Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

domingo, 30 de janeiro de 2011

98. Escondidos

Desci até o primeiro andar do prédio o mais rápido que pude. Caminhei em completo silêncio corredores de escritórios arruinados até a fachada do prédio, de onde podia observar o blindado parado na rua, cinco ou seis metros abaixo. Os soldados que tentavam colocá-lo em funcionamento haviam interrompido o serviço e agora terminavam de recolher suas ferramentas. Os outros não podiam ser vistos, mas pelas vozes que ecoavam do hall de entrada pude perceber que haviam outros ali, esperando no topo da escadaria que subia da rua. Alguém gritava ordens, mas o vento forte e meu coração disparado abafavam as vozes e me impediam de entender com clareza o que planejavam. Estava óbvio, infelizmente, que não passariam a noite no blindado.

Os uivos e grunhidos dos diabos aumentavam rapidamente, a medida que todos deixavam suas tocas em busca de presas desavisadas pela cidade. Os soldados, por sua vez, pararam de falar subitamente. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar o desespero crescente naqueles homens com a aproximação de tais criaturas. Fiquei esperando, torcendo para que corressem ao blindado assim que os primeiros diabos entrassem pela porta e avançassem por sua carne, mas duvidava que fossem tão inexperientes a ponto de não conhecerem os perigos de se passar uma noite desprotegido nem Bermil. Aqueles não eram soldados de Amrak, com certeza, mas tampouco eram burros.

Logo os diabos vieram, às centenas, com seus dentes pontudos e sua pele esticada sobre os ossos. Saltavam e rosnavam, mordendo uns aos outros em um frenesi sanguinário. Muitos entraram no prédio desembestados, provavelmente procurando novos corpos para um banquete fácil, mas em poucos minutos todos tinham saido sem sucesso. Nem um único disparo foi dado, ou ao menos não pode ser ouvido, e isso só poderia significar que os diabos não haviam encontrado os soldados. Tentei me lembrar de um lugar onde aqueles homens pudessem ter se escondido, mas todas as portas do térreo haviam sido arrancadas muito tempo atrás, e não havia material nem tempo suficiente para que uma barreira fosse construída de modo a isolá-los em algum cômodo.

Ou eles haviam sumido, ou ainda estavam por ali em algum lugar. E quando esse lugar me veio à mente...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

97. Angústia

Recostado no parapeito, podia sentir meu coração bater forte no peito. Não fosse pelos óculos, meus olhos congelariam, tão abertos estavam, enquanto minha mente pensava em milhares de possibilidades ao mesmo tempo.

-Lobo para Águia -chiou o rádio, com uma voz desconhecida e diferente das anteriores. Para meu alívio. -Estamos retornando. Câmbio e desligo.

Tentei me tranquilizar, convencendo a mim mesmo de que Passan tinha suas câmeras espalhadas, e que provavelmente sabia antes mesmo de mim da presença dos soldados. Mas ainda me preocupava que pudessem empreender uma busca mais detalhada ao encontrar os vestígios dos dias anteriores no interior do prédio. Os Diabos tinham se refestelado com os corpos dos caçadores, mas em troca haviam deixado sangue espalhado por todo o andar térreo do lugar. Senti uma vontade súbita de descer as escadas e ajudar meus companheiros, mas algo dentro de mim dizia para esperar.

Ainda meio assustado levantei-me e olhei para baixo. Os dois soldados tinham voltado a caminhar pela rua, checando cada construção nos arredores, mas os que haviam entrado no prédio continuavam fora de vista. Corri então para o outro lado da cobertura e olhei para o antigo jardim que fazia fundos para outros prédios. Temia que pudessem subir pelas escadas de emergência e vasculhar o prédio todo. E apesar de o primeiro lance de escadas ter sido bloqueado com entulhos quase duas décadas atrás, ainda havia no topo uma pequena passagem entre os blocos de concreto e tijolo, pela qual eu me espremia para subir aos outros andares. Duvidava que eles subissem, mesmo que não houvesse a pilha de escombros, mas não saber onde estavam era angustiante.

Com o passar das horas a angústia apenas aumentou. Os soldados tinham se concentrado, aparentemente, na entrada do prédio, deixando apenas dois dos seus na rua a cuidar dos reparos do blindado. Não vi comoção entre eles, e deduzi que felizmente não haviam encontrado Passan e Lisie. Em compensação o frio tinha aumentado muito durante a tarde, o vento parecia cortar minhas bochechas desprotegidas, e o pequeno lanche que eu havia levado há muito acabara. A noite se aproximou lentamente, escurecendo as nuvens e enchendo as ruínas de Bermil com sombras ameaçadoras. E então, quando a noite chegou e os uivos dos Diabos começaram, o medo espantou a angústia e se alojou em mim com unhas e dentes.

Ou os soldados deixavam o prédio, ou a noite seria longa. Muito longa.

domingo, 9 de janeiro de 2011

96. Raposa Enguiçada

O som do blindado vinha da frente do prédio. Levantei e já começava a correr em direção ao parapeito quando o barulho de um segundo motor se sobressaiu ao vento. Em um susto me joguei de volta ao esconderijo e observei o helicóptero passar rasante, quase ensurdecedor. Torci para que não tivessem me visto e me encolhi de medo apenas de pensar na possibilidade.

-Águia para Raposa. Estamos na escuta. Temos autonomia para apenas mais uma passagem, e então retornaremos. Câmbio -gritou o rádio, ainda no volume máximo, fazendo-me arregalar os olhos e disparar o coração.

Com o coração martelando no peito, girei o botão do volume até quase deixá-lo no mudo. Era impossível que alguém ouvisse o som do rádio, mesmo em um dia sem vento, mas eu não estava para me arriscar. Esperei pacientemente, enquanto tentava relaxar e por as idéias em ordem, que o helicóptero fizesse a volta e passasse por ali novamente. Mas logo perceberia que o helicóptero seria o menor dos problemas. Tão logo a aeronave passou em rasante pela região, o rádio captou nova transmissão.

-Raposa para Águia. Não temos condições de retornar, precisamos parar e reparar o veículo. Câmbio e desligo.

Silêncio no rádio. Esperei alguns segundos mais e deixei o esconderijo. Consegui ver o ponto branco se afastar ao longe, seguindo para o sul pelo rumo do rio. Me aproximei então do parapeito e olhei para baixo. O blindado estava parado, com uma das lagartas sobre a calçada, bem a frente da escadaria de entrada do prédio.  Dois soldados vestindo roupas camufladas brancas andavam pela rua, de armas em punho, enquanto outros dois subiam os degraus. Meu sangue congelou, e o coração quase parou de bater. Lisie e Passan estavam para serem descobertos! Peguei o rádio, coloquei na frequência de Passan e apertei o botão para falar. De súbito percebi a enorme burrada. Soltei o botão e de olhos fechados desejei ardentemente que os dois não tivessem ouvido a tentativa de chamada.

Mas instantes depois o rádio chiou quando uma nova conexão foi estabelecida. Imediatamente os soldados que estavam na rua estacaram, olhando ao redor.

domingo, 2 de janeiro de 2011

95. Raposa Blindada

Subi os lances de escada até o último andar o mais rápido que pude. Mesmo tendo um preparo físico invejável, sugava o ar gelado em grandes golfadas ao atingir a cobertura do prédio, exausto. Quando finalmente consegui me recompor e olhar em volta já não havia nada a se ver. O helicóptero tinha desaparecido de vista, camuflado nos infinitos tons de cinza e branco que cobriam a cidade e nublavam o céu. Me concentrei, tentando ouvir o barulho do motor, mas o vento era forte demais ali em cima.

A aparição misteriosa daquele helicóptero deixou rapidamente meus pensamentos ao contemplar Bermil. Daquele lugar privilegiado praticamente toda a antiga metrópole podia ser avistada. Colinas delimitavam o que foi a área urbana a leste, ao sul podia-se divisar os restos agonizantes de um rio assoreado pelos escombros da cidade, ao norte e oeste uma planície começava pouco antes do horizonte, indicando onde a área rural da região um dia estivera. Nada se movia na paisagem. Nada era colorido até onde a vista podia alcançar. E ainda assim a visão era maravilhosa. Levei muitos minutos admirando cada detalhe, tentando imaginar como seria morar em um lugar junto a milhares de outras pessoas. Aquilo tudo era desconhecido para mim, e para sempre continuaria a ser.

Deixei os sonhos de lado e voltei a me preocupar com o helicóptero. Aquela era a primeira aeronave que eu via efetivamente voando. Todas as que eu já havia visto estavam destroçadas, reduzidas a pilhas de metal enferrujado, ou sem combustível suficiente para fazê-las funcionar. Ver em funcionamento, e sobrevoando uma área urbana completamente arrasada por bombardeiros duas décadas atrás, era algo altamente incomum -até mesmo para um mundo como esse. Desejei que o helicóptero estivesse apenas de passagem, mas no fundo sabia que não estava. Eu podia senti-lo fazendo a volta ao longe, para novamente sobrevoar a cidade. Peguei o rádio, pensando em alertar Passan e Lisie, mas temi que, do mesmo modo como pude ouvir a chamada, quem quer que fosse também poderia me ouvir. Então me escondi o melhor que pude sob uma cobertura no telhado e esperei.

Poucos minutos se passaram até o barulho de motor pudesse ser novamente ouvido por entre as rajadas de vento. Mas dessa vez vinha de baixo, da rua.

-Raposa para Águia, Raposa para Águia. Na escuta?

O som das lagartas de um blindado se arrastando pelo asfalto logo se tornou inconfundível.