Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 29 de julho de 2008

3. "Favor"

Quando acordei havia uma enorme confusão de vozes e gritaria ao meu redor, tanto em língua comum quanto em outras duas ou três línguas. Eu não conseguia entender nada, mas com certeza o motivo da discussão era eu, pois, apesar de estar aquecido e aparentemente limpo, estava amarrado à cama pelos pulsos e calcanhares com cordas de pano. Eu estava completamente nu, coberto apenas por um fino lençol, e tentei fingir ainda estar dormindo, mas alguém viu quando fiz força com um dos braços para tentar me soltar e deu o alerta. Todos pararam de conversar e então se dirigiram a mim.



-Você está preso, foi encontrado desacordado em um veículo rebocado - disse uma mulher bonita, mas de expressão muito séria no rosto, tentando descobrir se eu ainda estava acordado quando eles chegaram ao esconderijo - faz idéia de onde esteja? Vamos, diga logo! - Gritou enérgica. Mas eu não fazia idéia, e também não tinha forças para responder, de modo que apenas um chiado nervoso saiu de minha garganta.

-Devíamos tê-lo deixado morrer! - disse uma voz masculina.

-Ou entregá-lo aos lobos. Eles estão sempre famintos! - completou outra.

-Não adianta, ele ainda está muito fraco, deixe-o descansar. O frio quase o matou, sabia? -disse uma garota de aparentemente uns 20 anos, agora se dirigindo a mim.- Você teve muita sorte de termos parado para descansar e então encontrá-lo desmaiado, mais um pouco e teria morrido de hipotermia, com certeza.

-Sorte nada! Vocês deviam ter sido punidos por não checarem o veículo como se deve em situações como essa. Não seguiram nenhuma das regras de aproximação e abordagem. -Voltou a falar a mulher carrancuda, que aparentemente era uma das líderes de pelotão.- Poderia ter sido uma armadilha!

-Sim, senhora... - respondeu cabisbaixa a garota. Depois se aproximou e estendeu para mim uma colher com um pouco de sopa fumegante, que apesar de ter uma aparência de estrume com água suja, exalava um cheiro muito apetitoso. E quando terminei de comer e sua superiora deixou a barraca de lona onde estávamos, ela falou baixinho. - Eu sei que você não é um escravizador, mas eles -disse se referindo às demais pessoas que estavam ali - acham que você pode ser um espião, portanto o forçarão a ficar aqui até que esteja forte o suficiente para trabalhar e pagar pelos cuidados que recebeu. Ou até que os escravizadores nos encontrem. O que acontecer primeiro.

Eu não estava disposto a ficar ali, esperando que meu corpo se recuperasse, para então trabalhar como escravo, dessa vez para um bando de loucos metidos a revolucionários. Mas eu não tinha escolha, pois apesar de preferir ter morrido de frio, estava são e salvo, e agora devia-lhes esse "favor". Portanto eu ficaria e pagaria meus débitos. Ou fugiria. O que acontecesse primeiro.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

2. O Rosa Radioativa

Era, como de costume, uma manhã silenciosa, mas se podia ouvir com clareza o som de passos e palavras perdidas se aproximando mais e mais. Tentei sair do carro, mas a porta estava bloqueada pela neve que havia se acumulado mais alto que o teto. Quebrar o vidro me passou pela cabeça, mas o medo de que a neve pudesse invadir o carro e me congelar foi maior. Decidi esperar e torcer para que a neve tivesse coberto o carro por completo, assim eles não me encontrariam.

A esperança durou pouco. Quando as vozes, falando em uma língua desconhecida, já estavam se afastando do carro, alguém que havia ficado para trás as chamou de volta. A voz daquela pessoa me lembrava vagamente alguém, falava com clareza e em língua comum, permitindo-se entender até mesmo através da camada de neve. As vozes se reuniram ao lado do carro, mas dessa vez conversavam também em língua comum. Eram quatro ou cinco pessoas, apenas uma mulher. Falavam sobre estar no rastro de alguém e sobre as coisas que haviam juntado naquela expedição. Estranhei tudo aquilo, afinal, grupos de escravizadores não costumavam incluir mulheres, sempre levavam escravos e não recolhiam bugigangas por aí.

