Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

32. Desculpas

-Espere, Nuke! Onde você vai?

-Vou embora, oras! Você está morto. Esse padre, sherife ou sei lá o que não pára de falar. E eu não estou a fim de ouvir. Minha cabeça dói e meu braço está formigando- falei sem hesitar.

-Está formigando porque você está deitado em cima dele.

-Deitado?

E então a neve que cobria a grama derreteu. A grama murchou até desaparecer. As estacas da cerca foram sugadas para debaixo da terra. As tábuas da varanda se recompuseram e formaram um chão plano. Paredes surgiram e janelas se abriram nelas. Um homem estava sentado em uma cadeira, enquanto um outro permanecia de pé, me encarando com um sorriso, ao lado da cama onde eu estava deitado.

-Nuke?

-Thompson? -falei engasgado, sentindo a garganta raspar.

-Pensamos que você fosse ficar alucinando a noite toda. Eu e Mark conversamos enquanto você dormia, e pelos seus gritos acho que você podia nos ouvir - Thompson tinha sua cabeça no lugar, e não parecia muito abalado. Eu ainda não entendia as coisas direito, mas isso viria a seu tempo.

-Não tivemos chance de nos apresentar. Meu nome é Mark, padre-sherife de Tradeport. - e aproximou-se da cama, esticando a mão para me cumprimentar. Eu fiz um esforço para erguer o braço não adormecido, mas havia uma agulha colocada em uma de minhas veias, e soro descia por um fino tubo de plástico, de modo que ao movimentá-lo uma dor lancinante me fez baixá-lo outra vez. - Tudo bem, não se esforce demais. Não me admira que seu corpo tenha enfraquecido tanto naquela cela. Desculpe-me por isso.

-Você nos deixa preso por dias e dias num cela imunda, cheia de ratos para dividirmos o lixo que vocês nos davam para comer, fazendo-nos defecar e dormir no mesmo lugar, e agora quer que eu o desculpe? - A raiva que eu queria ter sentido quando achei que Thompson estava morto agora brotava de mim como uma tempestade, e a dor que sentia em meu corpo ia desaparecendo sob efeito da adrenalina que percorria abundante minhas veias. - Eu seria capaz de matar você por muito menos! Se eu puser minhas mãos em você...!!

-Acalme-se, Nuke!! - falou Thompson, quase gargalhando de minha atitude. -Sei que você está com raiva, e tem motivos pra isso, mas ouça-nos primeiro! Mark nos aprisionou, sim. Nos fez passar fome, frio e tudo mais. Mas ao fazer isso ele nos salvou. As pessoas, tanto daqui quanto de qualquer outro lugar, precisam ver que os erros e crimes cometidos são punidos, do contrário sentirão-se seguros de sair impunes e cometerão outros crimes. Quando nos acusaram de termos envenenado as bebidas Mark mandou que fossemos presos, para manter a ordem e evitar que fossemos linchados ali mesmo.

-E daí? Porque nos deixou lá por tanto tempo, para depois não nos arrancar a cabeça? - falei quase gritando, indignado. - E quem, diabos, perdeu a cabeça naquele palanque? Ou eu estava alucinando, já?

-Admito que teria deixado vocês morrerem, como mereciam. - Começou a falar o Sherife, interrompendo Thompson que já tinha aberto a boca para recomeçar a falar. -Mas o anjo protetor de vocês é forte, e fez com que as coisas mudassem de rumo. Antes de jogar as bebidas fora, pensei em dar uma olhada nelas. E qual não foi minha surpresa ao encontrar vestígios e marcas dos Piratas da Neve. Não demorou muito pra que um dos médicos que eu tenho ao meu dispor aqui constatasse que o envenenamento da bebida tinha sido feito havia muito tempo. -Eu queria levantar e dar um murro na cara daquele velho religioso, mas sua voz era confortante, e de algum modo me prendia na cama. -Assim que soube disso fiz questão de tirá-los daquele buraco, para isso armei uma execução. Desfilei com vocês até o palanque, para que todos os vissem, e depois, na hora de cortar cabeças, enviei dois outros prisioneiros, com capuzes cobrindo os rostos.

-Humm... - resmunguei, ainda tentado a um soco direto e limpo.

