Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 30 de março de 2009

35. Carteira de Motorista

Aquela manhã acordou particularmente fria e desanimadora. Uma densa camada de núvens continuava, como em todos os dias de minha vida, escondendo o sol. O vento cantava melancólico como sempre, e com ele vinha o inconfundível cheiro dos lobos que viviam vagando pelas colinas. Eu achava que carros eram apenas bonitos, mas que todo o resto que diziam sobre eles, principalmente vindo de homens com alto teor de álcool no sangue, era besteira. Mas eu estava enganado. Muito enganado.

A viajem não deveria levar mais que algumas horas. Pelo menos não vinte anos antes. Mas naqueles tempos mal se podia diferenciar o que um dia foi uma estrada do que sempre foi chão, e vencer 300 km era uma marca razoávelmente grande. Thompson dirigiu os primeiros 100 km, sempre me dando dicas de direção e segurança. Logo atrás de nós seguia uma caminhonete com outros quatro homens, quase tão jovens quanto eu. Eles deveriam ter voltado depois de algumas horas, mas fizeram questão de passar a primeira noite conosco e voltar ao amanhecer para Tradeport. E assim fizemos.

A noite foi longa. Uma tempestade de neve chacoalhou os carros horas a fio, impedindo de nos recuperarmos das várias horas trancafiados e apertados em uma lata com janelas. Mesmo assim dormi bastante, afinal, um banco acolchoado de carro sempre será melhor que uma cela úmida e fria ou um saco de dormir surrado. Quando acordamos todos tínhamos olheiras enormes. Anne, que não tinha dito muito durante toda a viajem, e havia apenas olhado o horizonte pensativa, parecia a mais animada de todos nós, e forçou todos a se abraçarem e se despedirem com alegria e entusiasmo. Mas só de pensar de desatolar os carros da grande quantidade de neve que havía acumulado, a animação contagiante havia passado rapidamente.

-Mas que droga. Devíamos explodir essa neve ao invés de cavá-la! - Dizia Anne, a cada vez que erguia uma pá de neve a jogava para trás. -Onde eu estava com a cabeça de não deixar meu tio dar a vocês o lança-chamas que ele prometeu?


-Você o que? -Falei sem gaguejar. E então continuei, sem jeito. -Ele ia mesmo nos dar um lança-chamas?

-Claro que não! Daaaã! -Zombou ela, iluminando o rosto com um sorriso inesquecível.


Eu tinha vergonha de conversar com Anne quando Thompson estava por perto. Não porque ele pudesse ouvir, mas porque ele constantemente me fazia caretas e dava tapas em minhas costas para que eu falasse com ela. E isso apenas aumentava mais minha timidez. Eu poderia ser fanfarrão com homens armados e maiores que eu, mas com mulheres dificilmente tinha tido chances de conversar, e quaisquer duas palavras saiam engasgadas. E depois daquela zombaria, já esperava que Thompson aparecesse de lugar nenhum e fizesse mais chacota de mim. Mas não fez. Ao invés de disso pudemos ouvir apenas seus gritos:

-Corram, seus desgraçados! Corram! - berrava Thompson, enquanto corria colina abaixo desenfreadamente. -Os Escravizadores estão chegando!

A alguns metros de nós os homens que nos acompanhavam empunharam suas armas e entraram no carro, gritando para que saíssemos de lá.

Saímos. E nos instantes seguintes tirei minha carteira de motorista.

sábado, 14 de março de 2009

34. Anne

Thompson passou aquele dia todo me ensinando noções básicas de direção. Eu achava mais fácil que ele simplesmente dirigisse, mas fui convencido de que era melhor que nós dois soubéssemos guiar um carro. Muita coisa eu já havia aprendido com meu pai, muitos anos antes, mas nunca tinha tido oportunidade de assumir o volante de veículo algum. Eu estava ansioso para começar a dirigir de verdade, mas os primeiros metros que percorri foram cheios de solavancos e freadas bruscas.

-Vejo que está progredindo bem! - falou Mark animado, tentando disfarçar sua verdadeira opinião sobre meu fiasco de direção. Era final de tarde e a pouca luz que iluminava o dia sumia rapidamente.

-É... bem... pelo menos consegui não bater o carro ainda. - Resmunguei sem jeito. -E sobre o atentado, já descobriram algo?

-Ainda não sabemos quem foi, mas temos suspeitos - falou. - De qualquer forma, temos coisas mais importantes para tratar. Essa é minha sobrinha, vocês a levarão a Amrak.

Tirei meus olhos do câmbio, onde tentava engatar a marcha do carro, e olhei para Mark. Foi então que a Terra parou de girar. Os últimos raios de sol que se espremiam pelas nuvens. A brisa terminou sua melodia e silenciou. Um lobo uivou na escuridão. Ao lado do padre-sherife havia um anjo, de cabelos dourados como o sol, olhos azuis como céu e a pele branca como a neve mais pura. E ainda que eu nunca tivesse visto o sol ou céu, sabia que ela os levava consigo.

-Ela é linda, não é? - cochichou Thompson ao meu lado, mas levou um longo tempo até que meu cérebro captasse a mensagem e a processasse. -E pode tirar o pé do acelerador, que a marcha não está engatada e esse cheiro de fumaça tá me incomodando.

-Ãh??

-Vocês devem partir ao amanhecer. Não quero correr riscos à toa. Alguém pode acabar reconhecendo vocês por aqui, e uma caravana que chegou enquanto vocês estava presos nos trouxe informações de que um grupo dos Piratas da Neve anda rondando a região. -Ele falava alto, para que pudéssemos ouvi-lo por cima do barulho que o carro fazia enquanto eu o acelerava sem parar. Sua voz era séria, mas não parecia muito preocupada. -Mandarei uma patrulha acompanhá-los nas primeiras horas. E então seguirão viajem sozinhos.

-Sim, senhor -falou Thompson, em tom honroso, enquanto desligava a chave e a tirava do contato.

-Ãnnh? -Balbuciei. E então finalmente consegui formular uma frase. -Como você se chama?

-Anne.