Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

24. Latinhas

-ESPETINHOS?

Comemos feito loucos. Ratos e iguanas assados são extremamente apetitosos, especialmente quando se está com fome e cansado. Sua carne é macia, saborosa e extremamente nutritiva. Nossas barrigas estavam a ponto de explodir quando decidimos parar de comer, mas o velho continuava nos empurrando mais e mais espetinhos apetitosos. Não conseguia imaginar como ele havia conseguido tanta comida, mas eu o louvava por isso.

-Senhor. Estamos mais que satisfeitos. Diga, quanto vai nos custar para pagar toda essa comida?

-Sobremesas? Claro, claro! Que cabeça a minha. Estão bem aqui, vou pegá-las!

Quando o homem saiu detrás da barraquinha e nos trouxe duas latas de refrigerante quase tivemos um enfarto. Aquilo tudo só podia ser uma miragem, alucinação ou coisa parecida. Latas de refrigerante eram mais difíceis de serem encontradas do que pessoas não afetadas pela radiação. E aquele cara tinha duas. E não parecia se importar em se desfazer delas. Thompson e eu nos entre olhamos e resolvemos que era melhor não perguntar.

-Bebe logo antes que ele queira de volta! - falou meio sorrindo, meio aconselhando. - Antes morrer tendo bebido um último refrigerante que ficar com vontade para a eternidade!

Verdade é que aquele foi meu primeiro refrigerante, mas preferi não dizer nada. Apreciei cada gota daquela bebida única. Seu cheiro doce fez olfato enlouquecer, enquanto suas pequenas bolhas espumantes dançavam em minha garganta e me faziam rir. Thompson me olhou com uma careta, provavelmente me achando um doido, mas eu estava me divertindo, e até o barulho da latinha abrindo tinha sido hilário. Estávamos quase acabando nosso banquete, completamente atordoados, quando o homem voltou a falar:

-Oba! Mais clientes!

E então nosso sangue congelou.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

23. Espetinhos

Thompson não estava muito preocupado se encontraríamos alguém para vender todas aquelas coisas, ou mesmo se sobreviveríamos até achar alguém. Levei um bom tempo até convencê-lo a deixar a euforia de lado e se concentrar em ao menos tirar tudo aquilo dali. Foi preciso construir outro trenó improvisado, mas logo estávamos viajando.

-Sabe... eu tava pensando... Afinal, aquela velha, a Mary, tinha razão.

-Tinha? - falou Thompson, meio sem entender.

-Ela disse que eu traria a morte à cidade. Bem, a não ser que eu tenha deixado escapar algo, os piratas não foram à cidade por minha causa. Mas eu estava lá quando chegaram, então de certa forma eu sou culpado.

-Está preocupado com isso? Não se preocupe, a culpa não foi sua. Cedo ou tarde isso aconteceria. Estou feliz por estar vivo, e você deveria achar o mesmo.

-Não, só achei engraçado lembrar disso! - falei descontraído. - Na verdade, nem ligo para aquela cidade. Era um amontoado de bosta, no meio do nada, de onde nada se podia tirar. Eu queria mesmo era ter explorado aquele bunker. Fiquei curioso.

-É, pra falar a verdade, fiquei também. Ainda mais depois de ver o corpo de Domn lá... Ahh! que se dane... já era mesmo.

Já estávamos viajando por mais de 8 horas seguidas, e havíamos feito apenas uma única parada para um lanche. A conversa sobre a cidade foi boa para esquentar a mente, mas estávamos entediados demais para um diálogo muito longo. O frio entrava por nossas roupas e nos deixava sonolentos, mas não podíamos parar antes de chegarmos ao esconderijo que Thompson dizia conhecer. Se parássemos para dormir em algum outro lugar teríamos de cavar um abrigo, e seríamos obrigados a deixar os snowmobiles e trenós do lado de fora, o que chamaria muito a atenção, mesmo à noite. Seguir em frente era a única opção.

A noite começava a cair quando uma mudança na paisagem nos despertou do torpor. Alguns quilômetros adiante de nós, em cima de um morro de neve ligeiramente mais alto que os ao redor, havia um pequeno barraco. É claro que aquilo era completamente incomum, e por isso nos separamos de imediato, para que não estivessemos muito perto um do outro caso algo acontecesse. Mas não aconteceu. Ao nos aproximarmos, vimos que o barraco na verdade era uma barraquinha, e dentro dela um homem de barba branca e olhar embaçado mirava o horizonte. Thompson trazia uma antiga metralhadora AK-47, que ele tomou devidamente emprestada de um dos piratas mortos, e mirou-a para o homem enquanto chegavamos mais perto. Demorou até que o velho desse conta de nossa presença ali, e quando percebeu logo começou a falar:

-Clientes! Espetinhos de rato e iguana deliciosos! Vão levar para viajem, ou comer aqui mesmo?

domingo, 21 de dezembro de 2008

22. Ricos

-Vamos voltar.

-Claro, vamos nessa - falei, fingindo não ter entendido o que ele disse, mas então completei - Tá maluco?! E aqueles caras ali atrás? Vamos pedir carona pra eles também?

-Primeiro a gente se livra deles, depois voltamos. Eu sei de um esconderijo a umas 10 horas daqui, com combustíveis, equipamentos e suprimentos, mas precisamos de mais combustível para chegarmos lá.

-E como vamos nos livrar deles?

-O jipe deles não é adaptado, vê? Não tem esquis ou esteiras, são apenas correntes em volta do pneu. Assim eles só podem andar no gelo ou em terreno firme. Vamos por aqueles morros ali, onde a neve acumula e eles não podem nos seguir - e apontou para a encosta do rio, onde grandes bancos de neve se formavam com o vento.

Foi preciso cerca de duas horas para conseguirmos atolar o jipe. Eles sabiam o que queríamos fazer e por isso relutavam em nos seguir de perto, mesmo quando deixávamos que se aproximassem. Preferiram ficar atirando, torcendo para o vento não desviar os projéteis ou jogá-los contra nós. Mas sobrevivemos ilesos, e finalmente erraram o caminho e acabaram presos em um buraco de escombros e neve fofa.

-Certo. Nos livramos deles. Mas onde vamos achar combustível, agora que a oficina está destruída?

-Com sorte o resto dos veículos deles ficou apenas danificado, e não destruído. Assim podemos esvaziar os tanques e encher os nossos.

E mais uma vez a sorte estava ao nosso lado. A maioria dos veículos estava lá, com buracos na carroceria e soterrados de escombros, mas não haviam queimado ou explodido. Vasculhamos os destroços com cautela, mas não haviam mais piratas vivos, apenas corpos fumegantes e um insuportável cheiro de carniça misturado com excrementos. Havia combustível de sobra, mas não tínhamos como carregá-lo em nossos pequenos snowmobiles, então jogamos o resto nos veículos e ateamos fogo. Claro que antes antes retiramos tudo o que era útil, como kits de primeiros socorros, água, roupas, lanternas e até mesmo camisinhas - que eu duvidava ainda servirem para alguma coisa. Com uma placa de alumínio e alguns pedaços de corda fizemos um trenó, empilhamos tudo nele e cobrimos com uma lona.

estávamos de partida quando avistei outro veículo, caído para fora das muralhas, pouco além da entrada da cidade. Nos aproximamos e percebemos que aquele era o veículo do qual os piratas lançavam seus morteiros. Entramos no enorme veículo, que estava de ponta cabeças, e então ficamos ricos. Aquele devia ser o fruto de muitos saques daqueles piratas. Havia morteiros, armas, bebidas, cigarros e revistas pornográficas. Tudo de extremo valor em uma cidade grande.

-Estamos ricos! Estamos ricos! Hahaha! -gritava Thompson, enquanto pulava e girava na neve.

-É... mas onde vamos vender tudo isso? - perguntei, um pouco mais consciente.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

21. C4

Era um absurdo. Dois morangos jamais deveriam valer mais que dois veículos. Morangos deveriam ser colhidos do natureza, frutos de um mundo vasto, verde e completo. Snowmobiles deveriam ser pesquisados, desenvolvidos e fabricados com dezenas de matérias-primas e componentes eletrônicos, frutos de um mundo tecnológico e desenvolvido. Mas o homem muda tudo, destrói aquilo que o criou e o que ele próprio criou, e agora esse era o preço disso tudo. Eu ainda tinha muito a pensar, mas meu cérebro quase deixou de existir quando um projétil estilhaçou a porta e passou raspando em minha máscara. Os piratas tinham dado pro falta do companheiro e nos encontrado, agora seu objetivo e diversão era nos exterminar.

-É agora Nuke! - disse Thompson. Ele então jogou a planta no bagageiro e tirou um pacote envolvido em fita adesiva preta - Temos um burado para tapar!

-QUE?! - gritei atônito. Mas ele acelerou o snowmobile e derrubou com facilidade a parede dos fundos da oficina. Segui-o de cabeça baixa, para evitar os tiros que não paravam de entrar pelas paredes. Passamos pela entrada do bunker em alta velocidade, mas Thompson ainda teve tempo de derrubar o pacote dentro do buraco.

-Temos cerca de dois minutos antes dessa ilha inteira ir pelos ares!

-Aquilo era o que eu penso que era?

-Sim! Um quilo inteirinho de C4!

-Pelos deuses! - exclamei engasgando, enquanto imaginava o que estaria pensando aquela criatura, no final da escada, com seu pé-de-cabras na mão, quando vindo de lugar nenhum uma bomba caiu aos seus pés.

Os tiros dos piratas ainda perfuravam a neve próxima a nós quando aconteceu. A explosão fez o chão tremer. Nas encostas do rio seco toneladas de neve cairam em avalanche. Uma núvem de fogo, neve e terra subiu centenas de metros no ar, para em seguida uma chuva de destroços cair por toda a planície. Mas Thompson errou novamente em suas previsões, pois apenas três quartos da ilha desmoronaram em uma núvem de poeira e detritos.

-Merda. Tinha esperanças que houvessem explosivos naquele bunker... Provavelmente não destruímos os veículos daqueles piratas.

E dessa vez ele estava certo. Ainda que a maioria tivesse sido pulverizada pela explosão, alguns minutos depois piratas já nos perseguiam com um jipe. Nós matamos seus companheiros, danificamos e destruímos alguns de seus veículos e acabamos com seu objetivo naquele lugar. Nossa morte seria pouco para eles. E ainda que não estivéssemos dispostos a morrer, tinhamos outro problema:

-Thompson! Nós não temos combustível!

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

19. Bunker

-Você já desceu aí?

-Uma vez, dez anos atrás, mas não passei da escada. Éramos em quatro, mas não tínhamos lanternas ou máscaras de gás na cidade, e temíamos que esse cheiro forte que sai daí pudesse ser tóxico, ou até mesmo explosivo.

Não precisou muito para que decidíssemos entrar, já que um bunker com certeza é um lugar muito mais seguro durante um ataque de morteiros. Eu corri até a oficina e peguei duas máscaras de gás, enquanto Thompson pegou em sua casa um par de lanternas. Descemos a escada o mais rápido que pudemos, vencendo seus 50 metros com escorregões e tropeços. Não tínhamos muito tempo para explorar o abrigo, já que tão logo a cidade fosse destruída, os Piratas entrariam para saqueá-la. O ar lá embaixo, mesmo através da máscara, era muito pesado e parado, havia poeira em suspensão e grossas camadas de teias de aranha.

-Há muitas teias de aranha por aqui. Como pode? Supostamente não há insetos aqui para elas se alimentarem.

-Não me pergunte... - disse indiferente a esse aparente capricho do ambiente - Apenas fique próximo de mim para não nos perdermos.

As luzes de nossas lanternas iluminavam pouca coisa adiante, sendo barradas pela camada de poeira e teias. Passamos por algumas salas de escritório, mas não nos demos ao luxo de examiná-las com calma. O tempo era curto e apenas podíamos nos contentar em olha-las pela porta. Cada uma delas parecia um mundo à parte, estático e imutável para todo o sempre, coberto em cada centímetro por uma camada de poeira. Alguns poucos metros adiante o corredor terminou em um grande salão salpicado de pilastras de sustentação. Pelas mesas espalhadas reconhecemos o refeitório, que daria para pelo menos 100 pessoas. Caminhamos até o outro lado, em direção a uma porta que parecia levar a um dormitório. Não fosse pela poeira, era como se ninguém estivesse estado ali. Estávamos para dar mais um passo quando uma explosão fez tremer o chão e um grande estrondo entrar pela escada e chegar até nós.

-Talvez devessemos ir embora, ou podem acabar bloqueando a entrada com um dos morteiros.

-Voce tem razão, eu... - Thompson interrompeu a frase no meio e apontou o feixe de luz para o dormitório. Sobre a cama mais próxima à porta estava um corpo jogado. Eu fiz que não, mas ele se aproximou mais para investigar. Era o corpo de um homem, e apesar de bastante deteriorado, ainda se podia reconhecer o rosto.

-É o corpo de Domn. Ele desapareceu cerca de dois meses depois que descemos aqui. Certamente encontrou uma lanterna e resolveu descer sozinho para saquear -disse apontando para a lanterna quebrada que havia ao lado da cama. - Idiota, morreu por causa de sua própria ganância.

Um barulho de passos e metal arrastando fez nossa adrenalina explodir. Olhamos em volta e vimos um vulto se mechendo por entre as beliches.

-O que aconteceu com os outros dois caras que desceram com você aqui?

-Esqueça isso... Corra!

20. Morangos

Corremos feito loucos o caminho de volta. Ofegantes ao pé da escada, arriscamos olhara para trás, porém só podíamos ver a nuvem de poeira que erguemos ao passar pelo corredor. O som de passos havia parado e tudo estava mergulhado em um mar de silêncio. Também não se ouvia nada vindo da superfície, o que indicava que o ataque havia cessado e logo invadiriam a cidade.

-Vamos Nuke, dane-se o que tem aí. Prefiro viver.

-Sim, vamos.

Thompson já estava no terceiro degrau quando o barulho de ferro recomeçou. Ele esticou a cabeça para baixo do buraco, bem a tempo de ver uma máscara-de-gás negra e desgastada surgir por entre a poeira e as teias de aranha. Não conseguimos identificar quem era, mas o pé-de-cabra em suas mãos estava pintado de sangue e não parecia amigável. Eu estava aturdido. Fosse quem fosse, devia estar lá a muitos anos, mas ainda assim estava vivo. Suas roupas estavam completamente arruinadas, e sua pele parecia queimada. Se Thompson não tivesse me puxado pela gola, talvez eu tivesse ficado em transe, e o barulho que o pé-de-cabra fez na escada teria sido abafado pelo impacto com meu crânio.

Saímos pela escada e encontramos a cidade quase completamente em ruínas. No lugar do portão principal havia um enorme caminhão blindado, completamente adaptado para guerra. Alguns homens trajando coletes e capacetes andavam pelos escombros, conferindo se todos estavam mortos. A oficina, por milagre, estava intacta, então corremos para lá e ficamos em silêncio. Quando um dos piratas entrou na oficina sequer teve tempo para disparar. Eu e Thompson já o golpeávamos incansavelmente com duas barras de ferro, até que seu corpo parasse de se mexer.

-Suba nesse snowmobile que você consertou e prepare-se para sairmos - disse Thompson - Eu já volto.

Mal tive tempo de entender o que eu havia ouvido e ele já estava correndo por entre os escombros até sua casa. Fiquei imaginando quanto tempo levaria para que os outros piratas dessem por falta do que havíamos matado. Mas em menos de dois minutos ele estava devolta, com um sorriso triunfante. Debaixo do braço trazia um pequeno vaso com uma planta de folhas largas caindo para fora. Era a primeira planta que eu via em muitos anos. E esta parecia extremamente verde e sadia como nenhuma outra.

-A cúpula de vidro em que eu a mantinha a salvou de ser esmagada!

-O que é isso?

-Um pé de morangos, oras. Como acha que eu comprei esses dois snowmobiles?

-Você comprou dois snowmobiles com UM MORANGO?

-Não, seu idiota. Foram dois morangos.

18. Piratas da Neve

Thompson quase acertou. A tempestade começou na manhã seguinte, e com ela o primeiro disparo. O morteiro subiu alto, foi pego por uma corrente de vento e arremessado muito além da cidade. O segundo foi um pouco mais perto, porém sem perigo. O terceiro caiu pouco além da muralha, fazendo pedras perfurarem as placas de ferro sem dificuldades. Apenas no quarto disparo eles acertaram a mira, e então a cidade silenciou. Um homem teve um braço semi-amputado por um dos destroços, mas seus gritos não foram ouvidos em meio ao desespero completo que dominava a mente das pessoas e as mantinha completamente paralisadas.

-Thompson! Thompson!- gritava eu, completamente desesperado de cima da muralha, já cansado de acompanhar aquilo.

-Aqui, Nuke! Venha rápido!

Pulei da muralha e corri para seu lado, atrás de uma casa. Ainda tive tempo de ver o lugar onde eu estava ir para os ares, enquanto três dos guardas que continuaram ali viravam pedaços.

-Quem são eles? - gritei acima da explosão, que ainda ecoava em meus ouvidos.

-Piratas, Nuke. Piratas da neve.

-Não vai sobrar muita coisa para saquearem quando a poeira baixar.

-O que eles querem está bem protegido de seus próprios morteiros - disse Thompson, enquanto corríamos por entre os barracos e nos protegíamos das explosões, jogando-nos no chão ao ouvirmos o assobio das bombas caindo. Vendo minha cara de surpresa e dúvida, completou - Vou lhe mostrar. Tente apenas não perder a cabeça.

Corremos por mais algumas casas e pilhas de escombros. Descemos um pequeno desnível e paramos. Ele retirou algumas placas de plástico e restos de tijolos, revelando um alçapão de aço no chão. Fizemos força juntos e erguemos a tampa, que rangeu e estalou. Havia uma escada de ferro que descia por um túnel redondo, com espaço para apenas uma pessoa, e sumia na escuridão.

-É um bunker.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

17. Neve Vermelha

Foram dois longos meses recolhendo sujeira pelas ruas imundas da vila e empilhando ao lado dos muros. Não havia nada de heróico nisso, com certeza. Mas ao menos meus braços já estavam acostumados ao trabalho e meus músculos se fortaleciam mais e mais. Nas horas vagas eu ajudava Thompson a reparar um snowmobile que ficava num barracão ao lado de sua casa, o que foi muito bom para minha memória, que já começava a esquecer o que meu pai havia me ensinado sobre mecânica. Thompson era um homem bom, sabia reconhecer potencial nas pessoas e ajudá-las a desenvolver ainda mais suas habilidades. Ele me ajudou a ficar longe de problemas naquela fossa esquecida pelos deuses, enquanto todos ali pareciam querer me assar em uma fogueira.

Mas, na vida de um sobrevivente em um mundo como o meu, as coisas nunca dão certo por muito tempo. E, numa "bela" manhã de muito vento e neve, elas voltaram a dar errado. Um dos guardas tinha avistado uma mancha negra se aproximando pelo vale. O pânico tomou conta dos pouco mais de 30 habitantes daquela pequena cidade, e não demorou muito a me culparem pelo destino miserável que os aguardava. Aos gritos e engasgos a velha Mary soterrava-me com palavrões e maldições, mas eu duvidava que alguém fosse capaz de ser tão almadiçoado de uma única vez.

Naquele dia a mancha pareceu não se mecher muito, e isso aumentou bastante a tensão e expectativa. Os guardas estavam especialmente nervosos, já que a maioria nunca havia enfrentado mais que meia dúzia de encrenqueiros juntos. Mas as coisas pioraram muito mais quando, na manhã seguinte, pudemos ver a quantidade e o tipo de veículos que formavam a mancha. Todos de guerra. E em apenas mais um dia já estavam nas proximidades da cidade, estacionados pouco além do alcançe de qualquer arma que tivéssemos na cidade - e não eram muitas, devo acrescentar.

-Thompson, você acha que eles vão atirar?

-Vão - disse seriamente.

-Daquela distância?

-Com morteiros. Assim não correm riscos de perderem homens à toa.

-Mas e o vento? Uma tempestade está para começar.

-Talvez você não tenha reparado ainda, mas estamos em uma ilha, no leito seco de um rio. O vento corre de lá - e apontou para a direção dos veículos - e vai para o outro lado, numa corrente contínua. Em dois ou três disparos eles terão acertado a mira... e então a neve cairá vermelha.

domingo, 30 de novembro de 2008

16. Premonição

-Diga-me, jovem, como você se chama?

-Sou Nuke.

-Só Nuke? - perguntou a senhora, após alguns segundos em silêncio.

-Isso, só Nuke. - respondi paciente.

-Humm... Conte-me, como é o mundo lá fora? Você sabe... é cheio de monstros e mutantes, como dizem por aí?

-Infelizmente. Mas não parece tão perigoso assim quando não se tem nada a perder.

-Você tem algo a perder? -disse com sua voz chiada e fraca, enquanto colocava sua mão sobre a minha com ternura.

-Não.

Ficamos alguns minutos em silêncio, remoendo pensamentos sem fim. Fui o primeiro a quebrar o silêncio.

-Senhora, disse que sonhou comigo. O que sonhou, exatamente?

-Sonhei que um jovem viria do sul, trazendo consigo a morte e o fim.

Ergui as sombrancelhas, num misto de riso e surpresa. Estava para responder alguma coisa quando um homem entrou pela tenda.

-Pare de importuná-lo, Mary! Ele precisa aprender as regras por aqui, se instalar e então começar a pagar pela estadia. - o homem era ainda jovem -maduro, mas jovem-, com no máximo 40 anos. Tinha os cabelos curtos e bem cuidados, e sua aparência era bem saudável. Ele me acompanhou para fora da tenda e me levou devolta pela cidade. - Sabe, acho que Mary ainda sente muita falta de sua filha, mesmo que quase duas décadas tenham se passado. Ela sempre diz que a morte a persegue, tentando encontrá-la em meio a essa imundice. Cá entre nós, acho que ela apenas está gagá demais!

terça-feira, 18 de novembro de 2008

15. Sonhos

Depois de viver alguns anos andando por aí em um mundo forrado de neve e gelo você começa a se acostumar com o medo de congelar enquanto mija, de trincar os dentes quando boceja ou de sentir seu próprio mal cheiro de nariz entupido. Mas todas essas coisas vieram se aconchegar em minha mente quando entrei naquela pequena vila, que se dava o título de "cidade fortificada", onde todos os seus habitantes seguiam as piores noções de higiene e saúde. Até um rato com sarna sabe que viver em cima de seus próprios excrementos não pode ser boa coisa, mas aquelas pessoas pareciam não se dar conta disso, ainda que todas elas aparentassem ter nascido antes da Explosão, quando higiene ainda se aprendia em casa. Todos os tipos de dejetos se acumulavam na muralha, como se fosse um reforço para que ela não se dobrasse com o vento, as pessoas eram imundas e maltrapilhas, havia algumas crianças, mas elas mais pareciam bolhas de sangue ambulantes.