Mas, quem quer que fossem, logo me descobririam. E como não tinha por onde fugir, passei pelas ferragens que um dia formaram o banco traseiro do carro e me escondi no porta-malas. Ouvi quando um veículo se aproximou e parou bem próximo. Pouco depois meu esconderijo estava sendo guinchado pela estrada coberta de neve, e sem dizer uma palavra ou mover um músculo, observei por entre os buracos de ferrugem na lataria. Pude ver que o grupo era bem maior do que eu havia imaginado, e que nem de longe eram escravizadores. Em cada um dos muitos veículos daquele bando, que iam desde snowmobiles até um pequeno cargueiro terrestre, havia sempre um símbolo amarelo e preto, parecido com aquele que servia para indicar áreas e objetos radioativos, mas o lugar do círculo central era ocupado por uma rosa, enquanto os três trapézios em volta pareciam as silhuetas dos prédios de uma cidade. Era uma tropa do Rosa Radioativa, ou RR, como os rebeldes se auto denominavam.


Eu sabia, pois tinha passado cerca de três anos em poder deles, que o símbolo dos escravizadores era formado por duas armas cruzadas e uma caveira, tudo sobre um fundo preto, como os antigos piratas. E sabia também que o RR era um de seus inimigos mais ativos. Assim, por hora senti-me seguro estando com eles, e a cada passo que eles davam eu ficava mais e mais longe de meus perseguidores. Mas, com essa sensação de segurança, esqueci-me de que não estava vestido adequadamente, e o frio começou a dominar minha mente pouco a pouco, até que meu corpo não pode mais resistir. Dormi.

domingo, 27 de julho de 2008

1. A Fuga

Quando acordei o dia já estava claro. Eu havia dormido muito mais do que estava acostumado, talvez pelo cansaço do dia anterior, ou quem sabe pelo medo de estar novamente sozinho naquele mundo vazio. Mas isso não importava, no momento eu precisava me aquecer antes que minhas mãos e pés congelassem com o frio, afinal, a roupa que eu tinha conseguido roubar antes de sair correndo não era a mais adequada para um clima como esse. O veículo que eu havia encontrado atrás de algumas árvores mortas não estava funcionando e não poderia me tirar dali mais rápido do que meus pés permitiam, mas ao menos tinha impedido que eu virasse sorvete durante a noite. Enquanto massageava os pés e as mãos como podia, repassei mentalmente tudo a que minha vida tinha se resumido: um grande nada, tão vazio quanto o mundo em que ela se passava.

No dia em que fugi, quando eu me preparava para ir dormir, dois escravizadores entraram na tenda em que eu e outros três escravos ficávamos. Como sempre eles começaram a nos bater e insultar. Meu sangue ferveu quando um de meus companheiros teve um dos olhos quase arrancado com uma coronhada, então levantei do meu saco de dormir, agarrei o lampião do teto e avancei contra eles. Vidro e fogo brilharam na escuridão da barraca quando o lampião se estilhaçou contra a cabeça do maior deles. O incêndio se espalhou rápido pelo acampamento, só tive tempo de pegar minha mochila e, quando um dos depósitos com comida e ferramentas explodiu, eu já descia a colina em direção ao rio.



Faziam dois dias que eu não comia nada além de pedaços de carne seca. Eu sempre escondia na mochila as partes das minhas refeições que não eram perecíveis, para caso um dia eu decidisse fazer uma burrada dessas, como fugir dos escravizadores em uma noite de tempestade. Naquela noite me escondi em uma das minas em que escavávamos os restos de metal, do que um dia foi uma cidade. Mas, na manhã seguinte, tive que partir antes de os escravos voltarem ao trabalho, já que alguém certamente me denunciaria em troca uma dose de vinho ou um mísero cigarro. Quando anoiteceu me escondi no que um dia foi uma bela casa de campo, mas que hoje não passa de um amontoado de tijolos farelentos. Felizmente nas ruínas havia uma boa quantidade de lenha, que um dia alguém recolheu, e pude fazer uma sofrida fogueira para sobreviver ao frio.

Os sentimentos que me dominavam e me faziam esquecer do frio e do mundo se esvaíram quando vozes ecoaram pelas colinas e fizeram neve cair das árvores. Eu poderia apostar o meu relógio e meus óculos como aquelas vozes pertenciam aos Escravizadores, e que eles ainda estavam me procurando. Com certeza a tempestade não tinha sido suficiente para fazê-los desistir de um de seus escravos mais saudáveis, sem falar nos prejuízos que eu havia causado antes de partir, duas noites atrás. E com a sorte de que um deles provavelmente estaria com uma enorme queimadura no rosto.