Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

63. Parada Cardíaca!

Avançamos de frente à muralha de pedra a toda velocidade. Nenhum dos soldados se mexia, mas não pude deixar de por meus braços à frente do rosto e me encolher, protegendo-me do impacto. Thompson fez o mesmo, nem meio segundo depois. Mas a colisão não veio, ao invés disso tive a sensação de que caímos em queda livre por um ou dois segundos, e quando os soldados e o Von Ricky começaram a gargalhar, olhamos em volta pelas frestas do caminhão. Estávamos em um túnel cavado na rocha escura, atrás de nós, na entrada do túnel, subia uma rampa íngreme de gelo. Do lado de fora, a não ser que se estivesse acima das colinas -ou seja, voando- era impossível de se avistar a entrada do túnel. Era um método simples e muito eficaz de camuflagem.

Logo os outros três caminhões, incluindo o nosso, estavam avançando velozmente pelo túnel, que era capaz de comportar dois veículos lado a lado e tinha altura para mais de cinco homens. Ao final dos quase 3 quilómetros um grande portão de ferro utilizado para selar o túnel se abria, permitindo nossa passagem. Depois de alguns minutos na escuridão a luz que se venceu as nuvens no céu e se espremeu pelas frestas na blindagem foi suficiente para nos ofuscar por alguns instantes. Mesmo o Comandante freou bem a tempo de não derrubar uma tenda militar, depois de seus olhos se acostumarem com a luminosidade. Descemos do veículo e diversos soldados se aproximaram, Von Ricky imediatamente deu ordens para que retirassem os equipamentos dos caminhões e reparassem os danos de um deles.

Por toda a volta, sobre os restos de um pátio asfaltado, haviam tendas militares, veículos blindados, equipamentos e armas de todos os tipos. Soldados se apinhavam pelo o pouco espaço que restava, tentando realizar suas tarefas antes que algum superior os culpasse pela demora. Do lado oposto à escarpa e a entrada do túnel um grande muro de tijolos podia ser visto se erguendo acima das tendas. Fios de arame farpado cobriam toda a extensão do muro, enquanto guaritas podiam ser vistas até se perder de vista. Eu estava absorto observando todo aquele movimento, toda aquela enorme quantidade de pessoas. A última vez em que eu havia visto tantas pessoas reunidas fora durante meus anos de trabalho para os Escravizadores, e a maioria era de escravos. Mas eu não tinha tempo para pensar no passado, e Anne me lembrou disso quando desceu aos prantos do caminhão carregando, com a ajuda de Yoseph, o corpo de Lyriel. Me apressei em ajudá-los e Thompson chegou em seguida.

-Ei, você, soldado! -esbravejou Von Ricky acima do barulho que dominava o acampamento a um coitado que passava. -Mande o pessoal do hospital para cá, imediatamente.

-Senhor. Sim, senhor -tremeu o pobre soldado, e saiu apressado em busca de ajuda.

-Ela perdeu muito sangue... m-muito sangue... -Anne fazia força para que palavras saírem, mas os soluços impediam.

Quando os médicos chegaram, todos militares fardados, trazendo equipamentos e uma maca, agiram depressa. Um dos homens examinou os batimentos cardíacos, enquanto outros dois tiravam as bandagens do ferimento para examiná-lo. O buraco deixado pela bala era enorme, estava vermelho escuro e tinha uma aparência apodrecida. Eles se preparavam para colocá-la na maca quando um dos médicos gritou:

-Parada cardíaca! Parada cardíaca! Carreguem o desfibrilador e afastem-se todos! -e imediatamente os médicos colocaram Lyriel novamente no chão.

Cinco descargas depois e o coração havia finalmente desistido. A guerra fazia mais uma vítima, em sua colheita sem fim pelo mundo.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

62. Escarpa de pedra e Gelo

A viagem foi longa. Muito longa. Durou pouco menos de duas horas, mas a nós pareceu ter levado um dia inteiro.

Thompson e eu fomos em um dos veículos comandados pelo Comandante Von Ricky, enquanto Anne e Yoseph, depois de insistirem até o fim, foram permitidos de irem com Lyriel em nosso veículo, acompanhados de dois outros soldados. Um dos soldados, um homem de no máximo 30 anos, disse conhecer primeiros-socorros, mas não fez muita coisa - ou talvez não houvesse mesmo muito mais o que fazer por Ly. Desejei muito que não nos tivessem separado. Mesmo a pouco tempo juntos, sentia falta de tê-los por perto, mas Thompson me confortou quando busquei em vão, por entre as frestas da blindagem, uma visão de nossos companheiros.

Viajamos sempre por entre os vales, já que nosso veículo não era camuflado, mas a toda velocidade. Paramos bruscamente, deslizando pela camada de neve, em frente a uma encosta de pedras e neve, no final de uma garganta entre as colinas altas. Minutos se passaram sem que ninguém dissesse nada, e também não nos movíamos mais. Finalmente o rádio do veículo chiou alto e Von Ricky atendeu:

-Aqui fala a unidade Fan 01, aguardando para entrada pelo túnel. Comandante Von Ricky. Câmbio. -Mais alguns instantes se passaram, até que o veículo começou a vibrar levemente. Nenhum dos soldados parecia se preocupar, enquanto o Comandante se limitou a reclamar. -Já não era sem tempo. Aposto que estavam dormindo outra vez.

Com tudo ainda vibrando uma enorme porção da neve acumulada na encosta a frente deslizou em nossa direção. As toneladas de água congelada pararam a poucos metros de nós, mas novamente ninguém se abalou. E então avançamos, de frente àquela imensidão branca.

-Thompson? -indaguei, meio confuso.

-Não sei, mas algo me diz que eles vão tentar empurrar uma montanha com um veículo adaptado para andar pela neve. Mas é só uma suposição -falou Thompson, tentando parecer menos preocupado do que realmente estava com o que aqueles soldados fariam.

O veículo avançou ainda mais depressa, mas para nossa surpresa não colidiu com a parede de neve. Ao contrário, usou-a para subir a alguns metros acima do fundo do vale, e seguiu em direção à escarpa de pedra.

-Senhor? Hã... nós... vamos bater naquelas pedras -felei irônica e calmamente, tentando ignorar o medo que crescia dentro de mim. -E pedras são conhecidas por serem bastante duras.

-Cale-se, estamos chegando.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

60. Os Fantasmas

-PARE! -gritou Anne, em desespero. -Pare agora! -e se jogou aos pés de Yoseph, empurrando a arma para longe do amigo. Imediatamente os soldados apontaram as armas diretamente para mim e Thompson, refreando nossos impulsos de nos juntarmos a Anne.

-Oh! Mas que coisinha tocante... - falou o soldado, abaixando-se para ficar na mesma altura que eles. Esticou a mão livre e segurou o queixo de Anne, virando seu rosto de frente para o dele. -Que tal se eu fizer você tocar outra coisa também?

-Senhor? -chamou Thompson, antes que Anne pudesse responder. O rosto dela se contorcia em fúria, suas bochechas estavam vermelhas e seus maxilares travados, pronta para explodir. Foi bem a tempo.

-Meu nome é Ricky. Comandante Von Ricky, pra vocês -e levantou-se, imponente. -Agora, antes que eu perca a paciência, será que você vai me dizer de onde vocês vêm?

-Senhor, nós viemos de... -começou Thompson.

-Hã-hã! Comandante Von Ricky... -interrompeu o soldado.

-Senhor, Comandante Von Ricky -corrigiu-se Thompson, tentando não demonstrar sua raiva -nós viemos de Tradeport e estamos tentando chegar a Amrak.

-Tradport... Tradeport... -falou, e pareceu pensar em alguma coisa por alguns instantes. -O que faziam lá, e porque resolveram vir para tão longe?

-Estávamos simplesmente de passagem, mas o sherife Mark nos pediu ajuda, e então nos enviou para cá -explicou Thompson, claramente em dúvida se deveria ter dito tanto.

-MARK? MARK OS ENVIOU? -alterou-se Von Ricky. -Caralho, abaixem as armas. Agora! Mandei abaixarem as armas!

Relutantes e sem entender os outros três soldados obedeceram. Ainda receosos e também sem entender nada, abaixamos os braços. Anne voltou-se novamente para Yoseph, que cuspia bastante sangue da boca, e tentou ajudá-lo.

-Desculpem o mal jeito. Eu não podia imaginar. Vocês já eram dados como mortos. Eu sou Ricky, e esses são os Fantasmas, soldados de elite de Amrak.

61. Frieza

-Thompson, não estou entendendo... -e fiz uma careta de dúvida.

-Não pergunte a mim... -respondeu Thomspon, dando de ombros.

-Estamos esperando por vocês já faz alguns dias -explicou o Comandante. -A mensagem de Mark dizia que vocês chegariam em um ou dois dias, mas já faz muito mais tempo que vocês saíram de lá, não é? E, com esse mundo aí fora, não se pode ter muitas esperanças, então já os dávamos como mortos.

-E PRECISAVAM TER FEITO ISSO COM A GENTE? E COM ELE? -e apontou para Yoseph.

-Olhe, senhorita... -e esperou que Anne se apresentasse, mas não se apresentou. E, sem se abalar ou mover um músculo da face, continuou. -Bem, escute, estávamos atrás daqueles caras ali já fazia algum tempo -disse, apontando para os corpos na colina -e quando finalmente chegamos até eles, vocês apareceram junto. Existem centenas de milhares de quilômetros de puro nada coberto de neve suja por aí, e bem no momento em que estávamos para dar cabo deles, vocês surfam encosta abaixo e começam a se matar.

-Eeee? Vocês são loucos? -retrucou Yoseph, irritado.

-Não. -Disse Von Ricky friamente. -Supomos que vocês e eles estivessem juntos, e que por algum desentendimento tivessem resolvido se matar. Já descobrimos que foi um erro.

-Vocês estão escondidos nessas colinas desde que chegamos?! -perguntei abismado, até me esquecendo de que eles ainda eram considerados inimigos e tinham ferido um amigo.

-Não, claro que não -ainda friamente -estamos escondidos há dois dias neste local. É até engraçado você perguntar isso. Foi capaz de encontrar meus Fantasmas camuflados, mas não achar aqueles amadores cobertos com cobertores rasgados e pedaços de plástico branco.

-Eu... eu não estava prestando atenção -defendi-me, bastante embaraçado e irritado comigo mesmo pela falha. Eu não tinha visto por esse lado, e então entendi que a culpa de Lyriel ter ficado naquele estado era culpa minha. Estava prestando mais atenção na companhia que agora tinha do que na minha segurança e na deles. Deixei minha habilidade de ver os detalhes no horizonte branco de lado e agora uma amiga pagava pela falha.

-E se os tivéssemos visto e também tivéssemos atirado em vocês? -perguntou Yoseph, ainda com sangue na boca. -Aposto que essa camuflagem toda de vocês não é feita de titânio!

-Entenda que morrer, para mim, não é problema. Pelo contrário, seria uma favor. -Explicou o Comandante Von Ricky, desencaixando a mira telescópica de seu rifle de longo alcance H&K, sempre sem demonstrar emoções. -Desejo a morte de toda a humanidade. E, se possível, gostaria que fosse com minhas próprias mãos.

-Vai nos matar então? É isso que está dizendo? -falou Thompson irritado com a fala mansa do comandante.

-Não, minhas ordens são de levá-los a Amrak, e é o que farei...

-Ly! -exclamou Anne, correndo para o caminhão, enquanto um filete de sangue pingava lentamente do assoalho, tingindo a neve do lado de fora.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

59. Camuflagem

Hoje pouca coisa pode me surpreender, mas naquela época havia ainda muitas coisas a se ver, e aquele dia foi um dos que me lembro com clareza de ter tomado um susto. Jogamos nossas armas no chão e nos viramos lentamente para o lado de fora, assim como pedia a voz. Pulamos para fora, mas além do vento que cortava o vale entre as colinas não havia mais nada. Alguma coisa estava errada, e eu podia sentir.

-Mas que merda fedida, estão brincando com a gente! -vociferou Thompson, e se virou para o veículo novamente. Mas então meus dias de caminhada pela imensidão vazia se mostraram úteis, quando um tom de branco manchado na neve me chamou a atenção.

-Espere Thompson, não se mecha. Veja ali, acima daquelas rochas, uns 30 passos daqui -e fiz um sinal com a cabeça. -Eles estão nos observando antes de agir.

Neste momento dois soldados se levantaram da neve e caminharam até nós, de armas em punho. Eles usavam máscaras de gás e capacetes com viseira, roupas térmicas e botas com aquecimento, tudo disfarçado no mesmo tom de branco da neve fofa que recobria as colinas, inclusive suas armas. Eram como fantasmas deslizando. Mantivemos os braços erguidos o tempo todo, mas tenho certeza que Thompson falou alguma coisa por entre os dentes que apenas Yoseph entendeu, pouco antes dos soldados chegarem até nós. Pensei em me virar e dizer que não fizessem nada, mas provavelmente teria sido uma má ideia. Ao invés disso encarei o inimigo e simplesmente esperei. Sem que percebêssemos outros dois soldados chegaram pelas laterais do caminhão. Tinham se escondido com ângulos de visão diferente dos demais, de modo que sequer imaginei que estivessem ali. Temi por Anne quando a vi tremer da cabeça aos pés, constantemente lançando olhares temerosos a pobre Lyriel, que já não mais se movia no chão do caminhão. E nada podíamos fazer.