Apesar de tudo o que havia de deprimente e infeccioso naquele lugar, eu me sentia confortável e, por que não, um pouco feliz. Era a primeira vez em muitos anos que eu estava em um lugar onde haviam muitas pessoas e, apesar de haverem guardas e provavelmente um líder, ninguém poderia me dar ordens sem que eu tivesse ao menos o direito de correr e morrer. Eu duvidava, desde o primeiro passo lá dentro, que alguém que ali morasse estivesse se importando com minha presença, todos pareciam interessados demais em morrerem em sua própria poça de vomito e fezes. Mas eu estava errado, e não demorei a saber que ali, todos os que portavam armas tinham ambições maiores que uma morte apática.

O guarda que permitiu minha entrada na vila me guiou por uma trilha escorregadia por entre os barracos e entulhos que se amontoavam por toda a volta, depois de alguns minutos chegamos a uma tenda branca, completamente destoante de todo o resto que havia à volta. Entrei pela porta de lona e não encontrei o esperado cheiro de podridão e a sujeira acumulada até o calcanhar, mas ao contrário, fui recebido com um delicioso cheiro suavemente doce, que me fazia lembrar de um tempo distante que eu provavelmente tinha esquecido que vivi. Ao fundo, sentada em uma cama, havia uma senhora de cabelos brancos e muitas rugas pelo rosto e nas mãos.

-Nuke... - disse com voz rouca e chiada a senhora. - Eu o estive esperando... Eu o vi em meus sonhos... Venha, sente-se aqui ao meu lado...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

14. A Cidade do Vale

O tempo parecia se alongar a cada dia que passava. Tudo o que eu tinha como companhia era um infindável mundo vazio onde apenas o silêncio ecoava pelas colinas, pronto para assassinar o primeiro que se aventurasse a quebrá-lo. Caminhei por duas longas semanas após meu encontro com Erwin e já não podia mais suportar dormir em buracos cavados na neve ou comer lagarto ensopado em neve derretida. Mas minha sorte parecia pronta para mudar. Ao final do décimo quarto dia avistei uma pequena cidade, murada com placas de metal e escombros de todos os tipos, que se erguia sobre um elevado de terra de 5 ou 6 metros, no meio de um vale muito largo.

Dormi imaginando quem viveria na cidade e o que eu diria para que me deixassem entrar. As duas torres de vigia que ficavam ao lado do portão da muralha não pareciam muito resistentes, mas do alto do morro inspiravam em mim o respeito que com certeza esperavam que tivessem. Não havia trilhas na neve levando ao portão ou saindo dele, o que indicava que ninguém entrava ou saia de lá a pelo menos 2 dias, também não se via fumaça das chaminés ou qualquer outra movimentação em seu interior. Mal sinal, para um viajante como eu.

Ignorando o perigo que qualquer pessoa sã perceberia, parti ao amanhecer em direção àquele vestígio de civilização que ali resistia à neve e ao frio. Levei mais tempo para descer em segurança a encosta do vale do que para percorrer as poucas centenas de metros que levavam à cidade, e quando estava ainda a muitos passos da rampa que levava ao portão uma voz cortou o vento como uma flecha e chegou a meus ouvidos, fazendo-me parar com uma derrapada.

-Alto lá, viajante. Diga seu nome e o que quer em nossa fortaleza.

-Chamo-me Nuke. Venho em busca de suprimentos e um lugar para descansar. - disse eu, enquanto tentava esconder o sorriso de deboche ao ouvir o guarda se referir àquela montanha de sucata como "fortaleza". Mas é claro que, como todo jovem saudável, eu era extremamente presunçoso e achava que poderia botar abaixo tudo aquilo com bolas de neve e sopa de lagarto.

-Espere aí. - disse o homem na torre, que agora fazendo questão de mostrar o rifle que tinha nas mãos.

-Não tenha pressa, estou admirando a neve cair. - retruquei irônicamente, porém falei mais para mim mesmo que para o guarda.

Alguns minutos depois o homem reapareceu. - Disse que se chamava Nuke. É isso mesmo?- Fiz que sim com a cabeça, retorcendo os olhos para cima com impaciência. O guarda falou alguma coisa para alguém dentro da torre e então voltou a falar comigo. - Entre, Nuke. Tem alguém que quer lhe falar.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

13. Meu Mundo

Naquela manhã, como em quase todas as outras em minha vida, saí do esconderijo cavado na neve e mirei o horizonte. Nunca me cansei de admirar aquelas colinas cobertas pela neve, o céu repleto de nuvens cinzentas e as imensas montanhas ao longe, ainda que grande parte disso estivesse coberta de escombros, buracos e cinzas. Coloquei fogo em um punhado de lascas de madeira, derreti um pouco de gelo numa caneca de alumínio e preparei meu café-da-manhã. Engoli os pedaços de lagarto e carne seca quase sem mastigar, tendo certeza apenas de não olhar para eles e me arrepender de em algum momento ter tido coragem de comê-los. E sentado em uma rocha, começei a lembrar de coisas que sabia sobre aquele imenso mundo onde eu era apenas um punhado de poeira ao vento.

Por muitas vezes em minha vida vi fotos em livros e revistas, assisti a vídeos ou li sobre o mundo dos Antigos. Havia muito verde, o céu era de um azul tão claro que quase parecia branco, havia milhares de animais, de todos os tipos e cores, tanto na natureza quanto nas cidades. Ah!, as cidades! Essas eram imensas, crescendo em todas as direções, inclusive para cima e para baixo, desafiando sua própria tecnologia e abrigando milhões e milhões de pessoas. Senti um nó na barriga ao ver um mar de pessoas andando pelas ruas. É incrível tentar imaginar como poderia haver tanta gente junta, num só lugar, cada uma com sua própria vida, interesses, vontades e desejos. Parece-me impossível que esse mundo já tenha existido, que todo aquele caos pudesse, enfim, resultar em algo palpável. Mas existiu, e agora não passa de imaginação, memórias e história.

Meu mundo, muito diferente, tem apenas os vestígios do que já foi um dia uma grande civilização. Poucas cidades atingem a marca de milhares de habitantes, a maioria não passa de um cemitério de prédios e ruas abarrotadas de escombros e fantasmas do passado. As estradas foram soterradas pela poeira e pela neve, a natureza sufocada pelas cinzas ou queimada pelo fogo, os animais foram dizimados por motivos que até mesmo seus carrascos desconheciam. Aqueles que ainda vivem preferem se esquecer do passado, enquanto que os que nascem já não se importam com o que passou e aprendem, assim como eu, a aceitar que o mundo ao qual pertence é esse diante de seus olhos.

Quando terminei de comer segui minha caminhada. Eu preferia ignorar os perigos à que estava sujeito e ocupar minha mente imaginando as maravilhas do mundo que se foi, assim como se imaginava como seria a vida em um planeta distante.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

12. Sussurros

Em poucos minutos não se podia mais ouvir o barulho de tiros. A noite caía veloz, e com ela o silêncio ensurdecedor que domina um mundo devastado pelo homem. Mesmo o vento noturno parecia calado, soprando para longe meus esforços de ouvir em seus sussurros alguma notícia de Erwin. Passei horas imóvel, na esperança de ver os passos mancos do velho atirador subindo pelas colinas, mas uma preocupação maior crescia em meu peito. Se Erwin estava morto, e as criaturas que o ameaçavam e sabiam de minha existência estivessem vivas, então eu poderia estar correndo perigo. Talvez eu devesse ter deixado minha toca e continuado a caminhada, mas eu estava cansado mentalmente e meu corpo ainda reclamava da noite que passei sentado numa das cadeiras semi-destruídas na cabana.

