Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

domingo, 31 de janeiro de 2010

74. Melhor Amigo do Homem

De cada fenda, vão ou buraco uma sombra se ergueu. Eram centenas, talvez milhares. Pareciam rastejar na poeira e na neve, por entre os destroços da cidade. Se espalharam pelas ruas, farejando e fuçando por todo lado. Aqui e ali um rato podia ser ouvido tentando correr por sua vida, mas logo uma onda de sombras se mexia e os guinchos do roedor davam lugar ao som de rosnados e ganidos, num emaranhado de corpos lutando pela carne fresca. As brigas e disputas duraram por uma ou duas horas, e só pararam quando um uivo cortou a escuridão. Prank e eu nos encolhemos de súbito, atordoados pela melancolia que se abateu sobre a noite. Não sabíamos de onde vinha, mas era como se todas as mulheres e crianças que morreram naquela cidade chorassem ao mesmo tempo, criando um lamento único e devastador para quem ouvisse.

-Veja, eles estão se amontoando ali -falou Prank, apontando para uma pilha de escombros quase no final da rua.

Com o binóculos podíamos ver claramente as criaturas se reunindo em volta dos restos de um prédio. O uivo ficou ainda mais forte e detrás dos escombros surgiu um enorme animal. Tinha metade da altura de um homem, e provavelmente seria muito maior que um ao ficar sobre as patas traseiras. Seu pelo era curto, sua pele parecia esticada demais sobre o esqueleto e os músculos, suas orelhas eram pontudas e seu rabo era quase tão grande quanto o corpo.

-Esse deve ser o líder da matilha, com certeza -disse Prank, num sussurro quase inaudível.

-Mas o que eles são, afinal?

-Eles já foram um dia o melhor amigo do homem.

-Cães?

-Quando seus donos morreram ou fugiram por causa da guerra, só lhes restou uma opção para sobreviverem: instinto. Aqueles que não sucumbiram pela fome, doenças ou frio, reproduziram-se e tornaram-se no que você vê hoje. Devem ter se misturado com os lobos, e provavelmente são mais fortes e ferozes que eles. Verdadeiras máquinas de matar sobre quatro patas. Podem farejar comida à grande distância. Com certeza sabem que estamos aqui.

Ecoei essas últimas palavras de Prank em minha mente, enquanto reparava que várias daquelas criaturas miravam seus olhares para nossa direção de quando em quando. Eles definitivamente sabiam que estávamos ali. Não havia como eles subirem até nós, a não ser que fossem capazes de saltar mais de quatro metros de altura, mas ainda assim eu não me sentia plenamente seguro. Conferi minha arma e deixei-a em punho. Prank me olhou de soslaio. Pensei que fosse rir de mim, mas então engatilhou a própria arma e deixou-a também à postos. Como se pressentissem nossos temores as criaturas se espalharam novamente pela escuridão num piscar de olhos. E num jogo de gato e rato, apareciam e desapareciam nas sombras. Minutos de tensão culminaram em fungadas e rosnados logo abaixo da janela que escolhemos para fazer vigília.

-Eles sabem que estamos aqui. Estão tramando alguma -sussurrei desconfiado, tentando não deixar o medo transparecer.

-Querem nos assustar, estão brincando conosco. São criaturas inteligentes, mestres da sobrevivência. -Prank não se preocupou em esconder o medo, mas pareceu confiante de que os cães -ou o que quer que fossem- não poderiam nos alcançar ali.

De repente um silêncio tomou conta da noite. Até mesmo a brisa que soprava constante por entre as ruínas da cidade tinha prendido a respiração.

-Que Deus tenha piedade de nós... -ouvi Prank murmurar, fazendo o sinal da cruz.

Nenhum comentário: