Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

72. Campo de Exploração de Destroços

A inesperada e súbita partida a Bermil aconteceu ainda aquela noite. Quando fui embarcado no veículo que me levaria aos campos de exploração de destroços, descobri que minha bagagem tinha sido arrumada e já estava embarcada. O caminhão que faria o transporte era grande, e dentro haviam cerca de outros vinte soldados de Amrak, todos pouco mais velhos que eu, com excessão de dois, que pareciam ter idade para ser pai qualquer outro ali.

Ninguém conversou muito durante todo o percurso, que não era maior que vinte quilómetros, mas pelas poucas palavras trocadas pude perceber que havia mais em comum entre nós além da idade: todos havíamos, de algum modo, tocado em um ponto indevido das fundações político-militares de Amrak e seu exército, e de suas relações com outras cidades e facções. Bermil não era simplesmente uma fonte extra de recursos e riquezas, era um lugar suficientemente longe de Amrak no qual espertinhos curiosos podiam ser mantidos longe de descobrirem mais sobre o que não deviam. Chegamos com a noite ainda escurecendo as nuvens e fomos mandados direto às barracas de campo, onde teríamos pouco menos de duas horas de sono antes que começássemos nossas novas funções ao nascer do dia.

Pela manhã pudemos vislumbrar pela primeira vez o que nos aguardava. Aquele ambiente era novo para a maioria, mas como um ex-escravo eu estava acostumado e não me surpreendi nem um pouco. O acampamento havia sido erguido em uma clareira aberta em meio aos escombros de dezenas de construções. O entulho retirado tinha sido empilhado por toda a volta, criando uma espécie de muralha, e apenas uma única entrada, apontando para onde o sol nascia por detrás das nuvens, havia sido deixada para a entrada de veículos. Cerca de cento e cinquenta soldados podiam se apinhar por ali, mas o efetivo era de mais de duzentos e oitenta, de modo que tudo funcionava em esquema de revezamentos.

Sob o comando e a proteção dos militares estavam grupos de trabalhadores livres, vindos de outras duas cidades da região: Mora e Trapas. Os recursos desenterrados das ruínas eram reciclados nas indústrias e se tornavam equipamentos e principalmente armas. A tecnologia retirada dos escombros também era muito valiosa, e amigos podiam matar uns aos outros por um simples chip de computador ou disco rígido em boas condições. Eu esperava que meus anos de experiência no assunto me garantissem um pouco de sussego, mas meu primeiro turno de guarda mostrou o que eu temia: o mundo era mais do que ruínas, cidades decadentes e desejos de riquezas, era um lugar de política e poder, com monstros reais e imaginários, no qual nos afogaríamos muito em breve.

71. Wisky, Charutos e Mulheres.

Von Ricky permaneceu em silêncio durante todo o caminho de volta à Amrak. Concluí que era pelo fato de ter perdido um de seus homens, famosos por serem rigorosamente selecionados dentre os melhores do exército pelo Comandante. Desde então não o vi mais pelo acampamento, assim como qualquer membro dos Fantasmas, e só pude imaginar que estariam em alguma missão por aí.

Passei ainda outras duas semanas como vigia da muralha. Foram dias, como sempre, de completo tédio, ainda mais que a matilha de lobos tinha deixado de frequentar aquelas colinas depois do incidente. Mas, felizmente -ou infelizmente- meu tormento não durou muito, e em um noite de forte tempestade fui chamado a falar com o comandante em serviço. Dois soldados vestindo tinham vindo me dar o recado e me escoltar até a tenda onde eu deveria me apresentar. Nenhum deles respondeu às minhas perguntas, permanecendo em silêncio todo o tempo, e como tinham os rostos cobertos por gorros e máscaras para se protegerem do frio, não pude reconhecê-los. Durante todo percurso mantiveram suas metralhadoras em punho e permaneceram sempre um passo atrás de mim.

Dois outros soldados guardavam a entrada da enorme tenda, e novamente não pude identificar nenhum deles. Dentro havia vários outros, mas a luz fraca de dois pequenos lampiões mal era suficiente para iluminar as mesas e cadeiras que havia no caminho. Ao fim da tenda, sentado em uma cadeira reclinável acolchoada estava acomodado o dito comandante. Como o vilão de algum filme antigo ele girou em sua cadeira ficando de frente para mim, fumava um charuto com uma mão e com a outra bebia wisky em um copo com gelo.

-Qual seu nome, soldado? -perguntou o comandante, cujo rosto e nome estavam escondidos pelas sombras.

-Senhor, Nuke, senhor -respondi, batendo continência.