Eu havia me recolhido para dentro do buraco na neve e estava fechando sua entrada com um pedaço de plástico quando uma coisa totalmente nova me chamou a atenção. No horizonte, acima das montanhas e logo abaixo das núvens, um ponto de luz branca cruzava os céus em altíssima velocidade. Em minha infância meu pai já havia me mostrado vídeos de aviões voando em velocidades assombrosas, mísseis inteligentes e até mesmo trajes pessoais de vôo, mas o que quer que fosse aquilo era muito maior e muito mais rápido do que qualquer coisa que eu já tinha visto, ainda que eu não possuísse um binóculo para observá-lo melhor. A visão daquilo e a incapacidade de entender o que era, somado ao fato de em toda minha vida eu ter visto poucas coisas além de pequenos pássaros e pedaços de corpos voarem, me fez subir um calafrio pela espinha que eu não sentia desde que os escravizadores me pegaram pela primeira vez.

Aquele foi, apesar de eu não ter feito nada além de andar e cavar, um dos dias mais misteriosos de minha vida. Eu havia deixado para trás um dos homens mais experientes ainda vivos no mundo, escapado de uma desagradável visita de criaturas nada amistosas completamente desconhecidas pela raça humana e avistado voando pelos céus uma das coisas que aquele mundo destruído e desolado reservava a mim.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

11. Monstros

Não nos falamos muito mais naquela noite. Erwin me ofereceu um pouco da sopa que ele havia preparado e que estava cheirando muito bem, o prato em que me serviu não se podia dizer que era limpo, mas com certeza era uma das coisas mais novas que havia naquela cabana. Comi como se nunca houvesse comido, sequer reparando nos pedaços suspeitos de lagarto que apareciam e desapareciam no caldo grosso, como se ainda estivessem vivos. Adormeci logo em seguida, recostado numa cadeira, sem me preocupar em deitar ou me acomodar melhor.

O dia já dominava as colinas quando finalmente acordei. Eu não havia mechido um único músculo durante toda a noite, e agora eles reclamavam e gritavam enquanto eu os forçava a se mecherem. Vasculhei o pequeno comodo com o olhar, ao meu lado havia um prato fumegante da sopa de lagarto, a fogueira continuava acesa e sua fumaça inundava quase todo o espaço que havia, enquanto isso Erwin permanecia imóvel, como uma estátua, em um dos cantos. Chamei-o, mas não houve resposta. O vapor que saía de sua boca e se misturava à fumaça ao redor me dizia que ele ainda estava vivo, mas seu velho rifle de caça estava apoiado em uma rachadura na parede de plástico, vigiando as colinas brancas ao redor da cabana, e ele não fazia som algum, apenas escutava com atenção os sussurros trazidos pelo vento.

-Eles sabem que você está aqui. Eu queria que você os visse para mim, que fosse meus olhos quando eles resolvessem vir me pegar. Mas eles sabem de você e não virão durante o dia, só a noite - disse o velho atirador, após quase uma hora de silêncio. Ele queria ter certeza de que não perderia nada ao parar de ouvir para conversar comigo. - Não arriscarão enfrentar outra arma além da minha. Mas durante a noite eu e eles somos iguais, então veremos aquele que atira mais rápido - ele parou para pensar por um instante, e então concluiu. - Queria apenas saber como eles são, qual o tamanho de seus membros e suas cabeças, mas isso eu descubro depois do primeiro disparo.

Eu não disse uma palavra. Não saberia o que dizer, ainda que quisesse dizer algo. Eu sabia que ele havia me acolhido de boa vontade, sabia que ele queria apenas uma ajuda com algo que ele não mais poderia lidar sozinho, mas agora sabia que não fazia diferença. Eu queria ficar e ajudá-lo, bastaria uma arma e nós poderíamos enfrentar o que quer que estivesse por vir juntos, e quem sabe até sobreviver. Ainda que ele fosse rude e quase não falasse, principalmente sobre seu passado e sua vida, eu havia me apiedado dele, e queria poder fazer algo, mas ele insisitiu e com um rifle apontado para minha testa saí.

Caminhei pela neve fofa daquelas colinas esperando pelo momento em que monstros surreais sairiam de seus esconderijos e cairiam sobre mim como insetos na carne fresca. Mas não haviam esconderijos, e não haviam monstros. Apenas duas horas depois de sair me encostei em algumas pedras para descançar e cavar minha toca para a noite que viria. Não demorou muito para que os tiros vindos da cabana ecoassem pelos vales e fizessem neve cair das encostas. Os monstros haviam chegado, e apenas mais algumas figuras recortadas de jornais seriam adicionadas à parede da cabana, antes que tudo fosse destruído.

sábado, 6 de setembro de 2008

10. Erwin, o Atirador Cego

-Vou lhe dar comida. Vou lhe dar abrigo. Vou lhe dar proteção contra a tempestade que chegará hoje. Mas amanhã, você será meus olhos. E então partirá.

Eu estava paralisado. O rosto daquele homem transpirava dor, sofrimento e solidão, parecia encarcerado num mundo de sombras eternas e escuridão sussurrada. Ele não esperou resposta. Virou-se, fechou a porta e travou-a com uma tábua, prendendo-a nos batentes apodrecidos. Tive certeza de que um chute qualquer poria abaixo aquele pedaço de plástico, e de que qualquer ventania pudesse fazer voar aquele barraco inteiro, mas guardei essa opinião para mim mesmo quando percebi que a temperatura ali dentro era bem agradável e que o cheiro que vinha de um pequeno caldeirão era delicioso. O homem caminhou pelo pequeno espaço da cabana como se quisesse me mostrar onde morava, mas não soubesse o que falar sobre tudo aquilo. Havia um sofá velho e surrado, no qual provavelmente o velho dormia, uma mesa bamba com alguns papéis amassados e uma tesoura cega, um fogão a lenha adaptado e um amontoado de caixas de papelão e restos de madeira. Numa das paredes havia um papel retangular, protegido por vidro e moldura, no qual se podia ler Erwin - Atirador Honorário do Exército Germânico, e logo abaixo uma medalha dourada, já desgastada pelo tempo, ainda brilhava imponente. E, como um culto estranho e macabro, espalhado por toda a volta do quadro, haviam centenas de figuras de pessoas recortadas de revistas e jornais, algumas tinham tido uma das pernas ou braços arrancados, mas a maioria estava sem cabeça ou com apenas parte dela ainda presa ao pescoço.

-Sim, cada uma dessas pessoas representa um inimigo morto por mim. Mas, como você deve ter percebido, parei de contar a algum tempo, quando meus olhos não mais me permitiram cortá-las das revistas - disse Erwin, o melhor atirador que a coligação Britânico-Germânica já havia tido, ao perceber meu silêncio de curiosidade e perplexidade. - Mantendo-as na parede, me permite lembrar de cada um, de como morreram e como lutaram, assim, enquanto eu viver, eles não serão esquecidos e sua honra em batalha será lembrada.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

9. O Atirador

Eu estava morto. Tinha certeza disso, e naquele segundo infinito me conformei que fosse verdade. Mas eu estava errado outra vez. Levei algum tempo até que pudesse reconhecer e entender o significado do som. E então, para que não houvessem dúvidas, o trovão subiu outra vez a colina e colidiu contra meus ouvidos como uma avalanche. Era a voz de um homem, rouca e assustadora.

-Venha aqui agora. Ou não errarei o tiro outra vez. E a próxima cicatriz que deixarei em você irá do seu rosto até sua nuca, passando direto pelo olho.

Eu estava entorpecido. Era como se aquelas palavras tivessem perfurado todo meu corpo como balas de uma arma, e agora só me restasse esperar a dor chegar e me consumir. Mas ela não veio, e ao invés disso uma estranha sensação tomou conta de mim, como se eu não pudesse negar àquela voz sua ordem. Não que eu achasse que o homem fosse capaz de concretizar sua ameaça, ainda mais com a noite que caía rápida e a distância que nos separava, e bastaria um único movimento rápido para que a escuridão e as árvores me dessem proteção, mas eu simplesmente não pude me virar e partir. Ao invés disso, desci em sua direção, lentamente. Enquanto caminhei não desviei o olhar de seu rosto, a fraca luz que vinha da cabana lutava para se desvencilhar da fumaça e da sujeira das placas de plástico da cabana e escapava na noite crescente, mas seu rosto permanecia oculto pela sombra de uma boina que pendia precáriamente de sua cabeça.