-Me surpreendeu, garoto. Mesmo um homem treinado teria levado muito mais tempo para encontrar meus homens camuflados nessa neve fofa. -Falou um dos homens, desafivelando a máscara de gás e a viseira. Devia ter pelo menos 40 anos, cabelos esbranquiçados, olhos castanhos, feições duras. Caminhou em volta de nós quatro analisando-nos. Então finalmente falou outra vez. -Quem, diabos, são vocês, afinal?

Ninguém respondeu.

-Eu perguntei: quem, diabos, são vocês, afinal? -aumentando o tom de voz.

E novamente não houve resposta.

-Talvez... se eu ajudar a abrir a boca, alguém resolva falar... -e agarrou Yoseph pelo pescoço, abaixando sua cabeça e forçando o cano de uma pistola por entre seus dentes. Yoseph tossiu e cuspiu sangue, ainda com a arma na boca, mas o soldado não parecia se importar. -Vamos, moleque, fale alguma coisa! FALE!

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

58. Sutura

Olhei por cima do ombro e não vi ninguém. Thompson sequer tinha se importado em olhar e simplesmente se jogou atrás do caminhão. Antes mesmo que eu pudesse chegar ao caminhão e me juntar a Anne e Thompson, que se protegeram junto a Lyriel, Yoseph já disparava sua espingarda.

-Proteja-se, Yoseph! Proteja-se! -berrava Thompson, enquanto abria a porta do caminhão em busca de sua metralhadora. Mas Yoseph estava tomado pela fúria, e só ouviu quando sua arma parou de atirar, sem cartuchos. Ainda assim ele chacoalhou-a e tentou disparar novamente, antes de se esconder para recarregá-la. Já com sua Ak-47 em punho, Thompson xingou-o e deu-lhe um safanão muito mais forte do que o que tinha dado em mim. -Seu imbecil! Se estiver morto não vai servir para nada além de alimentar os ratos!

Yoseph estava vermelho, fumegante. Não tenho certeza se ouviu o que Thompson lhe disse, enquanto enfiava furiosamente os cartuchos em sua arma, mas pareceu concordar com a cabeça.

-Onde eles estão? ONDE? -Perguntou Thompson, que espremia-se na lateral do caminhão para enxergar.

-À esquerda do topo, procure pela mancha vermelha na neve -explicou Yoseph, que subia na lateral do caminhão e procurava um ponto de apoio para disparar por cima do caminhão.

Ajudei Anne a por Lyriel para dentro do caminhão pela porta da cabine. Seu ombro esquerdo tinha um enorme buraco, e grande parte de seu sangue tinha se perdido na neve. Eu queria ajudar, mas Anne tinha entrado em um estado de extrema concentração, e, por mais que eu gritasse para que ela dissesse do que precisava para salvar Lyriel, não recebia resposta. Com um kit de primeiros-socorros militar começou a limpar o ferimento e preparar agulha e linha para fazer a sutura. Lembro de ter pego minha pistola e fazer menção de sair e ajudar Yoseph e Thompson, mas ao espiar por uma das frestas entre a blindagem da janela vi que não havia mais no que ajudar. Ainda pude ver quando um homem teve seu corpo semi-dilacerado, por um dos disparos de espingarda, e outro teve seus miolos espalhados na neve pela arma de Thompson.

-Ly! Como você está? -entrou gritando Yoseph pela porta traseira e se agarrando ao braço ileso de Lyriel, que permanecia estirada no chão do caminhão.

Os lábios de Lyriel estavam roxos, sua pele ainda mais branca, e sua respiração diminuía a cada instante. Anne se esforçava para terminar de suturar o ferimento e fazer o curativo. E assim que o fez, cobriu-a com diversos cobertores, tentando mantê-la aquecida.

-Ela perdeu muito sangue -explicava Anne, aflita e com lágrima nos olhos -muito sangue, não sei se...

-TODOS OS QUE ESTIVEREM NO INTERIOR DO VEÍCULO, LARGUEM SUAS ARMAS E SAIAM LENTAMENTE -ecoou uma voz grave e eletrônica, interrompendo Anne e fazendo todos enrijecerem. -NÃO SE PRECIPITEM, OU NÃO HAVERÁ MISERICÓRDIA.