-Nuke? Seu nome é Nuke, soldado? -falou, colocando o copo na mesa e soltando uma gargalhada engasgada em wisky. Os que estavam em volta, também protegidos nas sombras, riram em concordância, como se estivessem brincando de siga o mestre.

-Senhor, sim senhor -respondi novamente, segurando minha fanfarronice e minha irritação dentro de mim.

-Estranho... Bom, fui informado de suas habilidades de observação, que resultaram na... hum... -e ficou um instante ponderando as palavras antes de continuar- missão bem sucedida com Comandante Von Ricky. Por isso, creio que seu talento será mais bem aproveitado nos campos de exploração de destroços, em Nova Bermil. Prepare-se, você parte dentro de uma hora.

E afundou-se novamente em sua cadeira, bebeu de seu wisky e fumou de seu charuto.

Enquanto saía ainda pude ver silhuetas voluptuosas de mulheres nuas dançando sobre soldados de sorte, em um mundo completamente fora de minha realidade.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

70. Velhos Conhecidos

Quando dei por mim, ainda caído no chão, um clarão vermelho iluminava os céus além da colina onde avistei o atirador. Von Ricky me observava de cima, assim como outros dois soldados, enquanto um terceiro soldado estava ajoelhado ao meu lado.

-Sortudo desgraçado... -comentava o comandante com seus soldados. -Pelas minhas contas esse moleque já devia ter morrido umas três ou quatro vezes desde que o encontrei.

-Acho que ele vai ficar bem, senhor -disse o soldado que estivera ajoelhado. Apenas quando ele se levantou pude ver a cruz vermelha em seu ombro, indicando sua especialidade médica.

-Ótimo, levante-se, temos que ir.

Eu até tentei, mas uma forte dor nas costelas me impediu. Dois soldados tiveram de me ajudar a ficar de pé. Olhei então para baixo e vi um enorme buraco no uniforme camuflado do exército de Amrak. O atirador tinha tentado me atingir, mas o tiro passou de raspão, dilacerando a roupa e o colete a prova de balas que eu usava. Apenas a pancada resultante do impacto tinha me ferido, mas ainda assim doía profundamente. Olhei em volta e tentei entender o que tinha acontecido nos instantes em que fiquei desorientado. Von Ricky falava pelo rádio, alguns soldados tinham se expalhado pelas redondezas e os dois veículos que a pouco tinham partido em busca de quem quer que estivesse naquelas colinas estavam retornando. Reparei que em um deles havia buracos de bala que não existiam quando saímos da cidade.

-Comandante! Comandante! -chamei, fazendo caretas de dor ao caminhar. -O que houve, afinal?

-Um homem abatido e um veículo levemente danificado, do nosso lado -disse virando-se para mim. E continuou, com a mesma seriedade de sempre. -Dois mortos, dois snowmobiles e um carro destruídos do outro lado. Pra sua sorte. Eu já estava esperando pelo ensopado no jantar

-Tá, beleza, ensopado... Quem eram eles, afinal? -ignorando a piadinha sarcástica.

-Eles tinham isso costurado nos uniformes -e esticou o braço, me passando um brasão.

Eu já havia visto aquele símbolo: um cálice branco com uma hóstia e uma auréola em volta.

69. Rastros

Enquanto avançávamos rapidamente pelo túnel repeti mentalmente várias vezes as palavras de Von Ricky. É bom que você esteja certo, ou não teremos apenas carne de rato no ensopado de hoje. Mas mesmo ele não se arriscaria com seus superiores saindo da cidade sem um bom motivo, e só o faria pois confiava em minhas habilidades de observação depois que encontrei seus melhores homens camuflados na neve. Estávamos ao todo em vinte, divididos em quatro veículos blindados.

Chegamos à colina cerca de 40 minutos depois de eu ter observado ali a sombra. Com o binóculo era possível observar os guardas patrulhando o muro da cidade ao longe, mas em toda a nossa volta nada mais podia ser visto. Von Ricky estava obviamente transtornado, mas antes de explodir, mandou alguns de seus homens em duplas fazerem uma varredura nos arredores. Não demorou muito até que um deles encontrasse algo. Cerca de 100 metros de onde paramos haviam alguns lobos mortos ao lado de um bosque de pinheiros secos. Uma trilha de pegadas e sangue seguia por entre as árvores e terminava em um rastros de snowmobiles.

-Times Alpha e Bravo, peguem os veículos e rastreiem a área, eles não devem estar muito longe -falou Von Ricky, enérgico.

Voltamos para os veículos e dois deles seguiram por entre as árvores mortas. Von Ricky não largava do binóculo, assim como eu. Procurávamos por entre as árvores e pelas colinas por qualquer sinal de movimento, mas além de nós, nada se movia por ali. Logo as duas equipes do Comandante tinham se afastado e sumido além de uma enorme colina. Pelo rádio reportaram que nada havia depois do bosque, e que as marcas seguiam por uma grande planície sem nada à vista.