Balbuciei receoso meu nome, me apresentando, mas ao invés de responder, o homem virou-se de costas e se aproximou da cabana, abriu a porta e deixou que outro jorro de luz iluminasse a neve suja. Com um antigo rifle de caça nas mãos fez um gesto para que eu entrasse, e eu obedeci. Mal dei um passo porta adentro quando uma de suas mãos me segurou pelo ombro e me puxou, fazendo-me girar no lugar e ficar de frente para ele. Seu rosto era marcado por cicatrizes, a pele era flácida, caindo em grandes porções e misturando-se à barba rala e acinzentada, seu cabelo desgrenhado parecia ter sido arrancado em alguns pontos. Mas o que mais chamava a atenção eram seus olhos, vazios e sem vida, brancos como a neve mais pura que eu já tinha visto.

Seu nome era Erwin.

Cego.

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

8. Monstro

A visão daquela fumaça fez surgir em mim forças de onde não havia, brotar esperança em uma mente despedaçada pela solidão e o velho medo de encontrar alguém nesse mundo insano e devastado. Apesar de afoito por encontrar a fonte da fumaça, aproximei-me devagar por entre os pinheiros, evitando quebrar algum galho ou pisar em gelo quebradiço, já que até o menor barulho ecoaria por todas aquelas colinas silenciosas - e mais tarde aprendi que até mesmo o som de uma respiração pode ser diferenciado do vento por um ouvinte atendo e treinado - e me denunciaria para quem quer que fosse. Quando atingi o topo da colina segui caminho me arrastando por entre os últimos restos de árvores, até que finalmente pude ver a chaminé de uma precária cabana, feita de toras de madeira e placas de algo que parecia plástico sujo. A fumaça saía com dificuldade, e grande parte dela inundava parte da cabana e vazava pelas inúmeras frestas, como se a boca cheia de dentes de um grande monstro deixasse escapar seu bafo quente.

Não havia ninguém por perto mas ainda assim fiquei observando. E observar com paciência, sabia eu, é algo de extremo valor em um mundo como esse, e eu era bom nisso. Apenas quando o sol começou a se por é que decidi que era hora de me aproximar, afinal, a fumaça não tinha parado de sair, o que indicava que alguém estava alimentando o fogo, e se mais alguém estivesse para voltar, então já deveria ter voltado, pois todos sabem que não se deve viajar a noite. Mas eu estava errado - ao menos em parte - e quando me levantei percebi o erro. Um piscar de olhos depois o som do disparo chegou ao topo da colina e a meus ouvidos, como se a casa fosse mesmo um monstro e houvesse acordado e gritado em fúria, girei o mais rápido que pude e joguei-me no chão, afundando na neve fofa. Mas eu sabia que a neve não era alta o bastante pra me esconder e que quem quer que houvesse atirado não iria me deixar escapar facilmente. Sondei com a mão todo meu corpo, procurando o local do ferimento, mas senti um grande alívio ao perceber que a bala tinha deixado apenas um rastro de queimadura em minha mandíbula, onde a bala passou a milímetros e apenas seu calor me feriu. Eu estava inteiro, mas ainda corria perigo, e quando tinha juntado coragem o bastante para levantar e correr por entre os pinheiros ressecados, outro som estrondoso ecoou pelas árvores.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

7. Fumaça, cinza e branco

A terceira semana de caminhada estava se aproximando, e nenhuma perspectiva de mudança surgia no horizonte. A luz do sol brigava através das nuvens tentando a noite do céu enquanto eu me esticava preguiçosamente pra fora do buraco que havia cavado no dia anterior. Era engraçado admirar um novo dia nascer, olhando pras montanhas no horizonte e para os morros e colinas logo adiante, forrados pela neve e pelos esqueletos de árvores e rochas deformadas. A luz que conseguia penetrar na grossa camada de poeira e vapor que cobria o céu se esparramava por todos os lados, o vento soprava flocos de gelo pelo ar e um silêncio inquietante musicava o ambiente. Mas era como se o mundo sequer tivesse percebido o que lhe havia acontecido anos atrás. Os dias iam e vinham sem cessar, o planeta continuava girando e, por incrível que pareça, a vida continuava se espalhando e impregnando cada lugar existente. E eu era cúmplice de tudo isso, observando tudo com os olhos de uma criança e o coração de um velho. E de tanto caminhar e observar já estava reconhecendo mais tons de branco e azul do que havia percebido minha vida toda, e se eu tomasse mais uma gota de neve derretida ou começe mais um único pedaço de carne seca acho que iria enlouquecer.

Mas não enlouqueci. A fome veio e o último pedaço de carne podre desceu arranhando minha garganta seca. Eu sabia que meu corpo precisava de água, mas eu me recusava a dá-la, com medo de que aquele tom de branco-acinzentado que a neve daquela região tinha fosse mais do que simples poeira misturada ao gelo. E novamente não enlouqueci. Na verdade foi bastante revigorante quando tomei o que os Antigos chamariam de chá, mas que na verdade não passava de água quente com folhas secas e poeira. Surpreendi-me ao ver que já era capaz de por fogo em praticamente tudo com praticamente nada, mesmo quando a úmidade parecia ser maior do que o combustível encontrado, e assim me aquecia, "cozinhava", e derretia gelo todos os dias e noites.



O dia já seguia avançado, mas eu não tinha tido forças para ir muito longe e havia apenas me arrastado até uma pilha de rochas próximas ao local onde passei a noite. A comida tinha finalmente acabado - não que isso me preocupasse, pois já tinha passado fome muitas vezes e sempre havia arranjado um meio de sobreviver - e eu não fazia idéia de pra onde ir. Havia caminhado aesmo por muitos dias, desde que tinha sido libertado pelo exército do RR, e não tinha avistado uma única alma viva, construção, trilha ou estrada. Nem mesmo rastros encontrei em todos aqueles dias, fosse de pessoas, veículos ou animais, e isso era incomum, mesmo num mundo arrasado por uma guerra nuclear. Já estava considerando voltar por onde vim, ainda que minha própria trilha tivesse sido apagada, mais de uma vez, por nevascas e ventanias, mas isso me levaria apenas aos restos de um acampamento militar e a uma base de escravizadores, de onde eu não poderia conseguir muito mais do que encrencas. Foi então que vi, camuflando-se com o cinza do céu e o branco da paísagem, um pequeno filete de fumaça subindo lentamente por detrás do que um dia foi um bosque de pinheiros. Uma chaminé.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

6. Caminhar



Uma vez li em um livro que caminhar faz bem. Mas acho que quem escreveu vivia numa cidadezinha, toda de ruas perfeitamente asfaltadas, cujas calçadas eram forradas por flores e folhas caídas das imensas árvores e ressecadas pelo sol de outono, e cujo maior perigo era torcer o pé ou ter caimbras. Enquanto eu, em minha humilde posição, caminho a duas semanas ininterruptas sobre neve fofa, dormindo em buracos de gelo e terra, racionando pedaços cada vez mais apodrecidos de carne seca, bebendo neve - certamente contaminada - derretida, esperando pela próxima matilha de lobos famintos encontrar meu rastro e sair em uma nova e interminável caçada a minha carne "fresca".

