Quando o planeta já não mais podia suportar a humanidade, uma luz brilhou no horizonte e subiu aos céus.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

54. Esquiando

O sono foi leve para todos aquela noite. A fogueira, cuja música nos embalou durante toda a madrugada, revigorou-nos mais que muitas horas sono poderiam fazer. Ainda estava escuro quando nos pusemos de pé e recolhemos nossas coisas. Olhei em volta, tentando avistar algo além do que o resto da fogueira iluminava: um vasto negrume de nada. Deixei vagar pelos pensamentos como era estranho que, por falta de uns raios de luz, toda aquela neve branca ficava escura como piche. A natureza é magnífica, pensei alto, ainda olhando o nada. De um lado, porém, um borrão de luz deixava transparecer a silhueta de algumas colinas. Entreabri a boca, mas quando pensei em falar, Anne se adiantou:

-Olhem que lindo, o sol já vai nascer... -e apontou para o horizonte.

-O sol deveria nascer daquele lado, não pode ser que seja ele -argumentou Thompson. -Mas, posso estar errado, vai saber.

-Você está certo, senhor Thompson -disse Lyriel, com respeito, olhando para uma bússola que trazia pendurada à mochila. -O sol nasce ali, daquele lado. Essa luz que vemos é a cidade de Amrak. Estamos a menos de um dia de viajem de lá.

-É estranho. Quando deixamos Tradeport, Mark, o sherife e sacerdote daquela pequena cidade mercante, nos disse que Amrak estaria a cerca de trezentos quilómetros. Distância que, obviamente, deveria ser superada em algumas horas de viajem, descendo o rio -indagou Thompson. Abrindo os braços, continuou. -Mas agora, depois de muitos dias de viajem que fazemos desde Tradeport, você nos diz que ainda falta um dia todo para chegarmos lá? Como é possível?

-O senhor está certo outra vez. Bom, quase certo. Amrak, na verdade, está a cerca de quinhentos quilómetros de Tradeport. Mas a antiga highway, que passava por essas cidades antes da Explosão, está destruída em noventa porcento de seu percurso, e como vocês puderam perceber, tentar seguir seus destroços ao longo do rio é extremamente perigoso. E a estrada alternativa que vocês pegaram aumenta o caminho em outros duzentos ou trezentos quilómetros. Sem contar as paradas e os desvios adicionais para evitar as rotas bloqueadas, imagino que esses dias nem foram tantos assim -concluiu Lyriel.

-Maldição... Vamos embora daqui logo, não vou suportar mais um dia todo com essa ração militar que vocês dois chamam de comida -e dizendo isso cuspiu uma pelota deformada de fibras que compunham a ração fornecida pelos Deuses a seus soldados. Yoseph e Lyriel riram, enquanto mastigavam as suas. Eu e Anne também não gostávamos muito, mas não que fosse ruim aquela ração, e mesmo sendo muito mais nutritiva, não tinha gosto de carne de rato ou lagarto seca. Ainda rindo subimos no veículo blindado e em pouco tempo estávamos nos movendo, no que, esperávamos, fosse o último dia de viajem a Amrak.

Nos mantivemos a meia altura nas colinas, evitando o fundo, onde detritos dificultariam que os esquis do veículo deslizassem com eficiência, e o topo, onde poderíamos ser vistos por olhares não amigáveis. Depois de algumas longas horas de viajem, procuramos um lugar decente para uma pausa. O sol, bem no alto do céu, forçava alguns de seus raios por entre as nuvens espessas e raivosas. Estávamos com fome, e mesmo não gostando, Thompson melhorava muito de humor após as refeições, por isso não deixávamos de fazê-las. Eu sempre me perguntei se não deveríamos simplesmente comer dentro do veículo, sem pararmos, mas sempre que eu descia e esticava as pernas, esses pensamentos se esvaíam.

Paramos o veículo logo abaixo de uma grande pedra, de modo que ela nos protegesse parcialmente do vento forte que fazia. Papeamos alguns minutos, deixando clara a ansiedade de todos em voltar à civilização. Eu não estava, porém, particularmente animado. Chegar em uma cidade grande significava deixar para trás minha rotina, e o simples pensamento de ficar parado por muito tempo me deixava nervoso. Tentando pensar em outra coisa, mirei o horizonte, e percebi algo que nunca tinha visto.

-Vejam, lá embaixo, um riacho! -gritei animado.

-Vejam o caminhão, isso sim! Ele está esquiando encosta abaixo! -gemeu Yoseph.

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