-Filhos da puta, ratos sarnentos... -rosnou por entre os dentes Von Ricky. -Voltem pelo leste, por detrás das colinas e... -o estampido de um disparo cortou o silêncio e fez o comandante se calar. Um de seus soldados caia inerte ao chão, enquanto os outros erguiam suas armas e procuravam onde atirar. -Nuke, de onde veio esse tiro? -esbravejou comigo, agarrando-me pelo colarinho e quase me tirando do chão.

Olhei desesperado em volta com o binóculo. Varri todas as colinas, do bosque à cidade sem ver, novamente, nada. Refiz a observação, e dessa vez algo me chamou a atenção. Em uma colina do lado oposto ao bosque uma rocha se mexeu e sumiu atrás de outra maior.

-Ali, entre as pedras! -gritei. E voltei a olhar pelo binóculo, bem a tempo de ver o clarão do segundo disparo e ser jogado para trás uma fração de segundo depois.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

68. Sombras nas Colinas

Patrulhar o muro de Amrak com certeza não era bem a concretização de meu desejo de voltar a caminhar. Infelizmente, para um recruta como eu, ou era patrulhar as muralhas, ou limpar as latrinas. Como o soldado que brigou comigo ainda andava desejoso de uma revanche, acharam melhor que eu me mativesse o mais longe e ocupado possível, e um turno duplo na torre de vigia era ideal para isso.

As semanas como vigia foram um tédio total. Mas ao menos eu havia recebido um binóculo militar eletrônico, capaz de um aumento de 100 vezes e visão noturna. E foi com ele que observei, por duas vezes, uma enorme matilha de lobos cruzar as colinas não muito longe da cidade. Pouco antes do anoitecer, quando já quase não havia mais luz a iluminar as ruínas do mundo, um enorme lobo de pelos brancos surgia detrás das colinas e farejava a brisa noturna, então descia lentamente, parando aqui e ali para observar. Apenas quando seu líder chegava ao fundo da colina os outro membros da matilha saiam das sombras e avançavam pela neve fofa às dezenas.

Foi quando achei que veria a matilha pela terceira vez que minha chance de sair dos turnos de vigia apareceu. Quando os últimos raios de sol se expremeram por entre as núvens uma pequena sombra surgiu acima de uma das colinas ao longe. Esperei que o lobo ancião surgisse e em seguida sua matilha, mas ao invés disso a sombra ficou lá parada, como uma mosca em uma toalha branca. Longos minutos se passaram e nem um movimento houve. Chamei um dos guardas que passava pela muralha logo abaixo da guarita e pedi que ele usasse seu binóculo, mas já não havia o que olhar. A mancha tinha sumido. O soldado riu-se de mim, disse que era melhor eu descansar um pouco e saiu. Eu sabia, porém, que havia alguma coisa diferente acontecendo. Aquele era o dia em que os lobos costumavam cruzar aquela região, e se eles não o fizeram deveria haver um motivo.

É claro que nenhum dos oficiais em serviço naquele momento estava disposto a mecher os traseiros gordos para fazerem uma verificação, ainda mais vindo de um recruta com três semanas de serviço. Mas eu sabia a quem recorrer, e se eu estivesse certo meus dias de vigia chegariam ao fim.

-Senhor?

-Ainda é Comandante Von Ricky, para você.

67. Exército de Amrak

-O que quer aqui moleque? Não temos pipa, bola nem peão aqui pra você brincar -esbravejou o soldado, que se esparramava em uma velha cadeira de plástico atrás de uma pequena mesa também de plástico.

-Quero me alistar -falei sem dar ouvidos à ele.

-Ah, sei. E acha que vai ganhar um pirulito, né? Vai fazer o que com o pirulito, enfiar no cuzinho até ele derreter?

A princípio pensei em não dizer nada, e ficar ali parado até que ele fizesse meu cadastro, mas meu corpo tinha sido inundado de adrenalina e minha boca já não era mais controlada por mim.

-Talvez. Mas eu prefiro enfiar no seu e ver o palito sumir.

O soldado arregalou os olhos imediatamente. Quem passava em volta congelou no lugar, esperando a reação. O homem então ficou vermelho, e numa explosão de raiva voou por cima da mesa, jogando ela e a cadeira longe, numa nuvem de folhas de papel rodopiantes.

-VOU TE MATAR, SEU FEDELHO DESGRAÇADO, FILHO DE UMA PUTA DEFORMADA RADIOATIVA.