Eu gosto de caminhar, admito. Gosto de sonhar enquanto ando, de imaginar o que havia no lugar daquela camada de neve e destroços antes da Explosão, de quantas pessoas foram felizes ali e de quantas um dia poderão ser. Não penso em minha própria felicidade, ou ao menos não costumo pensar. Prefiro planejar o próximo passo a seguir, imaginar o próximo problema a enfrentar, inventar a próxima refeição a fazer ou temer a próxima noite a chegar. Não que eu duvide que um dia minha felicidade possa chegar, mas para alguém que conhece o mundo apenas desse jeito, é difícil imaginar o que a felicidade poderia ser. Talvez fosse ter uma casa, uma companheira, madeira para alimentar o fogo, uma ou duas vacas e um poço de água não-contaminada. Ou quem sabe ter uma fortaleza, armas e munições, alguns capangas, mulheres para se divertir e procriar, pessoas para escravizar e inimigos para matar. Ou ainda ter um rifle, um cachorro e nada a perder.

Eu nunca soube, e talvez nunca saiba, o que é felicidade. Sei apenas que não me importo com isso. E continuo caminhando, sem nada a perder. Porque uma vez eu li em um livro que caminhar faz bem.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

5. Azul

O Rosa Radioativa me soltou na manhã seguinte. Não precisavam mais de mim, eu já havia servido de isca e dado a eles, em poucos dias, mais armas, equipamentos e veículos do que eles poderiam ter conseguido em meses. E, ficando com eles, eu seria apenas mais uma boca sem função para alimentarem e protegerem. Ao nascer do sol uma equipe foi designada pra me levar ao local exato onde haviam me encontrado. Agora acordado, pude ver que não ficava muito longe de onde eles estavam acampados, e do topo da colina era possível ver a fumaça que subia em pequenas nuvens no horizonte, indicando onde os escravizadores estavam. Era, ainda, perto demais para que eu deixasse de me preocupar com eles. E a partir daquele momento eu estaria sozinho.

-Adeus, Nuke. Cuide-se enquanto estiver aí fora - disse uma das mulheres do grupo. Não a reconheci de imediato, mas, quando desviei o olhar do horizonte e observei seu rosto jovem, quase não pude parar de admirá-la. Era a mesma que havia me explicado, dias antes, o motivo de eu ainda estar vivo, que cuidou de mim enquanto estava desacordado. Sua pele era quase tão branca quanto a neve que soterrava o mundo, seus olhos azuis eram muito claros e transmitiam uma sinceridade difícil de se encontrar nas pessoas, em seu rosto não havia marcas ou cicatrizes, tão comuns em combatentes, nem feridas ou deformações radioativas. Era como se seu corpo não vivesse em um mundo infectado pela radiação. Mas talvez sua beleza fosse a maior de todas as mutações, diferenciando-a e destacando-a dentre os demais sobreviventes, marcados pela a radioatividade e guerra sem fim. - Não que eu ache que você não saiba se cuidar, mas... tente não morrer e... nada, esqueça - terminou ela, com um sorriso discreto no rosto, então entrou em um jipe adaptado para andar sobre neve fofa e partiu. Acho que ainda pude ver um raio de luz azul vindo de seus olhos, mas talvez fosse o excesso de branco da paisagem, e talvez ela sequer tenha me lançado um último olhar.

Fiquei ali, observando os veículos se afastarem e pensando em que direção daria meu primeiro passo em liberdade, após três longos anos de escravidão. Não tinha casa, não tinha família, não tinha amigos. E aquela garota, que agora se ia pelo horizonte, era a primeira mulher da qual eu sentiria falta na vida, mesmo não sabendo que um dia iria revê-la. Eu não tinha muito mais no momento do que quando fui capturado e escravizado, mas uma roupa de frio, mochila, pederneira, saco de dormir, cantil, 5 metros de plástico, cordões e nacos de carne de aparência duvidosa não era o que se podia chamar de fortuna. Mas eu estava feliz, e algo dentro de mim me impedia de ficar muito tempo em um mesmo lugar, arrastando minha carcaça quase vazia pela vastidão de neve e radiação.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

4. 10 segundos

Eu definitivamente não era um espião, e eles sabiam disso, então me forçaram a passar dois dias de cama, para que eu me recuperasse completamente e não adoecesse quando começasse a trabalhar para eles. E não adoeci. O trabalho de limpar os veículos e tirar a neve que insistia em entrar pelos toldos das tendas não era nem de longe tão pesado quanto o de recolher destroços para os escravizadores, e eu ainda recebia três refeições diárias, seis horas de sono e duas de descanso durante o almoço, e tinha roupas novas e quentes. Foram dias despreocupados, eu estava em um acampamento grande do RR, com pelo menos trinta guardas armados fazendo vigia e rondas constantes, e portanto me sentia seguro. Mas no fundo eu sabia que os escravizadores precisavam me encontrar e me levar de volta, para então me torturarem e me matarem na frente dos outros escravos, servindo-lhes de lição a não fugirem.

Então eles vieram. Como moscas em um montanha de merda eles chegaram às dezenas. Os batedores desceram as colinas cobertas de neve com seus snowmobiles e passaram pelo meio do acampamento, atropelando e destruindo tudo o que podiam. Dois grandes caminhões desciam lentamente pela encosta, suas metralhadoras duplas, presas com grandes armações de ferro no topo da cabine, cuspiam balas para todos os lados sem parar. E atrás dos veículos, cerca de vinte homens traziam suas metralhadoras em punho, prontos para matar tudo que se movesse. Muitas pessoas saiam das tendas assustadas, principalmente aquelas que não eram treinadas pra conflitos armados, e eram facilmente massacradas. Eu estava próximo a um dos veículos de reboque do RR quando tudo começou, tive tempo apenas de me jogar debaixo do veículo e me cobrir com neve o melhor que podia, rezando para que não tivessem me visto.

Mas, apesar de estarem cheios de confiança e animados com a matança inicial, não foi uma grande luta. O exército do Rosa Radioativa os estava esperando a muito. Pois, depois de se certificarem de que eu era procurado por eles, trataram de me deixar todos os dias bem à amostra, para que um batedor inimigo me avistasse com facilidade, e quando isso aconteceu, eles simplesmente aguardaram que viessem me buscar. E foi só morte. Por todos os lados soldados do RR deixaram seus esconderijos sob a neve e dispararam ao mesmo tempo contra o pequeno grupo de escravizadores. Eram pelo menos cinquenta homens disparando ao mesmo tempo, sem chance para qualquer reação. Em instantes havia gente pendurada nos caminhões, matando a sangue frio seus motoristas e jogando seus corpos ainda se contorcendo na neve fria. Os batedores que tentavam fugir para todas as direções, subindo as colinas além do acampamento, sequer viam quando os caçadores lhes atingiram com seus rifles e faziam suas cabeças explodirem em pedaços, manchando a neve com seu sangue escuro.


Tudo não tinha durado mais de 10 segundos. Eu estava vivo, sem um único arranhão, e só fiquei sabendo do que aconteceu mais tarde naquele dia, depois de recolher membros e órgãos da neve e empilha-los para os lobos da noite se banquetearem. Eu estava livre dos escravizadores. Ou quase.

terça-feira, 29 de julho de 2008

3. "Favor"

Quando acordei havia uma enorme confusão de vozes e gritaria ao meu redor, tanto em língua comum quanto em outras duas ou três línguas. Eu não conseguia entender nada, mas com certeza o motivo da discussão era eu, pois, apesar de estar aquecido e aparentemente limpo, estava amarrado à cama pelos pulsos e calcanhares com cordas de pano. Eu estava completamente nu, coberto apenas por um fino lençol, e tentei fingir ainda estar dormindo, mas alguém viu quando fiz força com um dos braços para tentar me soltar e deu o alerta. Todos pararam de conversar e então se dirigiram a mim.



-Você está preso, foi encontrado desacordado em um veículo rebocado - disse uma mulher bonita, mas de expressão muito séria no rosto, tentando descobrir se eu ainda estava acordado quando eles chegaram ao esconderijo - faz idéia de onde esteja? Vamos, diga logo! - Gritou enérgica. Mas eu não fazia idéia, e também não tinha forças para responder, de modo que apenas um chiado nervoso saiu de minha garganta.