-Por isso quero me desculpar, e oferecer a vocês dois que...

Mark, o Sherife e sacerdote de Tradeport não teve tempo de terminar de falar. Do lado de fora um estrondo imenso ecoou por cada canto da cidade, e um tremor fez tremer paredes e janelas. Gritos e pedidos de ajuda se espalhavam como fogo em palha, enquanto uma nuvem de fumaça se erguia do meio da praça de mercadores.

-Senhor! Senhor! Precisamos do senhor na praça central imediatamente! - Gritou um dos guardas da cidade, que entrou ofegante pela porta. Havia um corte fundo em seu rosto e suas mãos estavam cobertas com sangue e fuligem.

33. Dirigir

Mark não deixou que nós o acompanhássemos até a praça, já que certamente seríamos reconhecidos. Ficamos no quarto, tentando entender alguma coisa do que havia acontecido do lado de fora, mas o local da explosão estava fora de vista. No tempo em que ficamos olhando apenas algumas pessoas apressadas passaram, correndo para verem o que havia acontecido. Os apitos dos guardas podiam ser ouvidos, e provavelmente havia alguma confusão ainda no local. Depois de duas longas horas o sherife voltou. Estava acompanhado de um de seus médicos, que estava sujo de cima a baixo com sangue e poeira.

-Acidente ou atentado. Ainda não sabemos. Uma caixa de dinamites explodiu, matando o vendedor e três outras pessoas. - Falou desanimado o sherife, que agora era mais padre que sherife. -Posso penas rezar por suas almas e punir os responsáveis. Há muitos feridos também, mas a maioria sem gravidade.

-Se pudermos fazer algo para ajudá-lo, senhor. - Falou Thompson prestativo. -Podemos tentar.

-Sim, vocês podem. -E ao dizer isso saiu pela porta, fazendo um gesto para que o seguíssemos. O médico então retirou as bandagens que prendiam a agulha em meu braço e me ajudou a levantar da cama. Minhas pernas estavam bambas e teimavam em não me obedecer, mas esforcei-me para seguir Mark até a porta dos fundos de sua enorme casa. Ele parou do lado de fora da porta e apontou algo. -É com isso que vocês vão me ajudar.

Manquei até a porta e olhei para fora. Thompson já estava lá, boquiaberto. Estacionado ao lado de uma porta de garagem aberta estava o carro mais bem conservado que eu já havia visto. Veículos de guerra, modificados ou originais, eram comuns, mesmo em bom estado. Mas carros eram difíceis de se manterem conservados, já que não serviam para guerra e portanto não mereciam cuidados maiores. Thompson disse que se lembrava do nome do carro, mas eu pedi que ele não falasse. Aquele carro não pertencia mais ao passado, e portanto seu nome não precisava ser lembrado. Eu queria em minha memória apenas aquilo que podia ser observado e admirado.

-Encontrei esse carro anos atrás, enquanto vagava por esse mundo destruído. Estava em uma estrada de terra secundária, atrás de alguns arbustos. Havia um homem morto dentro, com os miolos espalhados pelo vidro. Haviam algumas notas de dinheiro, daquelas usados na época, espalhadas pelo chão do lado do passageiro, e a porta estava aberta. -Mark olhava fixo para o carro, com o olhar vazio, enquanto se esforçava para lembrar os detalhes da ocasião. Sua voz era novamente de sherife, e seu lado padre tinha voltado a se esconder. -Encontrei uma arma alguns metros dali, uma mochila vazia e uma montanha de dinheiro levada pelo vento e espalhada na neve manchada de sangue.

-Alguém matou o motorista, fugiu com o dinheiro e morreu em seguida. -Arrisquei um palpite.

-Sim, muito provavelmente. Mas e o corpo de quem fugiu, o senhor não o encontrou? - Completou Thompson.

-Não. Procurei por algum tempo, mas não encontrei nada. Este mistério nunca desvendei. Depois de procurar tirei o homem morto do carro, limpei como pude seu sangue e continuei viajem, até que o combustível acabasse. Eu o escondi em um bosque e cobri com neve. Voltei apenas quando, depois de muitos anos, encontrei um vidro novo para ele. E o carro continuava lá, intocado em seu esconderijo de gelo. Trouxe-o para cá e o reformei.