Nesse ponto meu pescoço era esmagado pelas duas mãos do soldado, e metade do acampamento tinha se reunido a nossa volta gritando por sangue. Eu tentava me defender como podia, socando e estrebuchando, mas meu agressor era muito mais forte. Num último suspiro antes de sufocar estiquei meus dedos em seu rosto e comprimi seus olhos com toda a força que consegui juntar. Ele então soltou meu pescoço e levou as mãos ao rosto num urro de dor. Contorci-me para trás, coloquei meus pés em seu peito e empurrei-o para longe. Eu ainda tossia, tentando respirar, quando ele finalmente conseguiu abrir os olhos e me encontrar. Ele cambaleou até mim, com o rosto ainda mais vermelho que antes, e chutou-me no estômago. Senti a biqueira da bota militar cutucar meu órgãos antes de cair no chão, encolhido para escapar dos outros chutes que viriam.

-Pare! -falou uma voz grossa, para meu alívio. Eu já estava para me arrepender da bravata quando um homem, vestindo um uniforme diferente dos demais, cheio de medalhas e brasões, encerrou a briga. Todos os soldados bateram continência e se puseram em posição, aguardando ordens. -Estão todos dispensados. Tratem de voltarem a seus afazeres.

-Senhor, eu... -começou a falar o soldado com quem eu brigara.

-Cale-se!

-Senhor, sim senhor -falou o soldado, colocando-se em posição de sentido.

-Ele queria se alistar, soldado?

-Senhor, sim senhor.

-Se já apanhou o suficiente, garoto -disse ele a mim- recomponha-se e apresente-se ao comandante em serviço. Você acaba de assinar seu atestado de óbito. Seja bem-vindo ao exército.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

66. Amrak

Os dias passavam lentamente para mim. Thompson tinha se acostumado na primeira semana, arrumado um emprego junto aos pesquisadores da cidade, e encontrado uma pequena casa para morar. Anne tinha reencontrado sua família, e agora desfrutava a companhia de seus tios. Enquanto isso, eu me esforçava para fazer milagres no conserto dos veículos da oficina onde eu conseguira emprego. Quase não havia veículos na cidade, já que a maioria era usada pelo exército, e quando havia, não se encontravam peças que lhes servissem, então quase não pude desenferrujar meus conhecimentos de mecânica.

Passava a maior parte de meu tempo livre lendo qualquer coisa que encontrava, desde livros à revistas e quadrinhos. Era minha forma de aprender, já que não havia escolas, e de me distrair, dando as peças para que minha imaginação montasse o quebra-cabeças daquele mundo passado, do qual restavam apenas fragmentos. As visitas semanais de Anne e Thompson me ajudavam a conhecer um pouco do universo próprio em que a cidade estava mergulhada, mas uma rápida olhada nas ruas me desanimavam um passeio. Anne sempre me convidava a visitar seus familiares, mas eu não tinha vontade de vê-los, pois sabia que isso me faria sentir falta de meu pai. E já haviam se passado mais de três anos desde a última vez em que nos vimos.

Haviam muitas pessoas pelas ruas, a maioria cuidando de seus próprios assuntos, o que as deixava sem tempo de sequer olharem para aqueles que lhe cruzavam o caminho. Emprego é o que não faltava pela cidade. Em todo o canto era preciso de gente especializada para isso ou aquilo, e em nenhum canto se encontrava quem trabalhasse. O salário, que servia para a compra de comida e aluguel de moradia, era quase sempre o mesmo: 200 créditos Amraks, pagos diretamente nas pulseiras eletrônicas. Haviam empregos mais bem remunerados, mas normalmente em serviços que demandavam alto conhecimento específico, como o de pesquisas tecnológicas de Thompson, oferecidos pelo governo de Amrak. A comida -que eu não suportei desde o primeiro dia, me fazendo ter saudades da carne seca de iguana e da ração militar- era composta por uma dezena de cápsulas e uma massaroca de fibras. As cápsulas continham todos os nutrientes e minerais necessários para suprirem as necessidades diárias de cada pessoa, enquanto a massa, que alguns diziam lembrar macarrão, era necessária para evitar o atrofiamento do sistema digestivo pela falta de ingestão de alimentos sólidos. Tudo era fabricado em uma indústria, cuja chaminé soltava constantemente uma espeça fumaça negra, de aparência bastante duvidosa.

Mas a comida, os empregos, as pessoas e solidão não me incomodavam tanto quanto ficar parado. O fato era que eu não suportava ficar preso àquela cidade, dentro de seus limites murados. E apenas três meses se passaram antes que eu decidisse retomar minhas andanças em busca de coisa alguma, pelos escombros e amontoados de neve daquele mundo arrasado.