Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

77. Sono, Sonho e Sangue

Perdi a noção do tempo. Vaguei sem rumo pelas ruas, sorrateiro. As sombras da noite pareciam se mover, fechando-se sobre mim. Cada canto escuro parecia esconder olhos a espreita. Ao longe podia ouvir os uivos e ganidos dos Diabos. A brisa que soprava incessante gelava meu corpo como se eu estivesse nu. E, bem verdade, era assim que me sentia dentro de cidades. Muitos esconderijos, armadilhas e inimigos bastando atravessar uma rua não é boa pedida para um cara sozinho e mal equipado. Já espaços abertos são perigosos contra rifles, claro, mas olhos atentos e um pouco de sorte são suficientes para a maioria dos problemas.

Muito tempo depois de deixar o acampamento comecei a observar a silhueta que a cidade formava contra os primeiros raios de sol que venciam a grossa camada de nuvens. A aproximação do amanhecer trazia um pouco de esperança. Não que eu temesse ficar preso ou mesmo morrer na cidade, mas um novo dia era sempre um novo dia, por mais clichê que isso soasse nos livros em que li. E quando minhas pernas pediam descanso e meus olhos começavam a se fechar pela falta de sono de dois dias, procurei abrigo em um prédio abandonado. As janelas tinham se quebrado há muito, apenas alguns lugares ainda tinham uma fraca camada de tinta cobrindo os tijolos, as portas tinham sido arrancadas, e no topo da escada que levava ao hall de entrada apenas os vasos de planta ainda mantinham-se inteiros... sem planta alguma.

Subi os degraus de três em três. Sair dos destroços da rua era um alívio, mas pensar em descansar era ainda mais reconfortante. As nuvens no céu se iluminavam quando terminei de fazer uma rápida inspeção no andar térreo do prédio. A porta para os andares de cima estava trancada, e não parecia haver outro modo de subir. Aproveitei para juntar uma boa quantidade de madeira. Acendi uma bem-vinda fogueira próxima a uma janela, de modo que a fumaça não tomaria conta do lugar, estiquei-me no saco-de-dormir e esperei que o cansaço dominasse meu corpo e me levasse para o mundo dos sonhos. E não demorou muito.

Acordei assustado. O som de uma explosão ecoou pelas ruas. Em seguida o som de sirenes anti-aéreas inundou a brisa que entrava pela janela. Em seguida o barulho das correntes de um blindado e de uma tropa em marcha começou a aumentar na rua. Encolhi-me o máximo que pude na quina das paredes, já com minha arma em punho, esperando que um exército invadisse o prédio. De repente, o som de um foguete cortando o ar e uma explosão de fogo e ferro contorcido, iniciou o combate. O som das metralhadoras cuspindo balas era frenético, enquanto o de corpos tendo suas cabeças dilaceradas por disparos certeiros era inconfundível.

Quando tudo silenciou, ainda esperei alguns instantes mais. Finalmente ergui a cabeça pela janela e olhei para a rua. Não havia fogo, destroços de veículos, corpos ou qualquer coisa que remetesse a um combate recente. Ainda assustado, pus-me de pé e segui para a porta de entrada. Finalmente, do outro lado da rua, avistei morte. Não me aproximei, mas pude ver o corpo de alguns Diabos dilacerados em cima de uma pilha de detritos. A julgar pelos ratos que atacavam os corpos, as mortes eram recentes. Uma trilha de sangue atravessava a rua e seguia para o prédio em que eu estava. Algo ou alguém tinha se ferido e buscado abrigo ali também. Eu não estava sozinho.

Com mais dúvidas em mente retornei à fogueira. Uma batalha sangrenta deveria ter acontecido do lado de fora, mas simplesmente desapareceu. Uma trilha de sangue entrava no prédio, mas não seguia a lugar nenhum dentro dele. E, finalmente, mas de maneira nenhuma menos importante, eu havia posto madeira na fogueira suficiente para durar oito longas horas de sono, mas as cinzas e o carvão restantes estavam gelados como a neve do lado de fora. Peguei meus pertences, guardei o saco-de-dormir e me preparei para voltar à caminhar. Antes de sair, lembrei de adicionar mais um motivo para não gostar de cidades: coisas estranhas acontecem dentro delas.