-E o que faremos com ele, senhor?

-Irão até Amrak. Cerca de trezentos quilômetros descendo o rio. É a maior cidade existente em muitas centenas de quilômetros. Moram lá cerca de 150 mil pessoas, talvez mais. Vocês levarão uma carga para mim, e a entregarão a uma mulher.

-Certo, senhor. -Quase não prestei atenção ao que respondi. Estava imaginando qual seria o tamanho de uma cidade com tantas pessoas, e como faziam para protegê-las, alimentá-las e contentá-las.

-Sabe dirigir? - Perguntou o sherife a mim. Levei alguns instantes para entender a pergunta e lançar-lhe um olhar perdido.

-Não.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

31. Louco

Quando a lâmina foi solta o mundo silenciou. Era possível sentir as pessoas prendendo a respiração do lado de fora. Um corte rápido e um baque seco. Gotas de sangue escorreram pelas tábuas e pingaram em minha venda. Queria ter sentido raiva, mas sentia apenas remorso por não ter me despedido de Thompson. Seu sangue escorria quente em meu rosto e eu sabia que minha vez estava chegando.

-Cinco segundos - gritou uma voz acima de mim, no palanque. - Apenas cinco segundos, senhoras e senhores! Esperamos que o próximo dure mais, ou as apostas de hoje terão sido em vão! Que tragam o próximo safado que vai morrer aqui hoje - continuou a voz, em meio a uma gritaria e uma onda de aplausos.

-Vamos andando - falou a voz do Sherife à minhas costas - não dê um pio, ou arranco-lhe os dentes.

Deixei-me ser guiado e não disse palavra - não que eu me importasse de perder os dentes, afinal, logo em seguida eu perderia toda a cabeça mesmo - mas depois de tudo o que gritei nos dias em que ficamos enjaulados eu já não tinha mais nada a dizer. Do lado de fora o vento frio que cortava Tradeport naquela manhã parecia se despedir de minha presença. Os gritos das pessoas que assistiam a execução tinham cessado e apenas murmúrios podia-se ouvir aqui e ali. Todos aguardavam a próxima cabeça a rolar. Subi uma escada de madeira e dei alguns passos. Um chute em minhas pernas me fez ajoelhar. Eu não ousava me mecher. Todos os meus sentidos pareciam ter deixado meu corpo, e a única coisa que eu sentia era a neve derretendo sob meus joelhos. Segundos que levavam horas se passaram, e então finalmente tiraram minha venda.

-Desculpe ter de fazê-los passar por isso. Essa cidade precisa de regras rígidas, ou cada vigarista e salafrário dessa cidade vai querer tirar mais proveito do que outro - era o Sherife falando, com o rosto sério de sempre, mas com uma calma na voz que até parecia outra pessoa. - A maioria dos que vem aqui são boas pessoas. Sempre assustados, perdidos ou feridos, mas boas pessoas. E, como a maioria nesse mundo, precisando apenas de duas coisas: um lar e um objetivo. E é isso que eu lhes dou. Ofereço proteção a todos os que aqui estão, e depois que percebem que estão realmente seguros, ofereço-lhes a Palavra de Deus - o padre-sherife estava sentado em uma cadeira de balanço, que vinha e voltava no mesmo lugar, rangendo baixinho. Eu estava ajoelhado no que um dia foi uma bela varanda de madeira, mas que depois de duas décadas sem cuidados parecia apenas um amontoado de tábuas. Senti-me tentado a levantar e correr, pular a cerca de madeira que fechava o jardim coberto de neve e deixar que o primeiro guarda me acertasse um tiro no meio do peito. Mas aquele homem sentado não parava de falar, e eu queria saber onde ele iria parar. -As pessoas são muito fáceis de se entender. Elas podem ter sonhos diferentes, gostos e vontades diversos, mas no final precisam apenas de um motivo para se manterem vivas. O fogo queimou tudo o que conheciam, a neve e o vento soterraram os escombros do seu passado e o desespero humano destruiu qualquer vestígio do que sobrou. O que lhes restou? A fé, claro! Memórias se perdem, se apagam. Mas a fé, não. Essa jamais se esquece.

