:

Unknown disse...

muito bom este capitulo