Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

65. Pôr-do-Sol

-Alto! Quem vem lá?

E com o grito do soldado saímos de nossos devaneios -eu já tinha me acostumado com devaneios, mas sempre me assustava ao sair deles, percebendo que o mundo não parava para me acompanhar em minhas viagens mentais. Dois homens vestindo uniformes camuflados para neve saíra das guaritas ao lado do portão de grade e se aproximaram de nós. Outros homens permaneciam nas torres e além das grades, de armas em punho e feições nada amigáveis.

-Identifiquem-se -falou um deles, puxando a mascar que protegia seu rosto do frio, deixando ver cicatrizes e marcas de feridas e queimaduras por toda a face e pescoço. -Vêm a negócios ou como cidadãos?

-Ambos. Sou Thompson, este é Nuke, e aquela é Anne. Viemos de Tradeport.

-Hum, sei. Vocês poderão ficar por até uma semana, depois disso terão de trabalhar para poderem permanecer aqui. Existem empregos na cidade e fora dela, todos eles são pagos diretamente pelo governador de Amrak -ia falando o soldado, enquanto fazia anotações em uma prancheta. Um terceiro soldado se aproximou trazendo três pulseiras e um aparelho estranho, que mais parecia uma pistola com uma tela e um teclado. -A comida é distribuída todos os dias antes do por-do-sol, portanto não percam a hora. Apresentem-se à Imigração para que lhes arranjem moradias.

Nos explicaram que as pulseiras serviriam para nossa identificação dentro da cidade, e que sua retirada era expressamente proibida, sujeito a graves punições -limitando-se a repetir enfaticamente "graves", completando com um olhar fulminante, quando perguntamos quais seriam essas punições. Em seguida prenderam com a pistola as bordas das pulseiras em nossos braços, que apitaram levemente ao serem ativadas. Retiraram também nossas armas, garantindo que elas seriam armazenadas no arsenal, devidamente identificadas segundo nossas pulseiras. Relutantes, Thompson e eu nos entre olhamos, mas não tínhamos opções, então nos desfizemos das armas.

-Sigam pela avenida até a praça central. Do lado direito encontraram o prédio da Imigração. Sigam diretamente para lá, entenderam? Se não nós saberemos -e apontou para as pulseiras.

Ao primeiro passo além do portão, o primeiro dentro de Amrak, lembrei-me dos veículos que tínhamos abandonado junto ao acampamento militar. Com um tapa na testa, vire-me para Thompson, mas ele se adiantou enquanto eu ainda abria a boca:

-Sim, o caminhão e o carro ficaram. Eu volto pra pegar depois, mas primeiro... -aproximou-se de mim e girou-me nos calcanhares- observe.

Amrak se erguia por toda a volta de uma grande bahia. Grandes blocos de gelo dançavam sobre as ondas do mar, como as estrelas no céu de antigamente. Casas, prédios e grandes galpões se amontoavam, dos sopés das colinas sobre a qual estávamos até o quebra-mar, como se preparassem para mergulhar nas águas escuras do oceano. A noite ia arrastando suas sombras sobre a cidade, e apenas sua silhueta podia ser vista contra os últimos raios de sol que pulavam de debaixo das ondas no horizonte.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

64. Adeus, Branca de Neve

Von Ricky virou-se e puxou um de seus homens, que ainda olhava para o rosto pálido de Lyriel, pelo ombro, afastando-se. Nesta hora lembrei-me de uma história, um conto de fadas, como se dizia antigamente, em que uma senhorita de pele tão branca quanto a neve havia sido envenenada e dormia profundamente, sem que nada pudesse acordá-la, até que um príncipe surgiu e, com um beijo, a fez despertar. Desejei que houvessem príncipes, e que um deles pudesse vencer a dama da morte que, invejosa da beleza alheia, levava Lyriel de seus entes queridos.

Mas não apareceu nenhum príncipe, e logo os médicos levavam-na embora, coberta com um lençol branco esfarrapado. Outro militar, de alta patente, assumiu o comando da situação agora que Von Ricky se fora. Seus homens nos empurraram com violência, mandando que fossemos embora, mas Yoseph e Anne não queriam deixar Lyriel sozinha. Yoseph, aos gritos, e mesmo com fuzis apontados para sua cara, convenceu-os a deixarem que ele acompanhasse a irmã morta. Mas Anne, que xingava os soldados de nomes que fariam até o inferno pequeno, nada conseguiu. Thompson e eu tivemos de arrastá-la pelos braços para longe, e só depois de muita conversa é que conseguimos explicar que nada mais podia ser feito, e agora precisávamos cuidar de nós mesmos.

Um soldado nos apontou um caminho por entre as barracas e mandou que nos dirigíssemos aos portões de Amrak. A princípio não entendemos, mas como já virara as costas e ia embora, não pudemos questionar. Se li não era ainda a cidade, onde ela estaria? Não precisamos de muito tempo para encontrar a resposta. Além das tendas havia um muro, tão alto que nem mesmo quatro pessoas uma em cima da outra poderia atingir seu topo, um grande portão de ferro fazia a passagem para o outro lado. Caminhamos pelo portão sem que nenhum soldado nos questionasse -se é que algum deu pela nossa presença- e seguimos pela estrada de asfalto que descia a colina e se afastava cada vez mais da escarpa.

Era a maior estrada asfaltada que eu me lembrava de ter visto que não estivesse coberta de neve. Havia uma camada de quase um metro de altura de neve nas laterais, mas sobre o tapete negro praticamente não haviam pontos brancos. Parcialmente soterrados, e por todo o caminho, uma infinidade de veículos enferrujava e desaparecia lentamente, desde carros de passeio até antigos caminhões de bombeiro, carros de polícia, motos e bicicletas. Os motores e quaisquer peças úteis haviam sido retirados dos veículos, mas as carcaças formavam um imenso cemitério de ferro retorcido, lembrando-nos constantemente de tudo o que os homens haviam aberto mão ao decidirem matar uns aos outros, e de tudo o que perdemos nessa jornada.

Lyriel não seria mais do que aquelas carcaças para um mundo que apodrece lentamente rumo ao esquecimento. Mas, para nós, mesmo em nossas poucas lembranças junto a ela, sempre haveria um príncipe que a fizesse acordar e se juntar a nós uma vez mais.