-Onde está Thompson? Porque ainda estou vivo? - perguntei. Já sabia a resposta, mas ainda assim queria ouví-la, para que soubesse que tudo era realmente um sonho louco e que a loucura tinha chegado ao limite. Mas não houve resposta. Em vez disso ele continou falando, como um louco faria.

-Eu não poderia ser padre, sabe? Eu abandonei o celibato muitos anos antes desse mundo acabar. Não suportava ter que fingir que minhas orações eram ouvidas e ainda fazer pessoas acreditarem nisso. Eu queria queria trepar até explodir, com o máximo de mulheres que pudesse. Queria fumar até meu pulmão atrofiar. Queria beber até meu fígado ser diluído pelo álcool. Queria que o mundo acabasse... - fez uma pausa e admirou o mundo à sua volta, como se tudo aquilo fosse obra sua, e então continuou. - E ele acabou, realmente acabou. E foi então que eu soube que precisava voltar atrás, porque tudo era possível. E cá estou eu, redmindo-me dos meus pecados enquanto ainda há tempo. Pregando os ensinamentos de Deus àqueles que querem aprender e punindo aqueles que não aprendem.

-Eu... acho que já vou indo, sabe... - Levantei e dei alguns passo em direção aos degraus que desciam para o jardim. Estava decido a sair dali e ignorar o que aquele louco dizia, mas uma voz se sobrepôs à dele e fui obrigado a parar.

-Nuke, espere.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

30. Apostas

Podia ser pior, muito pior, repetia para mim mesmo, pessoas morrem por muito menos e você está vivo. Mas deitado naquele chão frio e úmido eu pensava que não me importaria de estar morto. Eu vivia apenas como um espectador, admirando as formas inimagináveis como a vida, a sociedade e a natureza se equilibravam precariamente naquele mundo louco e sem futuro. A luz da lua se espremia por uma pequena abertura na parede, era fatiada por duas barras de ferro verticais e morria no corredor de pedra entre as celas. O cheiro de sangue seco, de fezes e de urina infestava o ambiente, o andar dos ratos e camundongos criava uma trilha sonora não muito promissora, enquanto o guarda checava de hora em hora os prisioneiros das celas.

Quando eu e Thompson fomos jogados naquele buraco consegui contar 12 prisioneiros ao todo, mas no dia seguinte dois foram levados embora, e pudemos ouvir os gritos de perdão e desespero enquanto a lâmina da guilhotina ainda não os havia calado. Ficamos cerca de uma semana enfiados na escuridão, comendo pão mofado e duro, água suja - com urina e cuspe - e fazendo nossas necessidades em qualquer canto. Mas então, quando eu finalmente estava me acostumando com o cheiro de minha própria merda e de acordar com as mordidas dos ratos pela manhã, a porta se abriu e era nossa vez de irmos embora dali. Lembro de ter ouvido outros dois prisioneiros serem tirados de lá, mas depois de passarmos pela porta enfiaram sacos em nossas cabeças, e não vi mais nada.

Levaram-nos vendados pelas ruas da cidade, desfilando nossos corpos atrofiados para os compradores e comerciantes, de modo que servíssemos de exemplo para todos. Toda semana pelo menos 2 prisioneiros eram mortos, e condenados nunca estavam em falta, por mais que se guilhotinassem pessoas em praça pública. A pobreza, a fome e o desespero eram sempre maiores que o medo de perder a cabeça, logo haviam mais prisioneiros para morrer do que execuções por semana. Ouvi quando fomos trancados debaixo de um palanque de madeira, no qual a guilhotina ficava, enquanto ouvíamos a missa que acontecia todo domingo e que era ministrada pelo Padre-sherife de Tradeport. Não ouvi quase nada do que era falado, mas percebi que muitas pessoas acompanhavam aquelas missas, pois os longos sermões eram interrompidos por cantos e preces entoados por muitas vozes. Quando a cerimonia finalmente acabou sabíamos que tinha chegado nossa hora e pude ouvir Thompson soltar um gemido de amargura quando passos desceram do palanque e se aproximaram da porta onde estávamos.

-Hora de morrer. - Falou a voz grossa e inexpressiva do Sherife atrás de nós. - As apostas estão bem equilibradas. Qual de vocês dois irá sobreviver por mais tempo com a cabeça dentro de uma cesta? Quero uma graninha extra hoje.