-Devíamos tê-lo deixado morrer! - disse uma voz masculina.

-Ou entregá-lo aos lobos. Eles estão sempre famintos! - completou outra.

-Não adianta, ele ainda está muito fraco, deixe-o descansar. O frio quase o matou, sabia? -disse uma garota de aparentemente uns 20 anos, agora se dirigindo a mim.- Você teve muita sorte de termos parado para descansar e então encontrá-lo desmaiado, mais um pouco e teria morrido de hipotermia, com certeza.

-Sorte nada! Vocês deviam ter sido punidos por não checarem o veículo como se deve em situações como essa. Não seguiram nenhuma das regras de aproximação e abordagem. -Voltou a falar a mulher carrancuda, que aparentemente era uma das líderes de pelotão.- Poderia ter sido uma armadilha!

-Sim, senhora... - respondeu cabisbaixa a garota. Depois se aproximou e estendeu para mim uma colher com um pouco de sopa fumegante, que apesar de ter uma aparência de estrume com água suja, exalava um cheiro muito apetitoso. E quando terminei de comer e sua superiora deixou a barraca de lona onde estávamos, ela falou baixinho. - Eu sei que você não é um escravizador, mas eles -disse se referindo às demais pessoas que estavam ali - acham que você pode ser um espião, portanto o forçarão a ficar aqui até que esteja forte o suficiente para trabalhar e pagar pelos cuidados que recebeu. Ou até que os escravizadores nos encontrem. O que acontecer primeiro.

Eu não estava disposto a ficar ali, esperando que meu corpo se recuperasse, para então trabalhar como escravo, dessa vez para um bando de loucos metidos a revolucionários. Mas eu não tinha escolha, pois apesar de preferir ter morrido de frio, estava são e salvo, e agora devia-lhes esse "favor". Portanto eu ficaria e pagaria meus débitos. Ou fugiria. O que acontecesse primeiro.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

2. O Rosa Radioativa

Era, como de costume, uma manhã silenciosa, mas se podia ouvir com clareza o som de passos e palavras perdidas se aproximando mais e mais. Tentei sair do carro, mas a porta estava bloqueada pela neve que havia se acumulado mais alto que o teto. Quebrar o vidro me passou pela cabeça, mas o medo de que a neve pudesse invadir o carro e me congelar foi maior. Decidi esperar e torcer para que a neve tivesse coberto o carro por completo, assim eles não me encontrariam.

A esperança durou pouco. Quando as vozes, falando em uma língua desconhecida, já estavam se afastando do carro, alguém que havia ficado para trás as chamou de volta. A voz daquela pessoa me lembrava vagamente alguém, falava com clareza e em língua comum, permitindo-se entender até mesmo através da camada de neve. As vozes se reuniram ao lado do carro, mas dessa vez conversavam também em língua comum. Eram quatro ou cinco pessoas, apenas uma mulher. Falavam sobre estar no rastro de alguém e sobre as coisas que haviam juntado naquela expedição. Estranhei tudo aquilo, afinal, grupos de escravizadores não costumavam incluir mulheres, sempre levavam escravos e não recolhiam bugigangas por aí.

Mas, quem quer que fossem, logo me descobririam. E como não tinha por onde fugir, passei pelas ferragens que um dia formaram o banco traseiro do carro e me escondi no porta-malas. Ouvi quando um veículo se aproximou e parou bem próximo. Pouco depois meu esconderijo estava sendo guinchado pela estrada coberta de neve, e sem dizer uma palavra ou mover um músculo, observei por entre os buracos de ferrugem na lataria. Pude ver que o grupo era bem maior do que eu havia imaginado, e que nem de longe eram escravizadores. Em cada um dos muitos veículos daquele bando, que iam desde snowmobiles até um pequeno cargueiro terrestre, havia sempre um símbolo amarelo e preto, parecido com aquele que servia para indicar áreas e objetos radioativos, mas o lugar do círculo central era ocupado por uma rosa, enquanto os três trapézios em volta pareciam as silhuetas dos prédios de uma cidade. Era uma tropa do Rosa Radioativa, ou RR, como os rebeldes se auto denominavam.


Eu sabia, pois tinha passado cerca de três anos em poder deles, que o símbolo dos escravizadores era formado por duas armas cruzadas e uma caveira, tudo sobre um fundo preto, como os antigos piratas. E sabia também que o RR era um de seus inimigos mais ativos. Assim, por hora senti-me seguro estando com eles, e a cada passo que eles davam eu ficava mais e mais longe de meus perseguidores. Mas, com essa sensação de segurança, esqueci-me de que não estava vestido adequadamente, e o frio começou a dominar minha mente pouco a pouco, até que meu corpo não pode mais resistir. Dormi.

domingo, 27 de julho de 2008

1. A Fuga

Quando acordei o dia já estava claro. Eu havia dormido muito mais do que estava acostumado, talvez pelo cansaço do dia anterior, ou quem sabe pelo medo de estar novamente sozinho naquele mundo vazio. Mas isso não importava, no momento eu precisava me aquecer antes que minhas mãos e pés congelassem com o frio, afinal, a roupa que eu tinha conseguido roubar antes de sair correndo não era a mais adequada para um clima como esse. O veículo que eu havia encontrado atrás de algumas árvores mortas não estava funcionando e não poderia me tirar dali mais rápido do que meus pés permitiam, mas ao menos tinha impedido que eu virasse sorvete durante a noite. Enquanto massageava os pés e as mãos como podia, repassei mentalmente tudo a que minha vida tinha se resumido: um grande nada, tão vazio quanto o mundo em que ela se passava.

No dia em que fugi, quando eu me preparava para ir dormir, dois escravizadores entraram na tenda em que eu e outros três escravos ficávamos. Como sempre eles começaram a nos bater e insultar. Meu sangue ferveu quando um de meus companheiros teve um dos olhos quase arrancado com uma coronhada, então levantei do meu saco de dormir, agarrei o lampião do teto e avancei contra eles. Vidro e fogo brilharam na escuridão da barraca quando o lampião se estilhaçou contra a cabeça do maior deles. O incêndio se espalhou rápido pelo acampamento, só tive tempo de pegar minha mochila e, quando um dos depósitos com comida e ferramentas explodiu, eu já descia a colina em direção ao rio.



Faziam dois dias que eu não comia nada além de pedaços de carne seca. Eu sempre escondia na mochila as partes das minhas refeições que não eram perecíveis, para caso um dia eu decidisse fazer uma burrada dessas, como fugir dos escravizadores em uma noite de tempestade. Naquela noite me escondi em uma das minas em que escavávamos os restos de metal, do que um dia foi uma cidade. Mas, na manhã seguinte, tive que partir antes de os escravos voltarem ao trabalho, já que alguém certamente me denunciaria em troca uma dose de vinho ou um mísero cigarro. Quando anoiteceu me escondi no que um dia foi uma bela casa de campo, mas que hoje não passa de um amontoado de tijolos farelentos. Felizmente nas ruínas havia uma boa quantidade de lenha, que um dia alguém recolheu, e pude fazer uma sofrida fogueira para sobreviver ao frio.

Os sentimentos que me dominavam e me faziam esquecer do frio e do mundo se esvaíram quando vozes ecoaram pelas colinas e fizeram neve cair das árvores. Eu poderia apostar o meu relógio e meus óculos como aquelas vozes pertenciam aos Escravizadores, e que eles ainda estavam me procurando. Com certeza a tempestade não tinha sido suficiente para fazê-los desistir de um de seus escravos mais saudáveis, sem falar nos prejuízos que eu havia causado antes de partir, duas noites atrás. E com a sorte de que um deles provavelmente estaria com uma enorme queimadura no rosto.